25.11.25

 O LUGAR DE UM LEGADO

O espólio literário e documental de Maria Gabriela Llansol foi ontem oficialmente doado à Biblioteca Nacional de Portugal. Mas continuará disponível em formato digital no Espaço Llansol, para quem deseje consultá-lo, em particular investigadores.

Na cerimónia de ontem João Barrento e Maria Etelvina Santos fizeram duas intervenções em que reconstituem todo um caminho feito com Maria Gabriela e depois dela. E Hélia Correia, impossibilitada de estar presente, enviou-nos um postal com a sua mensagem. Deixamos aqui os textos destas intervenções, na sequência em que foram lidos, num dia e numa ocasião de grande significado para a preservação da memória de Maria Gabriela Llansol.

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O ESPÍRITO DA OBRA

Este dia é aquele em que, há 94 anos, Maria Gabriela Llansol nasceu para o mundo, e que, graças a este acto, lhe permitirá permanecer nele para além da morte. Por isso o escolhemos para a doação do seu espólio à Biblioteca Nacional, o que lhe garantirá a duração (durée, diria Bergson) para além do tempo. Não para a imortalidade, mas para uma forma particular de eternidade que a Maria Gabriela conhece do seu filósofo, Spinoza, que lhe diz, através da sua edição francesa, e com Deleuze: «Nous sentons et expérimentons que nous sommes éternels» — isto é, libertos  do tempo, porque deixámos rasto. Maria Gabriela Llansol di-lo numa única frase de um dos seus dossiers dactiloscritos: «A duração é a quantidade indefinida da existência».

Consciente desta possibilidade de prolongar a existência, já doente e no hospital, Maria Gabriela deixou sobre a máquina de escrever, no final do ano de 2006, dois papéis, simples folhas A5, que seriam decisivos para o futuro de todo o seu espólio. Um deles, que lemos como uma doação pré-notarial, é dirigido a alguns dos amigos mais próximos do Grupo de Estudos da sua Obra que se constituira seis anos antes, e em que deixou escrito:

«O que há nesta casa fica sob a protecção de João Barrento e Etelvina Santos, que lhe darão seu destino – o mais conveniente. Nas suas decisões contarão com o apoio de Hélia Correia. Quero dizer que os dois dispõem da propriedade e da orientação desses bens – a que acharem melhor segundo o espírito da Obra. Melissa fica entregue à Hélia.  –  (12-12-2006)».

 

O outro papel, que leio como uma introdução ao anterior, dá numa frase a sua relação afectiva com todo esse «património», e diz simplesmente:

«Carta:

O património

            Tenho por ele um sentimento idêntico ao que se dá às crianças – ondulações de suavidade».

 

O que fizemos até hoje foi tratar esse «património» com o mesmo afecto e dedicação, o melhor que pudemos e soubemos, com todos os cuidados para a sua preservação – e «febrilmente», como nossa «Causa Amante», com aquela «febre de arquivo» de que fala Derrida (depois de ter reconhecido, hélas, que muitas vezes predomina, não a febre, mas o «mal de arquivo» – quando esse arquivo é apenas um depósito morto).

Não foi isso o que aconteceu com todo o espólio – literário, documental, pessoal, material – de Llansol, que acolhemos todos estes anos numa casa viva, e não num arquivo morto, como ela própria desejava quando escreve:

«A casa, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder audaciar-se, exprimir-se em Obra que fique em toda a parte» (Outubro 1995).

O nosso trabalho foi, de facto, como já escrevi no livro que documenta todo o espólio, algo assim como «um laboratório de possibilidades (que temos explorado dos mais diversos modos, com vista à sua divulgação e visibilidade), um campo aberto onde cada peça funciona como uma mónada susceptível de ser integrada em constelações diversas» – é, afinal, também o modo de funcionamento do próprio Texto de M. G. Llansol.

