3.3.09

DESDRAMATIZAR A MORTE



Quando, em Maio de 2006, saiu Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, esse livro magnífico em que Llansol subverte as noções correntes da psicanálise sobre o «trabalho de luto» desde Freud, dois legentes, com os nomes de código de Metanoite e Legente, mergulhados nesse livro, mas também dispersos por outras leituras, foram trocando durante três dias, no «Skype», impressões sobre o que estavam a ler, e sobre as vantagens e inconvenientes da dispersão. A troca de ideias lança aqui e ali alguma luz sobre esse grande «livro das transparências» e as perplexidades da sua leitura, um livro que faz um percurso admirável do luto para a luz – como aquele que, neste Espaço do Texto de Llansol, procuramos ir fazendo depois do seu desaparecimento, faz hoje um ano.
Talvez por isso se justifique a transcrição parcial dessas conversas neste dia: é mais uma forma de desdramatizar a morte, fazendo viver o texto, também ele disperso, fragmentário, bloco errático e coeso de pensamento e beleza.


13.5.2006

Metanoite: 19:09:40
Apanhas-me no meio desta conversa e do Amigo e Amiga [A&A]. Não estou a tomar notas sobre isto, não, estou a anotar o que A&A me diz, para além do que leio. Também aqui há dispersão: ler é dispersarmo-nos, escrever é reencontrar o obelisco orientador no meio do labirinto. Deixa-me concentrar agora um pouco no A&A. Também neste espaço do Skype, como no telefone, diz a escrevente do texto, pode haver «recolhimento» (acho que ela aprendeu isto quando A., ou o Nómada, estava no hospital). Respondendo agora ao teu «ensaia-te, perde-te»: seria muito bom se também tu encontrasses os teus obeliscos...

Legente: 19:12:36
Encontrarei o meu obelisco, mas agora vai para o A&A e não te disperses comigo (mas foste tu que vieste «desinquietar-me»)...

Metanoite: 19:15:34
Sim, sim, eu des-inquieto – outra bela contradictio in adiecto da línga portuguesa! Pronto, vamos à leitura-dispersão. Por enquanto, não tenho obeliscos à vista, mas eles virão, como sempre... Até mais logo. Acho que vou guardar este chat, nunca se sabe se daqui não nasce alguma coisa (é o vampirismo literário em acção!).


Legente: 22:25:18
Já vi o mail e já re respondi...

Metanoite: 22:51-02
Só agora vi a tua resposta. E já leste 40 páginas? Muito mais do que eu, que desta vez vou mais lento. Em parte, à cause das dis-persões, e também porque a cada página paro para anotar coisas. E hoje quase não li nada. Amanhã avançarei mais.

Legente: 22:53:56
Li a primeira parte, que vai até à pág. 46 – uma primeira leitura ainda.

Metanoite: 22:58:38
Primeira leitura? A minha vai ter de ser primeira e última – para já. Depois da primeira vem a escrita. Estou com algum temor, porque neste caso, como dizia o AJ na Causa Amante, posso identificar o referente inicial. E isso perturba mais a escrita. Apetece só ler e não dizer nada, mas, como sempre, cai-me a escrita em cima... É fadário, diz também o CCSC no Vedutismo!

Legente: 23:03:53
Hoje já não vou fazer mais nada – o A&A deixou-me «transparente» e demasiado (ou não) legente (é como dizes, desta vez torna-se mais difícil).

Metanoite: 23:11:41
Eu queria ler mais hoje, mas sinto o peso nos olhos, não sei se consigo, mas tentar vou... A ver no que dá a leitura...

Legente: 23:17:36
Talvez te siga e vá também ler mais um pouco.


Metanoite: 23:51:31
Afinal estou a ler, não o A&A, mas o teu Plotino – tinha começado, mas parei. E agora sinto que pode ter a ver com alguma forma de belo mais belo na MGL, apesar de o ponto de partida ser perfeitamente clássico... Veremos...
00:15:41
O teu caderninho do Plotino é muito jeitoso, porque do lado direito leio o texto e do lado esquerdo anoto e vou prolongando o que leio! Mas depois cais-me tu no meio da prosa... Ainda ia a dizer-te que não sei se a «suspensão que faz ver o infinito», que está no teu mail, é a différance do Derrida, podia também ser MGL neste livro: «saltando por cima dos diários e cursos para encontrar o que não vejo ainda»...


15.5.2006

Metanoite: 11:41 PM
Estou novamente no A&A, tenho de avançar rapidamente. Já recebi o convite para os poetas gregos, com a Hélia e o Frederico L., na sexta às 18,30 h, FNAC Chiado. Vamos ver se a MGL está disposta a mostar-nos as fotografias nesse dia à tarde. Sabes que acho que ela está a enredar-se nas suas obsessões e figuras, e a escrita está a ficar impenetrável nesta parte, 'Parasceve'? Já se torna difícil encontrar qualquer fio condutor, só se podem ler fragmentos... Não sei, vou continuar a ver onde nos leva a leitura...

Legente: 11:51 PM
Pois é, a MGL... Tenho de continuar amanhã, mas sabes que encontrei um fio que orienta? Vamos ver, ainda é cedo para falar...

