8.1.24

 A VIDA RESTANTE E O RESTO ACTUANTE

Varda-Llansol: As respigadoras


Da sessão do sábado, Dia-de-Reis, com o filme Os Respigadores e a Respigadora, de Agnès Varda, que abriu o ciclo que continuará por mais duas sessões, o resumo da apresentação de João Barrento:

Que significa este conceito de Restante Vida, que deu título ao segundo volume da Trilogia «Geografia de Rebeldes» (mas já aparece bem definido antes, no prólogo de A. Borges a O Livro as Comunidades)? Aí lemos já a frase lapidar: «Este livro é a história da Tradição [sobretudo a dos esquecidos, incompreendidos, perseguidos, no fluxo da História] segundo o espírito da Restante Vida» — ou seja, não segundo a «trama da existência», o que significa que as figuras destes livros seguem o espírito de uma vida outra, não a imposta pelos poderes: são «mutantes», «fora-de-série», «acentrados» (corpo e pensamento actuantes, no caso de um revolucionário como Thomas Müntzer, pobre e puro; corpo capaz de olhar e reconhecer a beleza dos restos, em Llansol ou Varda; corpo disponível para o «Amor completo», como o de Hadewijch e outras beguinas). E ainda: é escrevendo, e escrevendo à margem de normas e modelos dominantes que se pode captar «a densidade da Restante Vida», que aqui corresponde a outra forma de corpo. E isto será decisivo para toda esta Obra, que nasce de «um corp' a 'screver», e não de um qualquer programa conceptual ou da simples vontade de narrar.

Já no posfácio a A Restante Vida, o «livro da batalha» (de Frankenhausen, nas Guerras dos Camponeses), a noção se aplica essencialmente a duas figuras maiores: Müntzer, o Pobre e sobrevivente da batalha (apesar de ter sido decapitado), e Hadewijch, na qual a Restante Vida é essencialmente a da «força amativa» do «Amor completo».

Neste livro, torna-se particularmente evidente a ligação entre a restante vida e os restos (que nos interessa agora, para o filme de A. Varda). Resto será agora tudo o que ainda ficou da História e continua a actuar (é assim que o Pobre não é mero resto morto, mas também arquétipo, ou seja, referência que permanece). A Maria Gabriela definiria, na discussão do filme de Varda em 2005, a «Restante Vida» precisamente como «o resto que tem a potência de agir e que é, no âmago, uma força». Agora, o sobrevivente da História, o Pobre, é aquele que tem «a faculdade de criação de dentro» (no fora, no social, ele é ninguém). A sua «regra», que lhe permite abrir outros horizontes, é agora a do «desmunir» ou da «despossessão». A. Borges conclui: «É no exílio, no fora de fora, que a rede de figuras... se instala para a recepção do mito da Restante Vida».

A figura do Pobre, central aqui, terá ainda outros nomes no pensamento e na escrita de Llansol. Num ensaio sobre o místico catalão Raimundo Lull, afirma-se: «Parece haver dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se». Agora, ao Príncipe opõe-se a figura do eremita, aquele que escolheu também viver à margem.

A importância desta noção na Obra de Llansol é facilmente compreensível se pensarmos no facto de esta Obra pôr em cena «figuras», e não personagens. É inevitável para a figura – ser mutável que vive no e do Aberto – ter de viver no espaço de uma qualquer «restante vida», «estimulando o desenvolvimento das capacidades humanas e desestruturando a realidade hiper-estruturada» (Llansol, 3 de Dezembro de 2005). A restante vida e a figura fogem também à fixação numa «forma», tal como alguma arte dos restos, que o filme também mostra; a «paisagem» (não o «território» dos poderes instituídos) da figura e do espaço da restante vida são des-hierarquizados, contrariando assim a forma mais habitual do mundo; a História provou ser o «eterno retorno do mesmo» – a figura e a restante vida propiciam o «eterno retorno do mútuo» (não numa qualquer sociedade, mas numa comunidade livre)...