Mas tudo remonta aos cinco ou seis anos (2001-2006) de encontros do Grupo de Estudos Llansolianos, que se ocupou, em discussões regulares e Encontros Internacionais, da Obra de Llansol, tentando encontrar, como ela dirá, «a chave sob a maçã» (e eu acrescento: da árvore do conhecimento do seu Texto e do «Espaço Edénico sem Éden» que é o jardim onde ele nasce e floresce). Foi o começo de uma ligação mais íntima do Grupo à Autora e à sua Obra, que talvez explique a nossa presença aqui, neste acto de preservação da sua memória. Foi a hora do nascimento da «Comunidade que veio» e tornou possível tudo o que aconteceu até hoje com este legado, e que a própria Autora descreve assim no final do livro-balanço da sua Obra, O Senhor de Herbais:


«AS COMUNIDADES


Este livro é o confronto de materiais antigos, centrados sobre o tempo que vivi em Herbais, e um encontro de estudos que, durante várias sessões, se debruçou sobre O Livro das Comunidades. Apesar de participar com o meu silêncio, para não interferir na formulação da reflexão, fui sentindo o apelo outrora fortíssimo que me levara a escrever o livro fonte da minha escrita e do meu lugar no mundo. Seja qual for o meu destino, aí selei um contrato com o vivo, e dei o passo irreversível que tanto hesitei

em dar para um texto capaz de conferir uma expressão actual a gritos humanos e não humanos, abafados pelo «assim é» da história, do mundo, do poder de espezinhar.

Quantas vezes, sentada na minha cadeira a ouvir as discussões, dificuldades e dúvidas, senti finalmente que outros, a seu modo, entravam por uma porta não muito diferente daquela por onde eu entrara. Senti que se procurava a chave sob a maçã,


o mistério não é o medo que tolhe os passos, mas a servidão que trazemos acorrentada às mãos e nos impede de tactear a chave sob a impotência e o júbilo de viver,


senti-me estranhamente bem, sem o peso de carregar sozinha uma escrita que fez de mim um ser com aura, permitindo-me reatar o meu caminho para o humano, de ser alguém de único entre únicos também, únicos não querendo significar especiais nem revelados, mas tão-só responsáveis pelo dado indiscutível de que cada um é irrepetível,

quer goste quer não


a perseverança dos outros deu-me coragem

vi que não era uma singularidade vã.»

Gostaria de terminar evocando aquela casa de Sintra onde tudo ficou, quando a ela regressei, dois dias depois da grande viagem da Maria Gabriela, e em que tive uma espécie de visão de todo o seu mundo, real e figural, que deixei na Introdução ao meu primeiro livro de «ensaios llansolianos», saído ainda nesse ano de 2008:

A consciência, envolta em cálice,

de que o dia nasce...


Há dois dias que sou atravessado, dia e noite, por uma catadupa de imagens, de ideias, de afectos que me deixam num estado às vezes quase febril, outras vezes letárgico, outras ainda numa disposição quase visionária – a que sou pouco atreito – que me enche de desejos e convicções em relação ao futuro que espera o legado, a memória, o que fica do Texto de Llansol.

Voltei hoje a Sintra, pela primeira vez depois da noite do fim. Do comboio, vejo quintais com laranjeiras, limoeiros, nespereiras, sinais de vidas simples e límpidas, e logo a seguir, dominando a paisagem, grandes massas de betão, matéria inerte que sustenta o mundo inerte. E lembrei-me do universo desde sempre mais próximo de Llansol: um mundo de vivos e intensos, de energia e vibração contagiosas, sem distinção entre vivos-vivos e vivos tornados vivos pela força da escrita, como os objectos e o próprio texto.

Na noite anterior imaginara a casa vazia, a guardiã que ficou (a gata Melissa) deambulando por ela a chamar as Figuras para um festim de luto e alegria, para uma orgia grave e jubilosa: o menino-Literatura, a boneca preta do relógio, a Senhora decepada, o homem da bigorna, Témia em equilíbrio instável na sua cadeira, Sant’Ana e Myriam, o carneiro e o cão-lobo, a «jovem vestindo o seu jardim», a máquina de escrever, o candeeiro de abat-jour redondo sobre a secretária, todas as figuras que se agitam no armário que lhes coube como casa – Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach, Teresa de Lisieux e Nietzsche à vista através do vidro –, e as Figuras maiores, os dois grandes companheiros filosóficos e espirituais, abertos em cima da pequeníssima mesa redonda ao lado do lugar de trabalho: Spinoza e João da Cruz.

