MANUEL GUSMÃO E LLANSOL:
A PARTILHA GENEROSA
Deixamos aqui o essencial da evocação, feita por João Barrento no passado sábado, focando a convivência de Manuel Gusmão, ao longo de várias décadas, com o Texto de Maria Gabriela Llansol, e também a sua própria poesia, lida na sessão por Diogo Dória e Marta Chaves.
O título que demos a esta sessão – «A partilha generosa» – remete-nos para uma ligação de décadas que foi a de Manuel Gusmão com a Obra de Maria Gabriela Llansol. Estávamos em 1991, o ano em que foi atribuído pela primeira vez o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores a um livro de Llansol (Um Beijo Dado Mais Tarde). O Manuel Gusmão fazia parte do Júri, e o título do seu parecer (na altura eram publicados pelo JL) é precisamente «Partilha generosa do que é misterioso». Lendo hoje esse texto, percebemos que se trata de um testemunho inteligente que se apercebe desde logo de algumas das características essenciais, e únicas, desta escrita:
1) que qualquer livro é neste caso «um livro múltiplo» (constituindo todos eles um livro único, «um fragmento completo», como dirá a Autora);
2) que há nesta Obra uma clara ponte entre vida e escrita, que no entanto não cai na «mediocridade da autobiografia»;
3) que existe uma relação singular entre o gesto de escrever e um acto de leitura que «nunca chega ao fim de um livro», um modo de «escreler», diz Llansol, que Manuel Gusmão traduz numa frase que é todo um programa: «É no entre que este livro [Um Beijo Dado Mais Tarde] é legível». Querendo significar que é só nesse pacto entre escrevente e legente, e na multiplicação das leituras, que qualquer livro de Llansol se realiza plenamente. Esta ideia reapareceria na crítica de Gusmão sobre o último livro de Maria Gabriela Llansol, Os Cantores de Leitura; aí lemos que «este livro [...] é um fragmento de um universo que nos interpela, e de alguma forma nos inclui, na medida em que consigamos encontrar nele o nosso lugar» (Público, 14 de Março de 2008). Uma vez mais, na medida em que consigamos responder ao apelo do «Quem me chama?».
E a leitura, por Manuel Gusmão, do livro premiado em 1991, que inaugura uma nova fase na Obra de Llansol, a de uma «ordem figural do quotidiano», termina com a constatação de que «este texto é o operar de uma justiça que nos é feita: a da partilha do esplendor, da fulguração de uma língua...». Para que lhe seja feita «justiça», o livro tem neste caso de ser, não apenas partilhado, mas também completado pelo leitor.
4) Mais tarde, nas primeiras Jornadas que fizemos em 2009 em Sintra, a partir do tópico llansoliano «Nada ainda modificou o mundo» — penso na actualidade, neste momento, desta ideia que está na base do «projecto do humano» que sustenta toda uma Obra como a desta escrevente! –, a partir dessa ideia-chave o Manuel iria enveredar por um caminho que o levaria, em múltiplas variantes, a desenvolver aquele que seria o seu grande tema nos vários momentos em que comenta esta Obra: aquilo a que ele chama «a reconfiguração do humano». Uma perspectiva que não podemos deixar de associar às suas convicções políticas e à sua crença na poesia, na escrita em geral, como uma forma de resistência a esse mundo sempre igual nas suas desigualdades. Estamos sempre a necessitar de novas leituras da História — e vamos sempre dar à gritante imposição do poder arbitrário dos Príncipes sobre a Restante Vida e os «pobres» dessa História, os «sobreviventes», «a imagem da parte perdida da batalha» sem fim – de facto, «nada ainda modificou o mundo»!
Este é um filão a que se tem dado relativamente pouca atenção na Obra de Maria Gabriela Llansol: uma leitura política, com essa problemática do humano e da leitura da História no centro e, implicitamente, a de uma releitura alternativa da noção de comunidade, demarcando-a das noções mais correntes de «sociedade», de um «gregarismo» superficial, e que o Manuel Gusmão designa de «comunidades transtemporais do Vivo».
Não gostaria de ser eu a comentar ou interpretar este tema de fundo que constitui o fio condutor das intervenções do Manuel Gusmão a propósito da Obra de Llansol. Por isso vos lerei apenas algumas passagens de intervenções suas em dois dos nossos livros que documentam as Jornadas Llansolianas (em 2009 e 2018).
