11.5.15

«LETRA E»: EROTISMO E AMOR ÍMPAR


Tarde de «amplitude ilimitada», diria Llansol, a de sábado  na  «Letra E».  Também de beleza,  com o sopro  do  desejo  e  a presença,  entre  etérea  e  física,  dos  corpos  de  onde  emanava  a  palavra  de Llansol  em  Contos  do  Mal Errante.  Corpos  jovens,  de estudantes  do  primeiro ano  do  curso  de teatro  da  ESAD  (a  Escola de Artes e  Design das Caldas da Rainha),  que vieram  até nós  com um conhecido actor  e seu professor  – Diogo Dória –  que,  como se percebeu, cultiva uma relação  com estes seus estudantes como aquela do pequeno poema fragmentário que Brecht escreveu um dia: 

                               Não digas muitas vezes que tens razão, professor!
                               Deixa que o aluno o reconheça!
                               Não puxes de mais pela verdade: Ela não aguenta.
                               Ouve quando falas!



M. G. Llansol: fragmentos inéditos sobre erotismo e amor ímpar 

A Jéssica, a Raquel, a Rita, o Guilherme, o Samuel e o Daniel formaram um elenco prometedor e responsável que fez reverberar na «Letra E» os ecos do «amor ímpar» e da escrita do erotismo sublime de Llansol, numa sequência extraída de Contos do Mal Errante. O cenário, para além de alguns dos quadros que a pintora Ilda David' fez a partir deste livro, foi o das colagens e dos desenhos eróticos de Augusto Joaquim, em papel (com destaque para o «Círculo da com-paixão», contemporâneo da escrita de Contos do Mal Errante, no início dos anos oitenta) e outras séries, em formato digital (bitmap), que continuamente iam sendo projectadas no tecto.



O video que se segue mostra algumas dessas sequências digitais:


O tema foi introduzido por João Barrento, com particular destaque para o esclarecimento da noção llansoliana do «amor ímpar», que constitui o centro ideativo da trama – não psicológica, mas, à sua maneira, «transcendental» – desse livro singular no contexto da segunda trilogia de Llansol, e da relação triádica que se desenrola na «mansão na neve», sob o fundo das tensões e contradições do radicalismo anabaptista da cidade sitiada de Münster – entre a figura solar, da totalidade do cosmos e do Amor, que é a de Copérnico; a de Isabôl, que gere os rituais do amor a partir dos princípios da des-possessão e do amor ímpar, da recusa do dualismo ou da pretensa perfeição do hermafrodita; e a de Escarlate (alter ego de Hadewijch, a beguina do amor místico), figura da beleza e da pujança do corpo, da entrega e da resposta, não isenta de medo, ao apelo de Eros.



Os «Contos do amor ímpar» resultaram assim, nas vozes e nos gestos, perfeitamente ajustados ao texto, destes jovens actores, num quase-canto onde erotismo e amor ímpar emergiram como a «sintaxe das imagens de atracção e repulsa que traça a moldura do que é o tema fundamental deste livro: a alquimia do encontro» (Eduardo Prado Coelho, em 1986), a busca dessa outra pedra filosofal que é a do amor como conhecimento e libertação. Estamos perante a «invenção e crise do amor ímpar» (Manuel Gusmão, posfácio à 2ª edição de Contos do Mal Errante), a lei fundamental da harmonia inquieta do universo (da atracção e repulsa dos corpos celestes, que Copérnico conhece bem), e a esperança de que a figura final do humano não seja, nem a da completude estéril do hermafrodita, nem a da «solidão perfeita do par». É o não de Llansol a toda a dialéctica, ao rejeitar os dualismos resolúveis para afirmar a tensão produtiva e o lugar do Aberto como pressupostos vitais da energia desejante que rege os corpos. 


Isto acontece, em Contos do Mal Errante, com a vinda do terceiro elemento, Escarlate, o terceiro incluído de que vive o amor ímpar. O ímpar é sempre o terceiro, o que acontece e vem do exterior, respondendo ao apelo. Num dos cadernos da fase de escrita deste livro, Llansol escreve: «É necessário que haja o número ímpar. A fenda simbólica [lugar de penetração, mas também de separação, entenda-se!] tem a sua correspondência simbólica no número ímpar». O terceiro é sempre incluído, e sempre outro – podendo mesmo ser um não-humano, já que o âmbito do amor ímpar é cósmico, não psicológico, e a sua lei a de uma lógica impessoal estranha ao eu, mas conhecida dos corpos celestes que Copérnico, o astrónomo, acompanha. 


Aqui, o desejo que rege essa atracção é o motor – instável-imóvel – da relação erótica – que não é simplesmente amorosa ou sexual. Só assim se poderá entender a «intuição» de Llansol (num caderno já tardio) de que «o amor ímpar é um impulso humano de santidade». Santidade, naturalmente, em sentido spinioziano, e não religioso: trata-se aqui de uma noção estética, da beleza de corpos disponíveis – com a alma à vista. Neste universo, diz um dos fragmentos lidos, «ninguém cobre o rosto com um embuste».