O terreiro deste grande festim eram as muitas páginas, abertas e estendidas no chão, de todos os livros, d’ O Livro das ComunidadesOs Cantores de Leitura. Era a festa do Texto, sensualética, libidinal, vibrante, orgiástica, de mística e carne, de matéria e espírito, do corpo e da escrita e de todos os arcanos do mundo, sem excepção e sem exclusões. Era a festa da despedida e da esperança, da recusa da «experiência abusiva da morte» e da convicção de que haverá Parasceve, ressuscitação.

Foi então que verdadeiramente compreendi o que este Texto tem para dizer – num único lampejo, como aquele que julguei ver no rosto da Maria Gabriela poucas horas antes da passagem definitiva para a outra margem, o da revisitação de uma vida num instante. E percebi também melhor o sentido daquela frase de Spinoza sobre a qual tantas vezes tinha reflectido, e que a lição de Deleuze me ensinara a entender, mas não a viver em experiência: «Sentimos e experimentamos que somos eternos.»


João Barrento

7 de Março de 2008

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«O teu texto é agora confiado ao edifício forte, aos altos muros feitos de pedras com respiração onde, por vezes, se abrem as janelas.

A irradiação de cada página continuará a transtornar quem se avizinha, e o ar em redor receberá o corpo da palavra, ousado e amante.

E, na desolação do nosso mundo, Prunus Triloba, tantas vezes abatido, de novo levantado sob a luz – o poderoso dom que de ti jorra – manter-se-á o mensageiro do teu júbilo.

Esperas sempre por mim no nosso banco sob a secreta árvore do Parque de Sintra. Esperas sempre por todos no bairro original. Esperas sempre pelo Jade e pelos gatos na solidão de Herbais. Esperas pelos romeiros que hão-de vir à tua nova casa.

Nasces mais uma vez, nasces-me sempre. Aquilo que nos liga – ninguém sabe.

Beijo da tua

Emily» [Hélia]

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DÁ-ME UM LUGAR


eu deslumbro-me quando o tempo se suspende,

e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo.

Maria Gabriela Llansol


I.

Michel de Montaigne relata numa carta o momento em que Étienne de La Boétie se despede dele, fazendo-lhe um pedido meio enigmático: «Dá-me um lugar», é a última frase que repete ao seu grande amigo.

Sempre me impressionou este pedido, por ser uma frase poética na sua essência: reveladora do que não diz, oferece ao leitor um mundo de possibilidades, ficando com ele para sempre. Hoje sei que a Maria Gabriela me fez o mesmo pedido, embora não o expressando desse modo. Corria o ano de 2007. Depois de termos lido e passado, de Maio a Setembro, a versão final de Os Cantores de Leitura, terminando assim um trabalho que, pela companhia, aliviava a sua dor de estar só, uma manhã, na casa de Sintra, a Maria Gabriela pediu-me para abrir os armários das estantes do corredor e tirar tudo o que lá estava dentro. Disse-me: São os cadernos onde sempre escrevi, donde saíram os meus livros. Podemos começar a lê-los, a copiar o que não foi publicado. Vamos dar-lhes um lugar. Pode ser aquele armário que agora está cheio de copos. Fica a ser ‘o armário dos cadernos’. Começaremos a ler as duas o caderno nº 1 e vais passando o que não entrou em livro. Temos aí muito trabalho a fazer. Já tinha pensado num título para o novo livro que viesse a escrever: Livro de Horas. Pode ser esse o título para o que sair do primeiro caderno. Podemos começar no próximo dia. E começámos. Ao reler estas e muitas outras anotações de trabalho, de leitura e reescrita dos textos, apontadas por mim em dois pequenos cadernos, capa de papel kraft, verifico que as suas datas se situam entre Maio de 2007 e Fevereiro de 2008. Seria este o último mês das minhas idas a Sintra tendo a companhia da Maria Gabriela. No final desse mês de Fevereiro, a leitura em voz alta das 370 páginas do caderno nº 1 chegava providencialmente ao fim. A última página fora lida à minha única ouvinte.