Do primeiro, Nada ainda modificou o mundo...:
Nas várias vezes que me tenho encontrado a escrever sobre ou com textos de Maria Gabriela Llansol, foi-se-me construindo um horizonte de leitura, em que o seu texto tende a aparece-me como uma acção de reconfiguração do humano. [...] A reconfiguração do humano começa pela afirmação de uma ignorância ou de uma recusa das suas definições estabelecidas ou dos seus retratos oficiais. A afirmação dessa ignorância é o gesto inaugural de uma reconfiguração que não deseja a sua imobilização numa definição, numa norma ou numa lei. [...] A escrita que reconfigura o humano responde a esse fulgor que se apaga e acende nas coisas; não se trata apenas de mudar as representações, o sistema de crenças, as formas do pensamento. Trata-se de mudar os sentidos, a percepção e a sensibilidade; trata-se de ver e de tocar de outra maneira e outras coisas, coisas não-coisas. [...] O texto Llansol é intensamente estranho, até na medida que é intensamente novo; nem poderia ser de outra forma, se o que está em jogo é, entre outras coisas, a reconfiguração em aberto do humano. Ele escreve-se à margem daquilo a que chama o realismo. [...] Para levar a cabo esses procedimentos, Maria Gabriela Llansol tem de se colocar como se estivesse na situação-de Rimbaud. Também ela sente a necessidade de encontrar uma língua... Quem quer reiventar o humano tem de forjar ou dotar-se de uma língua nova, de uma língua em estado de nascimento... [...] As populações e as suas formas de vida que habitam os espaçostempos das obras de Maria Gabriela Llansol, constituem comunidades transtemporais do vivo. Comunidades diz a característica essencial das formas de vida dessas populações: vivem em comunidades. E se uso o plural é porque há mais de uma só comunidade, e elas podem ser internamente plurais ou heterogéneas. Transtemporais diz outra característica fundamental que é a possibilidade de convivência e de reunião num lugar ou num tempo constelado, de personagens que nunca se encontraram na história cronológica e que nos casos extremos vêm de tempos muito diferentes. [...] O que significa o carácter transtemporal, irredutível à linearidade cronológica, das comunidades? Que regime da historicidade aí se manifesta? Porque têm de ser emendadas as figuras, que batem às portas do mundo e se pretende que regressem? Agregada à falta de uma íntima associação entre liberdade de consciência e dom poético, constitui-se então um outro projecto que é o da reconfiguração aberta do humano. A comunicação entre as espécies do vivo, os reinos do orgânico e o não-orgânico, o construído e/ou o imaginado, abrem o humano a outras qualidades.
No segundo texto, que regressa a este tema nove anos depois, nas Jornadas em que vários escritores deram o seu testemunho da leitura de Llansol – «Eu leio assim este Texto». Escritores lêem Llansol –, o Manuel Gusmão juntou duas escritoras da sua predilecção, Maria Gabriela Llansol e Maria Teresa Horta:
Um dos focos do meu fascínio pela escrita de Llansol, é o modo como ela impõe à leitura movimentos que não só são os traços de uma sua idiossincrasia estilística mas que representam um caminho para a partilha das posições do leitor em contacto com a sua actividade e a caminho da sua verdade de leitor.
A nomeação desse foco será hoje e aqui o carácter político do texto de Llansol. Sei que esta decisão minha poderá chocar num periodo em que a palavra política parece aceitar uma desenfredada mistificação. Não tenho qualquer dúvida, entretanto, que a leitura de Llansol põe em jogo uma escuta política que se torna imperiosa em alguns dos seus textos maiores. A frase que escolhi para o meu título, entretanto, não sendo de Llansol – «Certas questões devem pôr-se à beira-Ebro ou no rio que assedia Münster» –, é de uma outra escritora portuguesa que, desta maneira, presta a sua homenagem à Maria Gabriela Llansol. Esta escritora é Maria Velho da Costa. [...]
A visão utópica de Llansol leva a propôr ver a história da Europa como um longo combate nascido de uma incompatibilidade radical e insanável entre o mundo dos príncipes e o das gentes ou dos rebeldes. A circulação e o caminho da escrita de Llansol são-nos propostos como a partilha de um dos bens da Terra que, quanto a ela, são cinco: «O conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver» [...] O mundo textual de Llansol é o mundo do vivo. A escrita não imagina. A escrita é o que a figura vê, é o que fica depositado nos que a lêem – a nostalgia inexpugnável dos seres que estão por vir...
Nestas Jornadas de 2018, numa altura em que o Manuel já tinha alguma dificuldade em ler, emprestei-lhe a minha voz, e com isso dei mais um passo no sentido de uma proximidade e de uma admiração mútua que já vem dos anos oitenta na Faculdade de Letras, quando, em 1983, sabendo da sua tese sobre os fragmentos do Fausto de Fernando Pessoa (que haveria de ser publicada na Editorial Caminho em 1986: O Poema Impossível - O Fausto de Fernando Pessoa), lhe pedi colaboração para um volume que organizei sobre Fausto na Literatura Europeia, editado pela Cooperativa Editorial Apáginastantas, que criei nesses anos.
