XV JORNADAS LLANSOLIANAS
PAISAGENS DO MUNDO E DA ESCRITA
A reflexão sobre «Os rostos da paisagem« na escrita, no quotidiano, na imaginação de Maria Gabriela Llansol cobriu nestas Jornadas um leque amplo, com intervenções que procuraram, tanto reconstituir algo que se poderia designar de organon da paisagem neste universo, como articular as suas visões da matéria com a tradição filosófica ou artística, cruzar o motivo do olhar, central para o diálogo com a paisagem, com a reconstituição poética de experiências pessoais, ou ainda ler a problemátiuca da paisagem em Llansol à luz da situação do mundo contemporâneo, com todas as implicações políticas que isso contém.
João Barrento abriu as Jornadas falando da paisagem como espelho do humano em Llansol, partindo da frase: «Se eu conseguir colocar o Texto em consonância, o melhor do humano é-me devolvido pela paisagem» (Lisboaleipzig). A partir desta epígrafe programática, sugeriu uma interacção essencial para a compreensão da noção de paisagem em Maria Gabriela Llansol: entre o Texto (na sua capacidade visionária e transformadora), o que há de mais humano no humano (a predisposição para ver o mundo e elevá-lo a uma potência superior), e a paisagem como agente activo do auto-conhecimento e da transformação da «espécie», detentora de um «sexo» próprio, o «terceiro» (mas não o neutro), a energeia ou vibração que confere a cada um dos seus «rostos» uma alma própria onde habita o silêncio. A partir daqui, a reflexão orientou-se no sentido da possível reconstituição de uma espécie de catálogo dos rostos da paisagem em Llansol, com os mais diversos perfis e referências que remetem para um núcleo estável, algo assim como o arquétipo da paisagem nos textos da autora, com o olhar no centro de uma relação do Eu com um fragmento de natureza que responde a esse olhar (contrariamente à indiferença da natureza, ou à relação de cobiça e interesse com o que no seu Texto dá pelo nome de «território»): «O olhar transmite a paisagem – e liberta-a».
A escritora Julieta Monginho construiu o seu texto – uma abordagem de escritora, entre o reflexivo e o narrativo, o imagético e o poético – com base nos motivos do olhar e da troca, evocando (a partir de uma frase do livro Parasceve: «sobre esse rosto se há-de debruçar uma pessoa amada») rostos da paisagem que vão emergindo de um fio de situações e imagens que partem da experiência pessoal da «paisagem» de um bebé e a mãe, com remissões pertinentes para os textos de M. G. Llansol. Os dois planos interpenetram-se, constituindo um «ambo», e as paisagens que vão surgindo da narrativa nascem desse olhar que vê «o Aberto» na sua forma mais original e mais pura. Como em Llansol, as paisagens vão sendo, também em mais esta obra de Julieta Monginho, libertas de convenções e de definições mais expectáveis.
A professora de Filosofia Isabel Santiago começou por resumir o sentido geral da sua intervenção através de algumas questões a que depois foi dando resposta: «O que pode haver numa obra literária que dela também faça emergir a pergunta o que é a paisagem? O que pode haver num acervo de textos como os de Maria Gabriela Llansol que nos leve a afirmar que há rostos da paisagem? Uma obra literária que nos faz formular questões desta natureza é também obra filosófica, é também uma ontologia, uma ética e uma estética... «Considerando que em toda a obra de M. G. Llansol há um hibridismo evidente entre literatura e filosofia, aproveitando a sua especial afeição por Espinosa, decidi assumir como ponto de partida um cuidado mais analítico para a compreensão dos termos que nos permitem fazer um excurso que nos conduz à paisagem e à resposta à pergunta que guia estas Jornadas». Uma paisagem que só se vê de olhos fechados e sem luz, numa cegueira de revelação, ou quando os sentidos se fundem e se envolvem para ver, numa abundância de visão, o visto.
Teresa Cadete (a professora, ou Teresa Salema, a escritora) parte da ideia da História como uma série de estratos – no jogo de palavras alemãs que usou, entre Geschichte (a História) e Schichten (estratos) – para entrar no tema das Jornadas vendo a noção llansoliana de Paisagem, sem qualquer espécie de encenação, como antídoto do sempre igual da História. Propõe assim, como diz o título da sua intervenção («Il faut cultiver notre paysage – Resgatando o espírito crítico com Maria Gabriela») – uma leitura claramente política do tema. Maria Gabriela evoca as paisagens com a consciência de que nelas o Texto pulsa e respira enquanto extensão, o que implica que as suas paisagens raramente deixam de ser paisagens disruptivas. É mais um sinal daqueles «factores profundos de ruptura e fragmentação de que Maria Gabriela foi uma sublime sismógrafa», e que nesta intervenção foram comentados sobretudo a partir da primeira trilogia, «Geografia de Rebeldes», onde as visões da contra-História proposta são sobretudo «lugares de vida».
Teresa Huertas (fotógrafa) e Teresa Mendes Flores (Investigadora da história da fotografia) trouxeram-nos contributos específicos dos seus respectivos domínios de actividade, que no entanto revelaram surpreendentes paralelos com a visão e a vivência da «paisagem» em Llansol.
