THOMAS MÜNTZER EM LLANSOL:
AS BATALHAS PERDIDAS DA HISTÓRIA
Resumimos aqui alguns momentos da sessão de sábado, dia 3, em que João Barrento fez uma leitura do lugar do «teólogo da revolução» (da era da Reforma e da Guerra dos Camponeses) na primeira trilogia de M. G. Llansol, incluída no ciclo de sessões do Espaço Llansol «A Restante Vida» (mais documentação, escrita e visual, de Llansol e Müntzer, no caderno editado para esta sessão; e também no video apresentado: vd. link no final do texto).
E o homem entenderá que não pode alcançar a salvação pelo entendimento, mas que terá, em primeiro lugar, de chegar à pureza interior dos simples. Ah, que estranho vento vai ser esse para o mundo letrado, da carne e do deboche.
(Thomas Müntzer, Sermão aos Príncipes, Allstedt, 1524)
... essa turba camponesa que, perdendo em Frankenhausen, fez perder a Europa que, desde então, repousa, em hibernação, na cabeça de Müntzer (...)
Müntzer do meu nome, / ou seja, / Müntzer, filho do nada.
(Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida)
Como explicar a presença de uma figura histórica da Reforma protestante mais radical, bastante desconhecida entre nós, ainda por cima como representante, na Obra de Llansol, da categoria do «Pobre», do desmunido e da despossessão? (vd. Posfácio de A. Borges A Restante Vida).
Talvez porque servia bem a M. G. Llansol – tal como recentemente ao escritor francês Éric Vuillard, com a biografia romanceada de Müntzer que intitulou, com ecos llansolianos, A Guerra dos Pobres (Dom Quixote, 2020) – para evidenciar os grandes desastres da história europeia da era moderna e todas as batalhas perdidas dessa história (não há batalhas ganhas, todas as guerras são perdidas, as de ontem como as de hoje!) Mas Müntzer é ao mesmo tempo promessa: é aí, nas suas ideias, que, «em hibernação», pode estar uma vez mais, para Llansol, o «perfil da esperança» de uma «restante vida»!
O nome de Thomas Müntzer, o «teólogo da revolução» (radical e não «conservadora», como da de Lutero disse Thomas Mann) no livro do filósofo Ernst Bloch com esse título, convoca toda uma linhagem iconoclasta, de uma dinastia de vencidos que se perfila como linha promissora, mas sempre reprimida por toda a espécie de poderes, uma afirmação, sempre adiada, do humano na história alemã e europeia. Na sua primeira trilogia, «Geografia de Rebeldes», Maria Gabriela Llansol faz uma reconstituição (figural e não factual, projectiva e não retrospectiva) da história da Europa e da Alemanha modernas pela via de uma «cultura da memória» (que permite recriar comunidades vivas), e não de uma «cultura da história» (que se limita a registar o que está à vista no palimpsesto do tempo), com base numa «árvore genealógica dos irmãos do Vazio Principal» (traçada no Lugar 24 d' O Livro das Comunidades), onde Müntzer surge como figura central, «filho do Nada», defensor de um vazio que permite o recomeço, arauto de promessas não cumpridas da História dos tempos modernos, os que se iniciam, no século XVI, com «a ética protestante e o espírito do capitalismo» (Max Weber), abrindo nela, com o seu pensamento e a sua acção, «um espaço para a evolução do possível».
Por paradoxal que pareça, uma tal reconstrução viva e humana do passado implica um esquecimento da história que atinge aqueles que «surgem na história com máscaras e trazem, nos fatos novos, remendos do que roubaram aos mortos» (Llansol, Finita). Fora dessa mascarada, e por vezes denunciando-a e enfrentando-a, estão os pobres da história (com a sua «restante vida» alternativa). Thomas Müntzer será um dos representantes maiores desses «sobreviventes da história» saídos da parte perdida da batalha, em A Restante Vida. O que dela resta, e se perpetua, será aquilo a que Llansol chamará precisamente «a restante vida». A restante vida é a verdade possível da história barrada do humano, que salva o esquecido do esquecimento; e o perseverar nesse gesto é uma das formas de revelar a verdade não cumprida da história, daqueles que constantemente «colocam a restante vida num cadinho para a submeter à prova do fogo» (Causa Amante).
