«O JARDIM QUE A AUSÊNCIA PERMITE»
Llansol, um ano depois
Na evocação do passado dia 3, na galeria da Assírio & Alvim em Lisboa, cruzaram-se na intervenção de João Barrento dois textos que, de modos diferentes e afins, fazem um trabalho de luto muito particular por meio da escrita: Amigo e Amiga (A&A), de Llansol, e Journal de deuil, de Roland Barthes:
Cruzaram-se por estes dias, na nossa experiência de leitura – da Vina e minha –, duas figuras que nos levaram a reflectir sobre «a experiência abusiva da morte» (Amigo e Amiga, 16). Abusiva é a experiência da morte quando se sente que esta não existe (Llansol), ou quando se rejeita o chamado «trabalho de luto» como forma de a exorcisar e «resolver» (Roland Barthes). São estas as duas figuras que em nós se cruzaram: Roland Barthes, de quem acaba de sair um Diário de Luto (Journal de deuil) pela morte da mãe (que já suscitou polémica, e que eu trouxe de Paris, aonde fui para o lançamento de O Jogo da Liberdade da Alma + O Espaço Edénico em tradução francesa); e, naturalmente, Maria Gabriela Llansol, sobre cuja partida passa hoje um ano. Por um desses acasos que nos estão sempre a acontecer na casa e com os papéis que foram dela, ao procurarmos nos cadernos inéditos, a partir de 1974, registos deste dia 3 de Março, démos com uma anotação no caderno 8, datada de 26 de Março de 1980, o dia da morte de Barthes, e intitulada: «Minha homenagem a Roland Barthes».
Diz o seguinte (a nota, apesar de breve, é de peso pelo que significa para o despoletar de uma nova escrita em M. G. Llansol): «26 de Março, quinta. Morte de Roland Barthes [...] Minha homenagem a Roland Barthes: um dia, estava eu em Lovaina a ler Inácio de Loyola, Fourier, Sade [sic], mais precisamente Inácio de Loyola, quando senti que se reestruturava todo o meu aparelho de escrever, sem saber que iniciava o caminho de O Livro das Comunidades. Disse: 'Era uma vez uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre. Vivia numa grande casa...'».
Posteriormente, continuando a busca de textos escritos por Llansol em dias 3 de Março, salta-nos de um dos cadernos um daqueles longos fragmentos, tão frequentes nestas fontes inéditas, cuja fulgurância e pertinência era tal que esquecemos as datas de 3 de Março e decidimos que seriam essas páginas que vos daríamos a ouvir hoje. Páginas que, à semelhança de outras que conhecemos de M. G. Llansol, falam da «biografia» que ela não teve, se por isso se entender um espaço de vida mais ou menos cheio de acontecimentos e balizado por duas datas, e não, como neste caso mais importa, uma «signografia do Há», isto é a escrita dos sinais que marcam uma existência e lhe conferem sentido. Uma «relação amativa» com o mundo, e não uma mera «organização de vida», como escreve também Barthes no seu Diário. No caso de Llansol, as marcas de sentido da existência são essencialmente os sinais de escrita que totalmente a preenchem e absorvem, como uma «segunda natureza», e que deixou disseminados por qualquer coisa como quase trinta mil páginas manuscritas e dactiloscritas.