Teresa Mendes Flores falou das noções, essenciais em Llansol, de «Paisagem», «território» e «Natureza», do ponto de vista próprio da fotografia, e colocando e comentando uma série de questões que a fotografia sugere desde as suas origens. Como pode a fotografia ser uma prática de paisagem? E que prática: contemplativa ou «territorial»? A que tipo de representações chamamos paisagem? Como é que a fotografia trabalha esta tradição paisagística e poética? Será a paisagem um género apenas do espaço ou também do tempo, da duração? Serão todas as fotografias, potencialmente, paisagens?
E trouxe um exemplo que mostra claramente como uma «paisagem», diria também Llansol, pensando nos modos de a olhar, se transforma em «território». Trata-se de um conjunto de fotografias pouco conhecidas, atribuídas a Gago Coutinho e produzidas no contexto das missões de delimitação de fronteiras coloniais no início do século XX, neste caso em Moçambique. Foram fotografias activas na construção de um imaginário territorial e colonial, no sentido da apropriação e do poder, com as suas implicações paisagísticas. O que leva à questão final: Será que podemos despolitizar uma paisagem?
Mostramos a seguir algumas das fotografias dessa sequência de várias centenas, apresentadas em Power Point.
Por seu lado, a fotógrafa Teresa Huertas (que já esteve no Espaço Llansol em Janeiro de 2013 apresentando as suas fotografias de paisagens da Islândia, reunidas na exposição «Lava Walks»), mostrou-nos desta vez a versão em video de sequências fotográficas de uma paisagem única, e sempre em transformação, de montanha e nuvens (que recebeu o Prémio da Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira em 2020). Intitulou-a Atmós [passagens # 1], e explica que se trata de um trabalho fotográfico que utiliza a paisagem natural como referente para questionar a percepção e a sua relação com a duração. Sem se «inspirar» directamente na Obra de Llansol, a convergência é evidente. Trata-se da construção da «experiência de um lugar que enfatiza a duração lenta como simulacro da temporalidade da natureza e sobretudo como estratégia perceptiva». Como em Llansol, pretende-se evocar a relação entre natureza e paisagem, lugar e experiência, através de uma «estética do lento» que evidencie o tempo como fluxo, num «manifesto de resistência à cultura visual da aceleração e da hiper-estimulação». A versão em video (de que mostramos três imagens) corresponde ao que a autora designa de «encontro sensível» entre o que vemos e o que nos olha. Estamos no âmago da ideia de «paisagem» em Llansol.
Três stills da sequência Atmós
Projectámos e comentámos ainda dois videos feitos a partir de Textos de Maria Gabriela Llansol, e já mostrados em momentos anteriores: Presença, de Regina Guimarães (feito, a partir de O Senhor de Herbais, para o «2º Colóquio Internacional M. G. Llansol», no Convento da Arrábida em 2003); e Hölderlin: O sexo da paisagem, de Daniel Ribeiro Duarte (construído a partir dos livros Onde Vais, Drama-Poesia? e Hölder, de Hölderlin), que integrou a grande exposição sobre lugares e figuras de Llansol no CCB-Centro Cultural de Belém, em 2011.
E tivemos ainda a apresentação de dois livros novos:
Cristiana Vasconcelos Rodrigues fez, mais do que uma apresentação, uma leitura pormenorizada desse extraordinário trabalho de luto que percorre o livro Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, agora em nova edição com xilogravuras de Ilda David'. E ouvimos a voz de Llansol lendo algumas passagens deste livro. A apresentação destacou os inúmeros ecos de Espinosa (a Ética ou o Tratado da Reforma do Entendimento) no modo de relação de uma «alma em devir« com a realidade da morte, num percurso e num trabalho de luto fora do comum, que leva a figura de mulher que o faz a uma travessia da «metanoite» à rebours, através da progressiva intensificação de transparências, do negro ao azul e à luz.
As xilogravuras de Ilda David' na nova edição
João Barrento sintetizou brevemente os contributos das nossas Jornadas de 2023, reunidos no volume da colecção «Rio da Escrita» «O Prazer do Reino Animal. Um bestiário Llansol, lembrando que o livro cobre todos os campos de um possível «bestiário Llansol» no tratamento de figuras animais de todos os tipos: reais e dialogantes, míticos e fabulosos, ou animais-objectos que ganham estatuto de figura, até ao próprio Texto como ser animal, «um animal chamado escrita», como lemos já em Causa Amante. Desta presença dominante e exemplar do animal para a própria espécie humana falaram nas Jornadas de 2023, com recurso a muita da literatura e filosofia contemporâneas que se ocupam desta matéria: os escritores Maria Esther Maciel (de Belo Horizonte, Brasil), a nossa Hélia Correia, José Manuel de Vasconcelos, a jovem poeta Maria Brás Ferreira e ainda o investigador e professor na área da Filosofia Jorge Leandro Rosa. O livro fecha com um inédito de Maria Gabriela Llansol (que anuncia já Os Cantores de Leitura): «O Livro dos Aninmais no Deserto» (uma fábula inacabada).
As Jornadas deste ano foram, como sempre, acompanhadas de uma exposição sobre o tema e de um caderno (Llansol: Os Rostos da Paisagem) com textos éditos e inéditos e um extratexto com fotografias de muitas das «paisagens» llansolianas: «Paisagens de fora: O mundo», «Paisagens do exílio»; «Paisagens do regresso», «Paisagens de dentro: As casas».