Escassos dez dias nos separavam do dia 3 de Março de 2008. Leio uma das minhas últimas anotações: A Melissa passa entre nós e diz qualquer coisa, tão resignada quanto eu. Continuaremos, sabe-se lá até quando, nesta casa de Sintra. Nós e o Texto. Depois, será ele a indicar-nos o caminho.

Há um corredor de claridade que persiste nos meus olhos quando evoco esse momento inesquecível da revelação dos cadernos de escrita e a visão do rio que eles constituíam, espalhados no chão do corredor na casa de Sintra, quando saíram dos armários das estantes. Corredor de claridade que me parece ser a dobra daquele outro que a Maria Gabriela refere, o da casa dos pais, quando escreve «_______ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema». Era o dia 24 de Novembro. Ambos falam do nascimento da escrita e do ser que a viveu. Gosto de sentir que os dois se fundem no corredor de claridade da casa Espaço Llansol, também em Campo de Ourique, por onde se entra continuamente na leitura, por ser a casa onde acolhemos todos os que, connosco, vêm ler e pensar o texto llansoliano. Mas outros corredores se abrem a partir de hoje: os desta Casa-mãe que preserva a memória e que, a partir de agora, será a guardiã do espólio de Maria Gabriela Llansol, o seu Lugar.

A noção de Lugar sempre foi importante para a Maria Gabriela, que o definia como um Encontro primordial. Ainda que aconteça num determinado espaço, ultrapassa-o geográfica e temporalmente. Foi a partir do Lugar llansoliano que entendi melhor o pedido lançado a Montaigne: «Dá-me um lugar». Há um espaço físico, material, onde se cuida e se preserva a memória. Mas há também o lugar imaterial, o do testemunho, onde as figuras nascem para a sua sobrevida. Este é o lugar do encontro que depende de nós. «Não fiques a recordar; se a amas, trá-la de volta», escreve a Maria Gabriela, num diálogo com Jade, em Onde Vais, Drama-Poesia? Parece-me ser este o outro sentido da frase de La Boétie.

 

II.

Nas últimas páginas do Diário 3, Inquérito às Quatro Confidências, Maria Gabriela Llansol enuncia um pequeno diálogo com Vergílio Ferreira:

 

    O mundo existe e o Vergílio morreu, mas

    mais uma palavra me pede a escrita.

    — Gabriela!

    — Sim!

    — Ver-nos-emos face a face, daqui a milhões de anos.

    — Sim!

    — Faça a sua parte! Sem medo, sem medo, sem medo.

 

Em momentos de desânimo, sempre me lembrei destas palavras. Sabia que também eu teria de fazer a minha parte, e sem medo. Como cada um de nós. «O caminho caminha», como escreveu a Maria Gabriela, e essa parte que me coube em sorte chega hoje aqui. Essa, porque a outra, a do lugar da toalha de leitura continuará o seu percurso em mim, é como um respirar, é o que com humildade sinto que posso ir fazendo – trazer os outros ao Texto. Para isso, guardo sempre comigo esta frase da Maria Gabriela: «Sejamos singulares e totalmente desprovidos de importância».

Agradeço a todos os que, com a sua força inabalável e uma amizade incondicional, me ajudaram a fazer este caminho e tornaram mais leve esta causa amante, sem esquecer a densidade e a beleza da sua raiz. Só podemos antever a direcção do gesto pela firmeza com que seguramos o lápis. Nunca saberemos o que pode um corp’ a screver nem a linhagem que ele dará à escrita.

Lançar uma semente à terra e passar testemunho desenham o mesmo gesto de desprendimento. Creio que a despossessão é uma das formas do conhecimento amativo, aquele que a Maria Gabriela atribuía a Luís Comuns, o poeta.

 

III.

Na última parte do livro Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, sentada junto à grande árvore do Jardim da Parada em Campo de Ourique, depois da morte de Augusto Joaquim, o ausente presente na copa da árvore, Maria Gabriela estabelece com ele um diálogo, apaziguando o processo do seu luto.