Durante este primeiro ano da sua ausência, também alguns de nós, depositários e continuadores da sua Obra, moradores do Lugar que a viu escrever nos últimos anos de vida, ocupámos em grande parte o nosso tempo com um «trabalho de luto» sem luto, mas preenchido pelo diálogo diário com a escrita e o mundo de Maria Gabriela Llansol. Trabalho não de luto, mas de mágoa (chagrin), porque não paralisante, mas estimulante, como o descreve Barthes:
Não preciso de solidão, preciso do anonimato (do trabalho). Transformo o «Trabalho» em sentido analítico (trabalho de luto, trabalho do sonho) em «Trabalho» real – de escrita. porque: O «Trabalho» pelo qual (como se diz) saímos das grandes crises (amor, luto) não deve ser resolvido à pressa; para mim, ele só se consuma na e pela escrita. (p. 143)
Este foi para nós um ano de permanente actividade, de grande intensidade, de muita persistência e alguma daquela «coragem», diferente da que foi preciso ter na fase da doença da Maria Gabriela, de que fala ainda Barthes numa das fichas do seu Diário de Luto:
As pessoas desejam-nos «coragem». Mas o tempo da coragem é aquele em que ela estava doente, em que eu tratava dela vendo o seu sofrimento, as suas tristezas, e quando era preciso esconder as lágrimas. A cada momento era preciso tomar decisões, assumir uma figura, e é isso a coragem. – Agora, coragem significaria vontade de viver, e isso não nos falta. (p. 51)
O nosso luto foi-se fazendo, faz-se, como aprendemos a fazê-lo com a mulher de Amigo e Amiga, o «Curso de silêncio» de Llansol em 2004 – como uma caminhada para a luz que continuará a vir desta escrita, ou, com Barthes, como uma predisposição para encontrar sentido na ausência:
Luto: não esmagamento, bloqueamento (o que pressuporia um «preenchimento» completo), mas sim uma disponibilidade dolorosa: estou alerta, expectante, à espera que chegue um «sentido de vida». [...] ... situação sem chantagem possível. (pp. 90-91)
Sem chantagem e sem cair na ilusão de que o tempo «atenua» ou «resolve» o luto. De facto – outra ideia central neste livro de Roland Barthes e em Amigo e Amiga –, ele apenas o transforma, fazendo-o «passar de um estado estático (de estase, obstrução, recorrência repetitiva do idêntico) a um estado fluido». Também nós, se tivéssemos «resolvido» o luto, nunca poderíamos dizer, como o diz Barthes, e Spinoza poderia ter escrito – sem qualquer masoquismo –: «Habito a minha dor, e isso faz-me feliz». Porque «a cada 'momento' de dor acredito que é então que, pela primeira vez, realizo o meu luto. E isso significa: totalidade da intensidade.» (p. 85)
Como fizémos então o nosso luto durante este primeiro ano, e como o faremos nos próximos? Fazendo florescer a dor, como Estere em Amigo e Amiga, negando a morte, como em Spinoza e Llansol. Mudando o Lugar, mantendo viva a Obra. Transformando a Casa, como fizémos, e preparando o advento de novos livros de Maria Gabriela Llansol, que em breve começaremos a tornar públicos com a colaboração desta casa, a Assírio & Alvim.
Como diz Barthes, o luto, existindo no tempo, não está sujeito ao tempo, é «contínuo e imóvel». É a vivência mutante de um misto de dor e júbilo em cada momento presente. Ou, como sugere Spinoza, «mestre de bondade» e do «conhecimento verdadeiro»: a morte é apenas a entrada de um corpo noutros modos de relação, e por isso não existe, se for entendida como o Nada com que quase sempre é estigmatizada. Nesse grande e belo breviário do luto que é Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, Llansol deixa também claro que esse trabalho de luto não é um processo de dor que um dia se apaga, mas uma incessante actividade que traz o outro, continuamente, a uma luz sempre diferente, que não se extingue, mas devém outra coisa, não opaca, mas transparente – no seu caso, como no de Roland Barthes, escrita: «Agora, mentalmente, estudo a morte que se apaga em escrita. Escrita nossa... [...]; é como um enleamento de alegria num lugar sombrio e húmido» (A&A, 36), na busca contínua dos modos de metamorfose desse «enigma sem nenhum mistério contundente» que a leva a concluir que «não há mortos e há incógnitas» (A&A, 102-03).
Nessa busca incessante e nessa disponibilidade permanente, que impede que o luto se transforme em recalcamento e em «cura» ilusória, gerando o fim da inquietação e do diálogo com a ausência, o seu «trabalho» acontece em momentos sucessivos de activação produtiva da dor (da memória), momentos de coincidência (e, para a mulher de Amigo e Amiga, de pacificação progressiva dessa dor) em que, compreendendo «a beleza mutante do silêncio» perante a ausência, quem vive o luto «veste o xaile da consolação da morte» (A&A, 150) e entrega-se à «causa amante da metamorfose». Lenta metamorfose, numa via progressiva, e sem fim, de encontro com a transparência no meio da noite obscura. Assim, a própria morte se submete à lei dessa «causa amante» (Llansol) ou «relação amativa» (Barthes), para se transformar numa «imagem inflorescente», fonte de um «devir maior» – lemos ainda em Amigo e Amiga.