Metanoite: 11:52 PM
Então diz-me que fio é esse! Eu também tenho os meus fios, na primeira parte, é claro, nesta é um enredamento a partir de certa altura. Até meio, o movimento gira entre dois lugares, o Parasceve, a cúpula da árvore, e o lugar de Nómada, o quarto dos ramos. E o que se passa é que a mulher, construtora de frases, etc., busca o seu lugar neste vaivém. Mas a certa altura parece que se perde o pé no paroxismo das imagens e de uma reflexão voltada para dentro, girando em torno de si mesma, abstracta no concreto, tudo fragmentado e espiralado... Bom, vou parar de pensar e continuar a ler...


16.5.2006

Metanoite: 12:04 AM
Olha, a resposta a estas perplexidades está no fragmento da pág. 102! É o «fulgor oscilante da leitura»!

Legente: 12:07 AM
... eu fiquei sem saber se ainda estavas a escrever. Quanto ao fio, amanhã mando-te um mail falando dele... Agora li-te e perdi o fio, isto é tudo muito rápido... dizia eu, ou queria dizer, que o abstracto/concreto (como te dizia ontem) é um dos meus fios... e já me perdi outra vez, porque voltei a ler-te, sou pouco versátil a skypar/pensar, não gosto disto para pensar a escrita!

Metanoite: 12:16 AM
Esquece o pensamento a voar, vai dormir... Eu ainda continuo a ler um pouco, preciso de terminar isto até quarta, o mais tardar. Essa do abstracto/concreto torna-se óbvia a partir de certa altura, mas é um fio apenas de processamento da escrita, não de substância...

Metanoite: 6:58 PM
Olha, quando abrires isto de novo já cá tens novidades... Mas antes te digo que vou avançado na leitura, e que o trabalho de luto da «estere» é impressionante! E talvez, depois de lermos esta parte – em especial págs. como as 159-161 –, tenhamos de rever posições quanto à «cura», pelo menos no que se refere ao papel da escrita nisso...
Vou continuar na leitura da ressuscitação, no trabalho da «beleza mutante do silêncio» neste livro da transparência (diz-me o que te fez chamar-lhe ontem livro da transparência, para ver se coincide com a minha ideia: pensei mesmo dar esse título ao que vou escrever, mas pode também ser outro, ainda não sei).



9:26 PM
Deves estar no jantar, e eu para aqui a massacrar-te! Depois de um dia com o A&A, estou arrasado e empolgado com mais este livro! Não há gente neste país para ler isto! E depois há o outro lado, que não aconteceu com nenhum dos outros: tudo isto nos toca de perto, na pele. Pode ser uma vantagem, mas é uma experiência de leitura estranha e perturbadora, para quem sabe que tem de falar disto por escrito e tem de ignorar os referentes em que estamos de corpo e alma! Já percebi por que é que a parte de Parasceve era tão difícil de atravessar: para o próprio processo da mulher que escreve tinha de ser assim, esta travessia dolorosa do deserto era necessária para depois, pouco a pouco, despertar de novo para a alegria. E de facto assim é: estere é a mulher-madeira, sólida e disposta a arder, pronta para a ressuscitação, porque percebeu que a morte é apenas uma imagem de inflorescência de onde cai uma pétala em que o mútuo se espelha sem se apagar. Estou já a delirar na escrita, tenho de guardar tudo isto para o que terei de escrever – e já sei que não posso escrever neste tom e deste modo, por isso me derramo... Sorry! Daqui a pouco conversaremos por aqui, talvez! Quero acabar de ler ainda hoje, para amanhã de manhã já poder arrumar ideias para a escrita. Precisava de ter três páginas de jornal à minha disposição, em vez de uma! Bom apetite, e até já!


Legente: 11:10 PM
Ainda estou sem palavras e não voltei a ler depois das cinco da tarde, tive de parar... O meu corpo não estava a aguentar tanta emoção. Não pelos acontecimentos, com isso já estava a contar, mas pela escrita – não sei como se pode chegar tão alto naquela fusão de pensar e sentir. E o texto transparente... pois é. Lembras-te de que lhe chamei assim no primeiro dia? E agora vejo que essa intuição era boa, porque este é o «texto transparente»! E como! Sinto a cabeça em confusão..., estou estranha, cheia de imagens (voltei a Ela – a imagem) e outras coisas que tento arrumar na cabeça, mas começa tudo a ser tão vertiginoso... Não quero interromper-te a leitura. Até já.

Metanoite: 11:13 PM
Pois, entendo... Mas quem escreve tem de saber controlar também essas catadupas de emoções. Não há inefáveis! Como, aliás, este livro prova à evidência! A dor não faz necessariamente emudecer, só emudece quem não tem voz. Também eu parei, porque sinto que hoje já não tenho cabeça para o resto – apesar de as últimas páginas não serem tão intensas, são mais uma deriva, com regressos a Bach/Aossê e às ruas, com os seus «transeuntes flutuantes». Amanhã acabo, e penso.


(Fotos de Legente e Metanoite)