São essas palavras que aqui evoco, desejando, a partir de hoje, ouvir a sua dobra na voz da Maria Gabriela, para que também eu, sempre que olhe as árvores da Biblioteca Nacional, me sinta igualmente apaziguada:

    «Ouço-o escrever, na folha de leitura permeável ao vento:

 

    Esta árvore é um metrosideros.

    Eu estou bem.»

 

Biblioteca Nacional, 24 de Novembro de 2025

Maria Etelvina Santos

 


24.11.25

 O PASSADO E O FUTURO:

NOS 94 ANOS DE MARIA GABRIELA LLANSOL


O espólio de Maria Gabriela Llansol, doado à Biblioteca Nacional de Portugal neste dia em que ela faria noventa e quatro anos, é todo um mundo em que «o passado se amplifica e perde os limites». Assim, preservado no Arquivo de Cultura Portuguesas Contemporânea, o seu legado tem já «um futuro a emergir no ciclo do tempo».



17.11.25

 ESCRITA E DESENHO: UMA UNIDADE



O sábado passado, na Galeria Monumental, trouxe momentos de revelação para muitos dos que assistiram à apresentação do último livro da nossa colecção «Rio da Escrita»: «A carne da cor e da imagem«: Os desenhos de Maria Gabriela Llansol.

A primeira revelação foi a da intervenção inicial de Ana Maria Pereirinha, que regressou ao início dos anos 90 para evocar a sua relação com Maria Gabriela, com vista à escrita da sua tese de mestrado, a primeira sobre a Obra de Llansol. Mas também à presença dela e de Augusto Joaquim na Galeria Monumental, hoje dirigida pela Ana Maria e pelo pintor Manuel San Payo, numa série de encontros em que se falava de livros, intitulados «Encontros de Lisboaleipzig».  Llansol havia já escrito, em 1991, o texto de abertura do catálogo de uma exposição de Manuel San Payo na Monumental, em que foi exposto um quadro de grande formato que hoje se encontra no Espaço Llansol.

Quadro de Manuel San Payo (1991)


Depois da projecção de um video que mostra a descoberta e organização de todo o espólio na casa de Llansol em Sintra, muitos desenhos e a sua inserção nos cadernos e ainda o inventário e a classificação do arquivo do Espaço Llansol, Manuel San Payo comentou os desenhos da perspectiva, não só da história desta forma de expressão pictórica, mas sobretudo da íntima relação entre escrita e desenho nos cadernos de Maria Gabriela, onde tantas vezes é evidente o parentesco entre as duas formas de expressão, ambas livres e fora de todas as normas de configuração e de suportes. O desenho liberta a letra, a letra gera desenhos.

João Barrento comentou a natureza particular de grande parte dos desenhos de Llansol como desenhos da imaginação, trans-figurações e não reproduções do real – uma vez mais, tal como a sua escrita. Lembrou algumas das reflexões da própria autora sobre o desenho, e chamou a atenção para a possível tipologia dos milhares de exemplos, que o livro documenta e que encontramos numa grande diversidade de suportes nos cadernos e nos papéis avulsos do espólio, minimamente sugerida pela selecção de desenhos na imagem que se segue.


Deixamos ainda, para quem não conhece o livro, uma selecção de fragmentos de Maria Gabriela Llansol sobre o acto de desenhar, quase sempre na sua inevitável ligação à escrita:

«OS PEQUENOS DESENHOS DÃO PRAZER ÀS LETRAS»
Fragmentos sobre escrita e desenho


O sonho

apresentou-se-me numa sucessão de cenas. Professor de desenho deitado numa cama. Folhas espalhadas. Ensina a vários alunos que se vão sucedendo. Chega a minha vez. Explico-lhe que nem sequer tenho a noção do espaço, que nem sei desenhar. E escrever? Escrevo menos mal, respondo, com um sorriso.



Escrever é menos ácido do que desenhar.

 

Não sei desenhar, mas, escrevendo, sei desenho. Olho, primeiramente, e acima de tudo, para o desenho do que escrevo. Rasurar não é escrever, o texto interrompe-se quando se rasura, quebra o curso que liga a mão a qualquer coisa totalmente inexpressiva enquanto não se exprime nesse movimento. A firmeza deste caderno liga-me à matéria do que sinto ser o mais vibrátil material.  

