22.2.15

«LETRA E»
LLANSOL: OS PRIMÓRDIOS DA ESCRITA


Tivémos ontem mais uma sessão da «Letra E», dando seguimento ao ciclo sobre «Lugares e tempos de Llansol». João Barrento expôs os resultados do seu levantamento da escrita juvenil de M. G. Llansol, e leram-se vários textos – poesia, conto, teatro, diário – que documentam o nascimento desse rio que não haveria mais de parar de correr, o de uma «pulsão de escrita» já bastante singular nesses primórdios. 
Desta vez surpreendemos os que vieram com a proposta de serem alguns deles a ler os textos escolhidos, proposta imediatamente bem acolhida. Como habitualmente, fizemos um «Caderno da Letra E» que reproduz muitos textos dos primeiros diários e também, num grande desdobrável que o acompanha, exemplos da poesia, da narrativa e do teatro da juvenilia de Llansol. 


 A abertura e o final desse caderno (partes da introdução mais longa de João Barrento), que a seguir se transcrevem, dão uma ideia do espectro temporal e escritural desta fase, que culminará com a publicação do primeiro livro, Os Pregos na Erva, e, poucos anos depois, com o início do exílio na Bélgica: 




                     «Uma nascente no meio de um rio»: os primórdios da escrita em Llansol
A época de que se ocupa este caderno é talvez a menos documentada no espólio de Maria Gabriela Llansol. Corresponde aos anos do Liceu, do curso de Direito e do período que se segue, até ao encontro com Augusto Joaquim e à ida para a Bélgica. São anos difíceis, como testemunham os (poucos) diários que ficaram, com datas entre 1949 e 1965, de onde transcrevemos os textos que se podem ler neste caderno. Apesar da obscuridade que os envolve, e da ausência de documentos, sobretudo fotográficos, trata-se de um período seminal para a escrita de Llansol em vários géneros – conto, diário, poesia, teatro –, dos quais os dois primeiros estariam destinados a ter continuidade, enquanto dos dois últimos não ficou escrita para além de algumas tentativas juvenis. Todos eles estão documentados neste caderno e no desdobrável que o acompanha.
 A esta época, mais precisamente à sua última fase («antes de conhecer o Augusto»), chama Llansol «a época sem segredo» (Caderno 1.23, p. 131, em 6 de Novembro de 1986). Provavelmente, como sugere uma página anterior do mesmo caderno, porque nos textos que nela se vão escrevendo há ainda uma busca do sentido das coisas e do mundo, por um espírito (e já um corpo) juvenil que nele vai tacteando caminhos, diferentemente das outras épocas de vida e escrita, em que o sentido (que «as mais das vezes é impostura da língua») se vai retirando e perdendo importância para dar lugar a uma busca deliberada de significações «mágicas» e mais evanescentes do real – «o fulgor que, por vezes, há nas coisas»… Mas não é esse ainda o selo destas primeiras produções, bastante marcadas por condicionalismos epocais, familiares e de classe, que só o exílio belga permitiria superar radicalmente.
            A «propensão para as letras» (cuja manutenção e «aumento dia a dia» são pedidos numa «Carta ao Senhor São José», com data de 1 de Março de 1943) manifesta-se muito cedo, contrariamente à Matemática e às Ciências, cujas notas nos primeiros anos do Liceu são as mais fracas. Com toda a sua carga de ingenuidade, e alguma «vontade de estilo» que marca as primeiras tentativas literárias de M. G. Llansol, já a partir dos onze anos (quando escreve o conto «Destinos ciganos», que mais tarde retomaria no livro Depois de Os Pregos na Erva com a indicação: «o meu primeiro texto»; também um outro texto desta fase, a peça radiofónica O Absurdo, será transformada em conto para Os Pregos na Erva), os escritos juvenis constituem um núcleo já significativo que, na década de cinquenta, culmina na estreia literária absoluta, num jornal de grande circulação como o Diário de Notícias, com o conto «Empregada».
 A primeira «obra» narrativa propriamente dita de Maria Gabriela Llansol é esse conto escrito aos 11 anos (de acordo com uma anotação, com tinta diferente, provavelmente do pai, na última folha), com um incipit, um arranque narrativo, inesperado e singular. A matéria do conto tem laivos camilianos e é uma vez mais reveladora de uma época e de uma sociedade que ostracizava e estigmatizava abertamente comunistas e ciganos. É isto que acontece nesta história, impregnada de um fatalismo que levará ao regresso tardio do menino roubado à casa do pai para, num gesto hediondo – e edipiano? –  matar aquele que lhe deu a vida.
Para além da decisão, por parte da escrevente de onze anos, de criar um «efeito de estranhamento» para a sua história (como irá fazer mais tarde com as personagens históricas que arranca aos seus contextos de origem para as transformar em figuras de uma grande alegoria da História e do Humano), e da confissão de que «detesta aquilo a que se chama banal», o  interessante aqui é mesmo esse começo inesperado e singular numa criança de onze anos, certamente acostumada a ler histórias convencionais (mas também, sabemo-lo, a ouvir ler Pessoa desde os seis anos): «Era uma vez, não, não é com ‘era uma vez’ que eu quero iniciar a minha história. Talvez porque ela não é de fadas, não obstante ter-se passado num país longínquo e desconhecido, talvez porque eu detesto aquilo a que chamam banal.» Uma voz parece dizer já aqui à menina que redige o seu primeiro texto: «não des-crevas, escreve», como lemos em Depois dos Pregos na Erva. [...]
 A forma do diário, já tão significativa nos primórdios da escrita de M. G. Llansol, acabará por se transformar no modo de escrita por excelência desta escrevente do acontecer e dos seus fulgors mais escondidos. Desde estes anos, o rio contínuo que são os diários manuscritos de onde tudo nasce, como hoje sabemos melhor, foi transformando corpo e mundo em escrita ao fio dos dias. A sua escrita não é, assim, propriamente «diarística» (se com isso tivermos em mente um género e suas formas), mas uma escrita diária em que «escrever é o duplo [i.e., o prolongamento] de viver». Esta indistinção de raiz entre escrita e escrita dos dias permite chegar a uma afirmação paradoxal: Llansol não é uma escritora de diários, e no entanto não fez outra coisa na sua vida senão escrever um diário. Esse diário começa, em 1949, como diário secreto, e continua-se hoje nos Livros de Horas. Diários que são o seu livro único, obra autobiográfica com total rejeição da autobiografia formal, escrita instável, híbrida e múltipla, numa série de diários sem eu escritos na primeira pessoa (por vezes com a indicação à margem: «passar à terceira pessoa»!), um livro sem princípio nem fim cujas figuras maiores são o tempo (os tempos) e os dias, os seus trabalhos e as suas iluminações.