É claro que não é a especificidade histórico-cultural da matéria, ou de uma figura em particular, que interessa a Llansol na hora de a trazer ao espaço livre da sua singular comunidade. Para ir ao encontro do que aqui mais importa: para além do seu lugar específico na história da Reforma, Müntzer é em Llansol um paradigma radical do movimento da «liberdade de consciência» nos seus começos, e um prolongamento da via interior dos místicos renanos (que poderá corresponder aqui à categoria llansoliana complementar do «dom poético») e dos movimentos medievais do Livre Espírito e das profecias milenaristas que, sob a influência de Müntzer, se propagariam no século XVI e iriam explodir no fundamentalismo alucinado da efémera república anabaptista da cidade de Münster (de que dá conta um livro como Contos do Mal Errante). A grande oposição que Llansol destila a partir daí, e que atravessa toda a história do Ocidente até hoje, é entre o príncipe – todos os príncipes, os do poder político e os do financeiro, os da realeza e os do dinheiro, os da Igreja e os da literatura – e o pobre, sendo que o pobre não é, em Llansol, uma categoria negativa (tal como o camponês, o homem simples, ou os servos da gleba, o não é nos textos de Müntzer): ele não é, nem o pobre de meios, nem o pobre de espírito, nem sequer o proletário, mas o próprio espírito da despossessão espiritualmente intensa como princípio de vida e de acção.
Müntzer, «teólogo da revolução» em tempos da revolução conservadora que foi a Reforma de Lutero, é a primeira grande figura da linhagem dos «Pobres» em Maria Gabriela Llansol. A segunda, paradoxalmente, será a de Luís de Camões, despido das grandezas épicas para assumir o papel de homem comum – Luís Comuns – e aprendiz de mundo pela mão de mulheres, as beguinas que, na abertura de Na Casa de Julho e Agosto, se apresentam como as Damas do Amor Completo.
O lugar dos pobres da história – o lugar de Thomas Müntzer na sua errância e nas perseguições que o levam à morte – é um lugar de risco: pela exposição aos poderes e à «trama da existência» que os alimenta, e pelo radicalismo ou pela visão antecipatória de que esses pobres são portadores. Müntzer será, por contraste com Lutero (o elemento alemão em estado puro, o anti-europeu por excelência), o elemento alemão em estado extremo, de lucidez alucinada – com o impulso radical e libertador que leva à morte ou à loucura.
Nas origens deste «destino alemão», que Llansol, assimilando-o à sua Obra, amplia à dimensão de destino europeu e ao fatal «caminho da água» das Descobertas, está o fracasso da Guerra dos Camponeses, que – lembra já Thomas Mann (na conferência em inglês «A Alemanha e os Alemães», que profere no fim da Guerra, em 1945) – «poderia ter dado à história alemã um rumo mais feliz, o rumo para a liberdade, se tivesse vencido». A derrota de Frankenhausen e a decapitação de Müntzer representaram o começo de um destino europeu que ainda é o nosso: o das promessas não cumpridas que dariam lugar à vitória de todas as «revoluções conservadoras», ou cujo destino, nas mãos do poder, acaba por ser esse (Lutero e a Revolução Francesa, a Revolução Russa e a de Hitler, a cubana e a chinesa, a própria «revolução» do 25 de Abril, com a sua rápida «normalização»). É a vitória do falso espírito «social-democrata» no sentido original, marxiano (incluindo o do comunismo real e da sua perversão) sobre todas as mais autênticas visões socialistas e igualitárias: de Lutero sobre Müntzer, do Bonapartismo sobre os ideais da Revolução, do Terror sobre o purismo jacobino (que terá sido também o de Hölderlin), da moral cristã e burguesa sobre a ética da verdade e do porte íntegro (de Nietzsche ou Bloch).
Voltamos a Thomas Müntzer e aos caminhos que a sua cabeça e a sombra do seu corpo tomam nos primeiros livros de Maria Gabriela Llansol. Sobretudo a sua cabeça decapitada, assim tornada autónoma e finalmente livre. A figura de Thomas Müntzer funcionará, na primeira trilogia de Maria Gabriela Llansol (O Livro das Comunidades, A Restante Vida e Na Casa de Julho e Agosto, publicada entre 1977 e 1984) em registo predominantemente metonímico (um processo que se compreende, e é comum a outras figuras, já que na metamorfose da personagem histórica em figura textual nunca se pretende dar a sua totalidade). Müntzer surgirá, assim, nesta trilogia e também num dos diários, numa tripla dimensão metonímica:
a) como a sua cabeça, que, separada do corpo mas continuando a sonhar, guiará toda a travessia da noite e do exílio que com ele fazem, no barco do tempo e pelo rio da história e do eterno retorno, as outras figuras da comunidade (Ana de Peñalosa, sua «mãe» no texto, João da Cruz, Hadewijch, Eckhart, Ana de Jesus);
b) como o z que, no seu próprio nome, concentra no seu movimento e na sua sonoridade toda a violência da decapitação e da acção devastadora dos príncipes – e da sua «ilusão»:
c) como centro de Frankenhausen, a batalha, verdadeira «origem» da gesta portuguesa das caravelas – leitura absolutamente original e inaudita de Maria Gabriela Llansol, explicitamente formulada (mas não demonstrada – nem teria de o ser!) numa intervenção feita em 1988 em Paris.