 

 

Apetece-me desenhar substâncias puras, e permito-me pensar que, desenhando, poderia escrever palavras à vontade, com sublimes erros de ortografia.

 

 

Não desenho, mas capto as linhas do desenho.

Sei qual é a carne da cor e da imagem________       

 

 

O que comanda a minha mão – escrevendo – é o prazer do desenho. Encaracola as letras, dá-lhes um movimento de cavalo, ora em paseio, ora em corrida. Geralmente em corrida.

Só sei desenhar letras, dar-lhes contornos de garupas em movimento.

 

 

... Sinto-me diferente do que sou – subtracção e soma que prossegue acertando contas. As letras seduzem-me como pequenos desenhos livres e acerados. São diminutivos do meu pensamento.

 

 

Eu nunca tinha reparado na beleza de «uma página caligráfica» – vê-la como desenho, obra de beleza, fonte de procura. Nunca tinha reparado – não –, tal era o alvoroço de escrever, de escrever canto, na sua perturbação quente, mas calma.

 

 

Desenho com as letras o que está oculto no meu pensamento e que, sem elas trepidando, ficaria para sempre oculto, pelo menos de vós.

Desenho, com prazer, os contornos, e arrisco-me a voltar a ler a frase depois de escrita. Com prazer.

 

 

Descubro a pergunta: desenhar é melhor do que escrever?

Descubro a resposta: Há uma coincidência feliz entre as duas partes de um todo azul...



16.11.25

 JOÃO MARIA MENDES

Faleceu hoje o jornalista, romancista e autor de importantes livros sobre a história do cinema, director da Escola Superior de Teatro e Cinema e grande amigo de Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim nos anos do exílio em Lovaina. João Mendes daria conta desses anos de convívio, e da sua leitura da Obra de Llansol, no livro Fulgorizações, que publicámos na nossa colecção «Rio da Escrita» em 2019, e que apresentámos com o autor no Espaço Llansol em Setembro desse ano. Nessa sessão regressámos a Lovaina e aos anos 60-70 com um pequeno video que montámos com fotografias do espólio, e que documenta o ambiente cultural, as vivências das escolas fundadas por Gabriela e Augusto e o nascimento do «livro-fonte», O Livro das Comunidades, matérias largamente evocadas e comentadas por João Maria Mendes no seu livro, que também oferece uma fundamentada leitura de toda a Obra de Maria Gabriela Llansol.


João Mendes com João Barrento e Maria Etelvina Santos no Espaço Llansol


A mesa da exposição de 2019, com textos de João Mendes sobre a Lovaina dos anos 70 e a grande entrevista com Maria Gabriela Llansol «No Espaço Llansol«, de 1995



8.11.25

 OS DESENHOS DE LLANSOL



No sábado, dia 15 de Novembro, pelas 17 horas, teremos uma sessão de apresentação do nosso livro A Carne da Cor e da Imagem - Os desenhos de Maria Gabriela Llansol na Galeria Monumental, em Lisboa.
É de certo modo um regresso a um lugar onde Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim iniciaram, exactamente há 31 anos, um ciclo de conversas, os «Encontros de Lisboaleipzig», depois da publicação do livro com esse título, como mostra a folha de divulgação abaixo.

Conversaremos sobre os desenhos com os responsáveis da Galeria Monumental, o pintor Manuel San Payo e Ana Maria Pereirinha, que conheceram Llansol nesses anos. Poderemos ver alguns originais dos desenhos nos cadernos de escrira e folhas avulsas, mostraremos um video sobre a descoberta e organização do espólio em 2008, e teremos à venda livros e cadernos do Espaço Llansol.

7.11.25

 NOVO CURSO «LER O MUNDO COM LLANSOL»

Inicia-se no sábado, 8 de Novembro, mais um curso sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol, que funcionará duas vezes por mês, aos sábados, entre as 15h e as 18h. Este novo curso (com o número de inscrições previsto já completo), entre Novembro 2025 e Junho 2026, centra-se no livro Causa Amante, o primeiro da segunda trilogia, «O Litoral do Mundo».