O devir do texto de Maria Gabriela Llansol depois da sua passagem, a grande responsabilidade que neste momento temos entre mãos, não poderá ser «maior», mas cremos que virá a ser outro, como se poderá ver pela sequência de imagens que documentam as transformações da casa que foi de Llansol e o seu espólio. O nosso dia-a-dia nessa casa, com essa casa e a presença permanente de quem nela viveu e escreveu – Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim –, poderá entender-se bem à luz de um último fragmento de Roland Barthes em que se fala da «conversa» inacabada com os que partiram nos lugares que foram seus – no «jardim que a ausência permite», que também Llansol habitou em Amigo e Amiga:
Partilhar os valores do quotidiano silencioso (gerir a cozinha, a limpeza, as roupas, a estética e como que o passado dos objectos), era o meu [é o nosso] modo (silencioso) de conversar com ela____ (p. 205).
Cruzaram-se por estes dias, na nossa experiência de leitura – da Vina e minha –, duas figuras que nos levaram a reflectir sobre «a experiência abusiva da morte» (Amigo e Amiga, 16). Abusiva é a experiência da morte quando se sente que esta não existe (Llansol), ou quando se rejeita o chamado «trabalho de luto» como forma de a exorcisar e «resolver» (Roland Barthes). São estas as duas figuras que em nós se cruzaram: Roland Barthes, de quem acaba de sair um Diário de Luto (Journal de deuil) pela morte da mãe (que já suscitou polémica, e que eu trouxe de Paris, aonde fui para o lançamento de O Jogo da Liberdade da Alma + O Espaço Edénico em tradução francesa); e, naturalmente, Maria Gabriela Llansol, sobre cuja partida passa hoje um ano. Por um desses acasos que nos estão sempre a acontecer na casa e com os papéis que foram dela, ao procurarmos nos cadernos inéditos, a partir de 1974, registos deste dia 3 de Março, démos com uma anotação no caderno 8, datada de 26 de Março de 1980, o dia da morte de Barthes, e intitulada: «Minha homenagem a Roland Barthes».
Diz o seguinte (a nota, apesar de breve, é de peso pelo que significa para o despoletar de uma nova escrita em M. G. Llansol): «26 de Março, quinta. Morte de Roland Barthes [...] Minha homenagem a Roland Barthes: um dia, estava eu em Lovaina a ler Inácio de Loyola, Fourier, Sade [sic], mais precisamente Inácio de Loyola, quando senti que se reestruturava todo o meu aparelho de escrever, sem saber que iniciava o caminho de O Livro das Comunidades. Disse: 'Era uma vez uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre. Vivia numa grande casa...'».
Posteriormente, continuando a busca de textos escritos por Llansol em dias 3 de Março, salta-nos de um dos cadernos um daqueles longos fragmentos, tão frequentes nestas fontes inéditas, cuja fulgurância e pertinência era tal que esquecemos as datas de 3 de Março e decidimos que seriam essas páginas que vos daríamos a ouvir hoje. Páginas que, à semelhança de outras que conhecemos de M. G. Llansol, falam da «biografia» que ela não teve, se por isso se entender um espaço de vida mais ou menos cheio de acontecimentos e balizado por duas datas, e não, como neste caso mais importa, uma «signografia do Há», isto é a escrita dos sinais que marcam uma existência e lhe conferem sentido. Uma «relação amativa» com o mundo, e não uma mera «organização de vida», como escreve também Barthes no seu Diário. No caso de Llansol, as marcas de sentido da existência são essencialmente os sinais de escrita que totalmente a preenchem e absorvem, como uma «segunda natureza», e que deixou disseminados por qualquer coisa como quase trinta mil páginas manuscritas e dactiloscritas.