Começou aí uma relação que mais tarde se iria apofundar por duas vias: a da poesia de Manuel Gusmão, que acompanhei e comentei desde os primeiros livros até ao Pequeno Tratado das Figuras (de 2013) e A Foz em Delta (de 2018), na minha própria escrita sobre a poesia portuguesa contemporânea, nos encontros do «Jornal Falado da Actualidade Literária», que organizávamos no PEN Clube Português, nos balanços literários da revista Vértice ou em diálogos com o Manuel, como o da Feira do Livro do Porto em 2001, sobre esse livro marcante que é Teatros do Tempo.
Um segundo caminho foi o da sua participação nos Encontros do GELL-Grupo de Estudos Llansolianos, ainda com a presença da Maria Gabriela (que co-organizei entre 2001 e 2006), e depois no Espaço Llansol, não apenas com os seus comentários recorrentes do Texto llansoliano (de que já dei uma ideia), mas também activamente, como Presidente da Mesa da Assembleia Geral desta casa desde a sua fundação.
Gostaria ainda de vos deixar, antes de ouvirmos poemas do Manuel Gusmão lidos pelo Diogo e pela Marta, alguns apontamentos, uma breve síntese, da minha leitura desta poesia, a um tempo tão humana, interventiva e poeticamente rigorosa e sensível.
A poesia de Manuel Gusmão é um exemplo singular, quase paradoxal, de um discurso à primeira vista resistente à leitura, pura organização mental, de «uma mão que escreve na mente», como ele próprio reconhece, e ao mesmo tempo atravessada permanentemente por núcleos da mais límpida e fulgurante intensidade lírica. Por exemplo em Pequeno Tratado das Figuras, quando nos surpreende com a inflexão para uma escola miniatural do olhar, inspirada em desenhos de Jorge Vieira, para «a pintura corpo a corpo», título de uma secção do livro, ou para o inesperado tema da natureza («Da linguagem das árvores e do vento»).
A construção do poema contínuo e único faz-se, também aqui, não apenas no mesmo livro, mas de livro para livro: é de tempos, de mapas, de arquitecturas poéticas, do mundo e dos seus teatros de acção e pensamento que se fala nestes livros. Elabora-se uma cartografia de tempos sobrepostos que passam de livro para livro: a escrita regista, em palimpsesto, passados muito vivos que se reinscrevem sobre um presente apagado, e também tempos do Eu que acorrem ao apelo de tempos do Nós – «como se no tempo se pudesse outra vez fazer / o nascimento outro: os imemoriáveis da alegria».
Nestes «teatros do tempo» e do mundo em que se é actor de acasos num tempo vivido como descontínuo, há lugar, na poesia de M. Gusmão, para os tempos da terra e da casa, entre equinócios e solstícios, entre o amor, os livros, a doença; e também para os tempos da História e do grande mundo. E, contra todas as expectativas face ao estado desse mundo, quando o poema faz convergir esses «tempos constelados», nasce nele a alegria da visão, aquela «difícil fidelidade à alegria» que o poeta refere na dedicatória de Migrações do Fogo a Maria Gabriela, em 2004, e que esta comenta na mesma página, a lápis, com a anotação: «[alegria] que é o reverso, ou a dobra, de uma dor». Mas, na sua solidão radical, o poema não clama no deserto: o poema chama para que alguém acorra, e «o mundo não cessa de vir ao lugar do encontro». Podemos, assim, perceber melhor como a poesia de Manuel Gusmão, sem cedências na sua exigência de rigor construtivo, sem hesitações ao convocar toda uma vasta herança literária que dela faz uma poesia «erudita» muito particular (que não ostenta a intertextualidade, mas assimila e integra de forma criativa o texto do outro), faz nascer o júbilo do fundo de uma crença última, que pode vir de Rimbaud ou Hölderlin, de Carlos de Oliveira ou de Fiama e passar por Wittgenstein, Benjamin ou Llansol: a crença de que a coisa estética é indissociável de uma ética e mesmo de uma forma de conhecimento própria do poema. Só assim o poema se pode transformar, como acontece aqui, no lugar da vita nuova que traz «a promessa a esperança a alegria justa // a perfeição das coisas o mundo inacabado», como se lê num dos poemas que iremos ouvir. Mas sem ilusões: as três Graças confundem-se frequentemente com as três Parcas, e o poema, sendo a «promessa justa», nada pode garantir. A não ser – o que não é pouco, e constitui todo um programa – servir de abrigo àquela «insustentável perfeição das coisas», como uma «ruína inacabada» a dominar a «devastadora beleza do mundo».
Estas e outras imagens, de esperança, apesar de tudo, «contra todas as evidências em contrário», irão ecoar na leitura de poemas que o Diogo e a Marta farão já a seguir.
(J. B.)