27.10.25

 XVI JORNADAS LLANSOLIANAS:

A CASA E AS CASAS DE LLANSOL


No passado sábado o Espaço Llansol vibrou de presenças, novos rostos, pensamento e beleza. O tema destas Jornadas, abordado das mais diversas perspectivas pelas intervenções da manhã e da tarde foi uma semente que desabrochou sob múltiplas formas a partir do terreno comum dos textos de Maria Gabriela Llansol onde a casa se revela como Lugar/Espaço/Atmosfera decisivos na sua vida e na sua escrita, na sua vida-de-escrita. 

O tema da Casa insere-se, aliás, num ciclo de matérias afins que vimos tratando há anos nas nossas Jornadas Llansolianas: agora a Casa, em 2024 a Paisagem, em 2023 os Animais, e em 2022, os Jardins. Todos eles componentes essenciais do espaço envolvente e envolvido da Casa e do Corpo que nela se move – e escreve. É o que transparece da selecção de textos de Llansol sobre a realidade e a ideia da Casa no habitual caderno que documenta o tema, organizado em três secções: I - A Luz de uma Casa; II - As casas de uma vida; III - As casas figurais, ou Casas da imaginação e da memória. E também na exposição com materiais do espólio – fotos, textos manuscritos, livros – que sempre acompanha os nossos eventos públicos.

O Caderno


As intervenções das nossas convidadas distribuíram-se por duas «Mesas», a da manhã moderada por Teresa Cadete e com participação de João Barrento, Maria Filomena Molder e Nieves Neira Roca (poeta e jornalista de Lugo, já conhecida dos frequentadores do Espaço Llansol desde 2019).

João Barrento traçou uma perspectiva global da temática da Casa, associando Llansol a outros nomes que pensaram/escreveram a Casa, como o «segundo Wittgenstein» (através da sua leitura por Maria Filomena Molder em A Arquitectura é um Gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano), Emanuele Coccia (no seu recente livro La Folosofia della Casa), Walter Benjamin e Gaston Bachelard, o arquitecto Mies van der Rohe e o seu «deus da casa». Em Llansol, acentuou a vastidão de sentidos que a casa assume, a casa como mundo contra o mundo, existindo sempre, como tudo para Llansol, «em dobra», numa terceira dimensão. A casa, contrariamente à grande tradição do romance realista, é aqui, como o próprio Texto, «lugar que viaja», uma alegoria de mundos-outros em que cada pormenor – espaços, objectos, animais, plantas — é amplificado para permitir tais viagens da imaginação. A Casa e as casas de Llansol são, finalmente, desde os primeiros contos e diários da adolescência, o lugar por excelência do exílio interior que possibilita a escrita e o olhar crítico sobre o mundo.

Maria Filomena Molder, com a sua conhecida capacidade de deambular sem se perder, de ligar pontas soltas, de pensar sempre com os pés bem assentes na vida, fez um périplo luminoso pelos trilhos dos fragmentos de Llansol, e de um dos seus últimos livros onde a casa é o lugar do trabalho de luto – Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 –, le dur désir de durer (Éluard) que só na casa é possível. Falando com Llansol de casas que são estranhas e próprias, das relações entre espaço e tempo na casa e «à sombra da casa», para chegar ao «nomadismo das casas» (e do «amigo», Augusto, A. Nómada), gesto tão llansoliano, necessário para não enlouquecer, fixando-se a um lugar. E tudo isto sem qualquer réstia de metáfora, recurso retórico que Llansol sempre rejeitou.

Nieves Neira, que também é poeta, partiu do Livro de Horas IX (Um Conjunto de Espirais) e das casas de referência nesse período de regresso do exílio, as de Colares: «Toki Alai» (que na língua basca é «Lugar de abrigo» ou «Lugar alegre», «a toca da pura alegria», sentidos que a Nieves comentou com referência ao universo llansoliano e aos «ritmos inquietos» do escultor basco Chillida) e a pequena «Casa da Saudação», lugar de escrita, de comunidade e de aparições, aonde Llansol sempre regressa, mesmo depois de se ter mudado para Sintra. Estas casas foram lidas em registo poético-pensante por Nieves Neira, como exemplos acabados da «mais-paisagem» de M. G. Llansol, com a casa a entrar permanentemente em diálogo com as árvores, o pinhal, os animais, articulando assim também os dois planos da casa a que Maria Gabriela se refere naquele Livro de Horas: o literal e o interior.