Durante este primeiro ano da sua ausência, também alguns de nós, depositários e continuadores da sua Obra, moradores do Lugar que a viu escrever nos últimos anos de vida, ocupámos em grande parte o nosso tempo com um «trabalho de luto» sem luto, mas preenchido pelo diálogo diário com a escrita e o mundo de Maria Gabriela Llansol. Trabalho não de luto, mas de mágoa (chagrin), porque não paralisante, mas estimulante, como o descreve Barthes:
Não preciso de solidão, preciso do anonimato (do trabalho). Transformo o «Trabalho» em sentido analítico (trabalho de luto, trabalho do sonho) em «Trabalho» real – de escrita. porque: O «Trabalho» pelo qual (como se diz) saímos das grandes crises (amor, luto) não deve ser resolvido à pressa; para mim, ele só se consuma na e pela escrita. (p. 143)
Este foi para nós um ano de permanente actividade, de grande intensidade, de muita persistência e alguma daquela «coragem», diferente da que foi preciso ter na fase da doença da Maria Gabriela, de que fala ainda Barthes numa das fichas do seu Diário de Luto:
As pessoas desejam-nos «coragem». Mas o tempo da coragem é aquele em que ela estava doente, em que eu tratava dela vendo o seu sofrimento, as suas tristezas, e quando era preciso esconder as lágrimas. A cada momento era preciso tomar decisões, assumir uma figura, e é isso a coragem. – Agora, coragem significaria vontade de viver, e isso não nos falta. (p. 51)
O nosso luto foi-se fazendo, faz-se, como aprendemos a fazê-lo com a mulher de Amigo e Amiga, o «Curso de silêncio» de Llansol em 2004 – como uma caminhada para a luz que continuará a vir desta escrita, ou, com Barthes, como uma predisposição para encontrar sentido na ausência:
Luto: não esmagamento, bloqueamento (o que pressuporia um «preenchimento» completo), mas sim uma disponibilidade dolorosa: estou alerta, expectante, à espera que chegue um «sentido de vida». [...] ... situação sem chantagem possível. (pp. 90-91)
Sem chantagem e sem cair na ilusão de que o tempo «atenua» ou «resolve» o luto. De facto – outra ideia central neste livro de Roland Barthes e em Amigo e Amiga –, ele apenas o transforma, fazendo-o «passar de um estado estático (de estase, obstrução, recorrência repetitiva do idêntico) a um estado fluido». Também nós, se tivéssemos «resolvido» o luto, nunca poderíamos dizer, como o diz Barthes, e Spinoza poderia ter escrito – sem qualquer masoquismo –: «Habito a minha dor, e isso faz-me feliz». Porque «a cada 'momento' de dor acredito que é então que, pela primeira vez, realizo o meu luto. E isso significa: totalidade da intensidade.» (p. 85)
Como fizémos então o nosso luto durante este primeiro ano, e como o faremos nos próximos? Fazendo florescer a dor, como Estere em Amigo e Amiga, negando a morte, como em Spinoza e Llansol. Mudando o Lugar, mantendo viva a Obra. Transformando a Casa, como fizémos, e preparando o advento de novos livros de Maria Gabriela Llansol, que em breve começaremos a tornar públicos com a colaboração desta casa, a Assírio & Alvim.
Como diz Barthes, o luto, existindo no tempo, não está sujeito ao tempo, é «contínuo e imóvel». É a vivência mutante de um misto de dor e júbilo em cada momento presente. Ou, como sugere Spinoza, «mestre de bondade» e do «conhecimento verdadeiro»: a morte é apenas a entrada de um corpo noutros modos de relação, e por isso não existe, se for entendida como o Nada com que quase sempre é estigmatizada. Nesse grande e belo breviário do luto que é Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, Llansol deixa também claro que esse trabalho de luto não é um processo de dor que um dia se apaga, mas uma incessante actividade que traz o outro, continuamente, a uma luz sempre diferente, que não se extingue, mas devém outra coisa, não opaca, mas transparente – no seu caso, como no de Roland Barthes, escrita: «Agora, mentalmente, estudo a morte que se apaga em escrita. Escrita nossa... [...]; é como um enleamento de alegria num lugar sombrio e húmido» (A&A, 36), na busca contínua dos modos de metamorfose desse «enigma sem nenhum mistério contundente» que a leva a concluir que «não há mortos e há incógnitas» (A&A, 102-03).
Nessa busca incessante e nessa disponibilidade permanente, que impede que o luto se transforme em recalcamento e em «cura» ilusória, gerando o fim da inquietação e do diálogo com a ausência, o seu «trabalho» acontece em momentos sucessivos de activação produtiva da dor (da memória), momentos de coincidência (e, para a mulher de Amigo e Amiga, de pacificação progressiva dessa dor) em que, compreendendo «a beleza mutante do silêncio» perante a ausência, quem vive o luto «veste o xaile da consolação da morte» (A&A, 150) e entrega-se à «causa amante da metamorfose». Lenta metamorfose, numa via progressiva, e sem fim, de encontro com a transparência no meio da noite obscura. Assim, a própria morte se submete à lei dessa «causa amante» (Llansol) ou «relação amativa» (Barthes), para se transformar numa «imagem inflorescente», fonte de um «devir maior» – lemos ainda em Amigo e Amiga.
O devir do texto de Maria Gabriela Llansol depois da sua passagem, a grande responsabilidade que neste momento temos entre mãos, não poderá ser «maior», mas cremos que virá a ser outro, como se poderá ver pela sequência de imagens que documentam as transformações da casa que foi de Llansol e o seu espólio. O nosso dia-a-dia nessa casa, com essa casa e a presença permanente de quem nela viveu e escreveu – Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim –, poderá entender-se bem à luz de um último fragmento de Roland Barthes em que se fala da «conversa» inacabada com os que partiram nos lugares que foram seus – no «jardim que a ausência permite», que também Llansol habitou em Amigo e Amiga:
Partilhar os valores do quotidiano silencioso (gerir a cozinha, a limpeza, as roupas, a estética e como que o passado dos objectos), era o meu [é o nosso] modo (silencioso) de conversar com ela____ (p. 205).
Maria Gabriela Llansol
Fragmentos dos cadernos inéditos
Fragmentos dos cadernos inéditos
26 de Fevereiro 1985, terça-feira
Penso que se morre com a sua biografia _____
esta noite, apoio a mão na minha boca e penso, para brincar, nas espirais de liberdade da minha vida; entre mim e a morte esvoaça a minha biografia;
um exercício sobre temas remotos que um dia se elevaram um pouco acima de nossas cabeças. O que havia para ver nesse depósito de energia intensa não será susceptível de ser guardado em nenhuma fonte ou guardanapo dobrado de leitura.
Dispunha-me a ir jogar à bola no centro do pátio quando me introverti a pensar, intensamente, que um dia alguém se lembraria de não me deixar morrer. Morrer do modo simples das toalhas, ou lençóis, que pousam abertos na terra.
Há eus sucessivos, simultâneos, estáticos, em movimentos, postos de claridade, e de mistura incessante de pequenos vidros de ideias inteiras e partidas; composições que me apresentam para eu fazer, e que eu passo, porque sou livre,
a outro canto mais claro de mim mesmo;
há um rosto aparente
tempo vencido e mal aureolado por uma moldura;
Saio para o pátio, para tentar continuar a estar só antes de ir para a Escola ____ jogando com as diferentes janelas da casa, entre as quais a do meu quarto
que reflecte a da sala de jantar.
Aprender a desobedecer assenta-me como uma capa, diz o Mestre Escola; assenta-me como uma luz, diz o eu de um dos vícios que tenho.
[...]
Esta biografia que esvoaça, e que se apresenta à minha frente como uma veste necessária de destinos originais,
é ermo. Onde ela surge, desaparece o meu corpo humano. É tão absurda, melhor, cruel, como esta reflexão partindo da boca de uma criança.
Entrego ao Mestre-Escola, tal qual, este papel.
Ele lê-o duas vezes, e imediatamente deixa de saber quem é, e onde está. A sala de aula circula. Os rapazes gritam: — Mais uma vez chegaste atrasado. Nessa circulação, o Mestre-Escola é invadido pelo depósito de energia que havia em mim, o reverso, o medo depressivo.
Para se defender de mim, que sou o verdadeiro agressor, pega na régua estendida sobre a mesa e pára na minha frente para bater-me: — Um, dois, três — tudo o que tinha feito surgir do nada se desfaz a este ritmo, se integra perfeita e sonoramente n'Ele.
Biografia — uma imensa tristeza; aprender em vida a sentir-se morte.
2 de Março 1985, Sábado
Uma confidência
Que alegria eu teria se recebesse uma carta,
alguém dizendo-me
acabou-se a finitude.
[…]
É perigoso continuar aqui.
Chamam-me;
apanho do chão
as minhas reflexões,
e vou-me embora.
Tomar estas notas
para vós
é o meu caminho
por entre a morte.
(Caderno 1.17, pp. 289-301)
*****
25 de Maio 2002Parti para muito longe daqui, e tão cedo não voltarei, salvo se o ruído do mar me trouxer; o verde terminou nos pinheiros, só há pinhas indigestas que os homens não comem, e quando olho para cima, deitada debaixo de outro pinheiro verde, acomete-me o enjoo do espaço como o balanço compassado de um navio __________
Que fazer ao mal de morrer?
27 de Setembro 2002
Apago o desenho que já fiz — e as cadeiras estão vazias à volta da mesa. Apaguei as árvores que desenhara sobre o texto, mas elas permanecem erguidas pelas raízes nas cadeiras. O vento derrubou um copo de vidro e de papel. A brisa, agora feita vento, sopra.
[…]
Brilha, perto, aqui, sobre aqui — e sobre tudo —
a luz da vida.
(Caderno 2.63, pp. 51 e 67)