Percebe-se melhor, a esta luz, o estranho destino de Müntzer na primeira trilogia, quando, sem explicação aparente para isso, o seu «segundo enterro» é preparado e realizado com pompa e circunstância (acompanhado por um Requiem de Mozart) pelas beguinas precisamente em Lisboa.
Encerra-se o capítulo da batalha perdida de Frankenhausen, abre-se a via para outra, a de Alcácer-Quibir, cujos despojos darão à costa no Cabo Espichel, na figura do Rei regressado que as mesmas beguinas, para seguir a lei do Texto e renegar a da história, metamorfosearão em Dom Arbusto (em Causa Amante). A «sobreimpressão» dos dois «intentos quebrados», que poderia ter propiciado o encontro do gesto decidido da liberdade de consciência centro-europeia com a atmosfera leve da imaginação criadora que informa o dom poético, nunca chegou a dar-se; o que parecia anunciar o dom – as descobertas e o desejo do novo – foi uma vez mais pervertido pelo poder e a cobiça, e degenerou em negócio e opressão.
A primeira aparição de Thomas Müntzer no texto de Llansol dá-se em O Livro das Comunidades, numa entrada abrupta em que o pregador alemão irrompe do Prólogo da Viva Chama (ou do êxtase) de João da Cruz. Müntzer surge logo aqui «reduzido a um corpo de criança, cujo tamanho não excede o da minha cabeça decapitada (...), fazendo ressoar com um cântico novo as claras trombetas do ar»: o místico ibérico – cronologicamente posterior! – dá lugar, na linhagem, ao visionário da acção, que intervirá através de um programa espiritual (cântico) e da agitação e da guerra (as trombetas). Mas, enquanto a personagem histórica de Müntzer exerce, de facto, uma acção agitatória e conducente à Guerra dos Camponeses – anunciada em textos tão importantes como O Sermão aos Príncipes (em 13 de Junho de 1524 no castelo de Allstedt), as reivindicações expressas na Magna Carta do Campesinato (Março de 1525, e que parece estar sendo reescrita precisamente nestes nossos dias!) e o manifesto Aos de Allstedt, nas vésperas da batalha (1525) –, a figura criada por Llansol irá sendo progressivamente temperada, ao longo dos dois primeiros livros da trilogia, por outras figuras que a ela se juntam «no barco de que não sairá a não ser para os campos de Frankenhausen», e que os conduzirá a um dos herdeiros futuros, Nietzsche, e, noutro livro, à loucura colectiva do reino dos Anabaptistas de Münster e à experiência paralela do «amor ímpar» (na leitura de Llansol, aliás, com um perfil bem diferente do de José Saramago na peça In nomine Dei, que trata a mesma matéria).
Há agora tempo para pensar o sentido da história, não apenas pelas vias mais estreitas da espada ou da alma, mas segundo o espírito da restante vida, que abarca toda a existência. Encontram-se aqui, no lugar em que o sonho diurno vem ocupar o lugar do ainda-não-consumado da história, três caminhos e três projectos afins: o de Thomas Müntzer, o de Ernst Bloch (que o leu e iluminou num livro que Llansol também leu e sublinhou) e o da própria Maria Gabriela Llansol. O livro de Bloch — Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, publicado já em 1921, na época do seu Espírito da Utopia — abre com uma «Advertência ao leitor» onde se lê uma frase que, à primeira vista, causa alguma perplexidade: «Müntzer situa-se antes de toda a história, no sentido fecundo do termo». O que Bloch quer dizer, e reiteradamente afirma também noutros livros, em particular no mais tardio O Princípio Esperança, é que a obra e a acção de Müntzer assinalam um caminho a percorrer, que, apesar de esse caminho ter sido «barrado» (o termo é de Llansol), ele continua aí, na sua longa viagem, de cabeça debaixo do braço. E que a história pode ter uma validade que não se perde, compreendida como acção prolongada de visões revolucionárias e redentoras como a de Müntzer. Mas o que pode ser ainda mais significativo para a compreensão do lugar deste exemplo paradigmático na visão llansoliana da história é a utilização por Bloch, neste livro, de um conceito caro a Llansol, e que explica o que de mais essencial encontramos na viagem da sua escrita pelos domínios soterrados da história da cultura europeia e alemã: a noção de sobreimpressão. Ela serve a Bloch para explicar como todos os «vencidos», também Müntzer, para além de virem de antes da história (antes de ser já o eram, porque houve outros da mesma linhagem), se situam, por sobreimpressão, para além da história e das suas contingências, porque todo o tempo, como também Llansol bem sabia, é um tempo múltiplo (coisa hoje claramente esquecida, num tempo de vivências ocas do instante, em «tempo real»!).
E assim Thomas Müntzer se insere na cadeia dos «póstumos» – como de si próprio disse também Nietzsche, como podemos também dizer de Maria Gabriela Llansol.
Link para ver video apresentado na sessão: