ESCRITA E DESENHO: UMA UNIDADE
A primeira revelação foi a da intervenção inicial de Ana Maria Pereirinha, que regressou ao início dos anos 90 para evocar a sua relação com Maria Gabriela, com vista à escrita da sua tese de mestrado, a primeira sobre a Obra de Llansol. Mas também à presença dela e de Augusto Joaquim na Galeria Monumental, hoje dirigida pela Ana Maria e pelo pintor Manuel San Payo, numa série de encontros em que se falava de livros, intitulados «Encontros de Lisboaleipzig». Llansol havia já escrito, em 1991, o texto de abertura do catálogo de uma exposição de Manuel San Payo na Monumental, em que foi exposto um quadro de grande formato que hoje se encontra no Espaço Llansol.
Quadro de Manuel San Payo (1991)
João Barrento comentou a natureza particular de grande parte dos desenhos de Llansol como desenhos da imaginação, trans-figurações e não reproduções do real – uma vez mais, tal como a sua escrita. Lembrou algumas das reflexões da própria autora sobre o desenho, e chamou a atenção para a possível tipologia dos milhares de exemplos, que o livro documenta e que encontramos numa grande diversidade de suportes nos cadernos e nos papéis avulsos do espólio, minimamente sugerida pela selecção de desenhos na imagem que se segue.
O sonho
apresentou-se-me numa sucessão de cenas. Professor de desenho deitado numa cama. Folhas espalhadas. Ensina a vários alunos que se vão sucedendo. Chega a minha vez. Explico-lhe que nem sequer tenho a noção do espaço, que nem sei desenhar. E escrever? Escrevo menos mal, respondo, com um sorriso.
Escrever é menos ácido do que desenhar.
Não sei desenhar, mas, escrevendo, sei desenho. Olho, primeiramente, e acima de tudo, para o desenho do que escrevo. Rasurar não é escrever, o texto interrompe-se quando se rasura, quebra o curso que liga a mão a qualquer coisa totalmente inexpressiva enquanto não se exprime nesse movimento. A firmeza deste caderno liga-me à matéria do que sinto ser o mais vibrátil material.
Apetece-me desenhar substâncias puras, e permito-me pensar que, desenhando, poderia escrever palavras à vontade, com sublimes erros de ortografia.
Não desenho, mas capto as linhas do desenho.
Sei qual é a carne da cor e da imagem________
O que comanda a minha mão – escrevendo – é o prazer do desenho. Encaracola as letras, dá-lhes um movimento de cavalo, ora em paseio, ora em corrida. Geralmente em corrida.
Só sei desenhar letras, dar-lhes contornos de garupas em movimento.
... Sinto-me diferente do que sou – subtracção e soma que prossegue acertando contas. As letras seduzem-me como pequenos desenhos livres e acerados. São diminutivos do meu pensamento.
Eu nunca tinha reparado na beleza de «uma página caligráfica» – vê-la como desenho, obra de beleza, fonte de procura. Nunca tinha reparado – não –, tal era o alvoroço de escrever, de escrever canto, na sua perturbação quente, mas calma.
Desenho com as letras o que está oculto no meu pensamento e que, sem elas trepidando, ficaria para sempre oculto, pelo menos de vós.
Desenho, com prazer, os contornos, e arrisco-me a voltar a ler a frase depois de escrita. Com prazer.
Descubro a pergunta: desenhar é melhor do que escrever?
Descubro a resposta: Há uma coincidência feliz entre as duas partes de um todo azul...


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