Os Respigadores e a Respigadora

(A Restante Vida no filme)

 

O filme de A. Varda é um exemplo acabado da dependência da noção de uma vida restante em relação a um resto actuante.

vida restante é aquela que é possível (ou se impõe a alguns) como aquilo que resta da / na sociedade do desperdício (que é o seu reverso), mum mundo cego para o mundo, que acumula, não restos produtivos, mas resíduos fatais.

resto actuante, por seu lado, é aquele que actua transformando-se (em alimento, em fonte de uma outra beleza, na arte e na escrita) e transformando a vida de quem dá por ele – o olhar é essencial nesta descoberta! – e o recolhe, dando uso ao não-uso.

O filme (e Maria Gabriela) pergunta: como se vive com os restos, para além da necessidade (imposta) de con-viver com o refugo do consumo? O que o mundo rejeita (ou não vê), o Texto e o filme aproveitam, e convertem em beleza, ou fonte de vida, ou sinal e aviso...

Daqui se conclui que há uma «vibração dos restos», que em Llansol está presente no exemplo (em Parasceve) dos cacos postos junto de uma árvore, ou também dos cacos simplesmente, do seu «pregueamento», visto como uma forma outra de beleza, para lá da simetria convencional: estamos perante uma forma de «mais-paisagem» (também própria dos restos e da restante vida), que prova, como diz Adorno na Teoria Estética, que «a arte não é higiénica». O mesmo se passa com os objectos aparentemente inúteis, não actuantes, que Llansol põe a vibrar num livro como Um Beijo Dado Mais Tarde, onde fala também de uma «arte dos restos», que vai além do uso imediato do respigo, rural e urbano, que o filme também mostra, e muita arte do século XX praticou, desde o Dadaísmo, e até à «arte bruta» e à pop.

As duas criadoras deste «encontro inesperado do diverso» entre texto e filme, tendem a valorizar os restos, cada uma à sua maneira. 

1) Em Llansol podemos dizer que há uma escrita dos restos:

– restos fracassados da História (os esquecidos), que é «o nó de que desfiei o Texto»: beguinas, místicos, visionários, rebeldes;

– os restos dos dias: o que não se vê, a não ser «em dobra»: figuras marginais, residuais, sejam elas pessoas, animais, árvores ou objectos...;

– restos de escrita (os que «se revoltam», como um dia nos sugeriu, pouco antes de morrer!); todos os livros nascem desse depósito-berço que são os fragmentos dos Cadernos. (e os muitos papéis avulsos), onde, como sabemos hoje melhor, ficaram muitos restos valiosos – «restos conceptuais altamente condensados», ou «ruídos de beleza, fulgurâncias» (Augusto Joaquim, no posfácio a Um Falcão no Punho).

2) O filme de Varda mostra a dialéctica paradoxal dos restos: há o que se aproveita e se consome, desaparece, não deixa resto nem rasto (a não ser ainda algum lixo); e há os restos rejeitados que permanecem, se transformam, são úteis, geram beleza. A sua lei (tal como a das figuras do Texto) é a da metamorfose, não do desaparecimento (sobretudo na arte dos restos – ou no que poderia ser uma sociedade da plena reciclagem).

Agnès Varda é a respigadora de imagens, descobridora, pelo olhar, daquilo que o mundo rejeita ou não vê — e aqueles restos estavam à espera deste olhar (que conhecemos também de um outro filme, que também já mostrámos, Olhares, Lugares).

O mesmo acontece com a escrita de Llansol, toda ela imagética, visual, e feita do que a ortodoxia literária não quer usar, nem ver. Aqui, como lemos em Lisboaleipzig 1, até «a morte não se limita a guardar os restos. No outro lado, no não-ver, nas nossas costas, está esculpido outro mundo». É o fascínio de uma qualquer «outridade» mais humana nesta escrita, onde o que que fica são «restos indecifráveis de uma atracção irrecusável» (lemos em A Restante Vida).

Afinal, «todos nós temos os nossos restos à mão» (Finita) – é só estendê-la e dar-lhes uso. Ou não-uso, como reconhece a mulher de Parasceve: e daí nasce «qualquer coisa superior à beleza», uma beleza-outra, uma «mais-paisagem» que pode fazer mudar de vida, numa espécie de suspensão do tempo do mundo!