A Mesa da tarde, moderada por João Barrento, acolheu duas oradoras desde há muito presentes nas Jornadas do Espaço Llansol, Cristiana Vasconcelos Rodrigues e Paula Mendes Coelho (ambas professoras da Universidade Aberta).

Cristiana Vasconcelos Rodrigues, llansoliana de longa data (os tempos dos encontros com Llansol e Augsto Joaquim), recuperou notas antigas, desde a sua tese de doutoramento, em que as figuras de Spinoza e Hölderlin são centrais, para comentar, agora mais centrada no tema das Jornadas, os textos de Maria Gabriela Llansol da primeira parte do nosso Caderno, «A Luz de uma Casa». E a partir daí lançou luz sobre as metamorfoses da casa, de mero objecto em lugar de vibração e escrita, tendo como fundo a relação entre a casa e o «Aberto» (o que fora dela com ela dialoga), como acontece no exemplo da «casa de Quaercus», o carvalho, em Hölder, de Hölderlin. Ou nos «gestos» (tópico muito presente nestas Jornadas!) da casa no livro da segunda casa de Témia, «a rapariga que temia a impostura da língua», O Jogo da Liberdade da Alma, que é também o livro da reconciliação entre casas, à sombra de Spinoza.

Finalmente, Paula Mendes Coelho centrou-se na relação entre a casa e o exílio, um tema incontornável na Obra de M. G. Llansol. Os comentários orientaram-se para as duas formas de exílio presentes em Llansol, o exílio real de vinte anos na Bélgica, e o exílio do regresso, agora interior, e que se vê confrontado com um país, uma sociedade e uma língua ela mesma exilada. O Texto, e a casa onde nasce, são agora os lugares de acolhimento das muitas figuras e culturas desde início presentes na Obra de Llansol, tal como ela vindas das margens e acolhidas em casas singulares, desde o livro-fonte, O Livro das Comunidades.

E a tarde chegou ao fim, como sempre com leituras de textos de Maria Gabriela Llansol sobre o tema, desta vez pela jovem actriz luso-italiana Matilde Cancelliere, com breves separadores musicais provenientes de peças para alaúde, dos compositores Bach e Weiss, e finalizando com uma «Serenata» (de Schubert) à porta da última casa de Llansol em Sintra.



24.10.25

LLANSOL ENTRE MULHERES 

                                              

Albertina Pena (membro da Direcção do Espaço Llansol) falou hoje de Maria Gabriela Llansol no âmbito da II Conferência Internacional «Mulheres: Mundos do trabalho e cidadania», que teve lugar na Biblioteca de Alcântara, em Lisboa. O tema tratado por Albertina Pena foi: «'Concebe um mundo humano que aqui viva': Maria Gabriela Llansol, um projecto de escrita transformador».


23.10.25

 JOÃO QUEIROZ, COM LLANSOL E SPINOZA

Evocamos hoje o pintor João Queiroz (1957-2025), que recebemos na «Letra E» do Espaço Llansol de Sintra em Abril de 2012. Foi uma das nossas primeiras sessões públicas, com exposição de pinturas de paisagens e conversa em torno do desenho, da paisagem e de Spinoza, folósofo de referência para este pintor-pensador e para Maria Gabriela Llansol. João Queiroz continua hoje presente no Espaço Llansol, com uma das suas obras que nos deixou.

João Queiroz com João Barrento na «Letra E» em Abril de 2012

Pintura de João Queiroz, hoje no Espaço Llansol

22.10.25

 O LIVRO DA PAISAGEM

Saiu, e estará disponível no Espaço Llansol nas Jornadas Llansolianas de sábado, o livro Llansol: Os Rostos da Paisagem, que documenta as Jornadas de 2024.