DA TERRA AO TEXTO
Llansol no Festival dos Eidos / Galiza
Por isso ela foi convidada, através do Espaço Llansol, para estar presente no «Festival dos Eidos» (o sétimo) deste ano. A sugestão para este «encontro inesperado do diverso» veio da poeta e jornalista de Lugo Nieves Neira Roca, que já participou por mais de uma vez em actividades do Espaço Llansol, uma delas em Julho de 2019, quando apresentou, com um grupo de mulheres da Galiza (desde então por nós referidas como «Beguinas de Lugo»), um belo espectáculo de leitura dançada de textos de Maria Gabriela Llansol, a partir do livro que fizeram para essa ocasião, e que intitularam Fulgor (vd., neste blog, o post de 14 de Julho de 2019: http://espacollansol.blogspot.com/2019/07/ler-como-quem-danca-dancar-como-quem-le.html ). Desde essa altura estreitaram-se as relações entre o Espaço Llansol e a Galiza, os seus poetas e a sua cultura, graças ao entusiasmo de Nieves Neira.
Também agora, na atmosfera telúrica e intensa da «mais-paisagem» dos lugares do Courel, uma nova leitura dançada foi apresentada por cinco das «Beguinas» na clareira mágica do «Souto da Rubial» (que comparamos aos encontros estivais da «Clareira de Parasceve», na Serra de Sintra, com a Maria Gabriela), desta vez entrecruzando fragmentos de Uxío Novoneyra e Maria Gabriela Llansol, a partir do caderno feito para este Festival, com o título llansoliano Em torno da árvore estendia-se o jardim nascente... As imagens que deixamos no breve video que se segue permitirão visualizar e sentir melhor a magia do lugar e das palavras que nele ecoaram, em parte também inscritas em faixas de linho enroladas nos troncos dos castanheiros seculares.
A escritora portuguesa de que venho falar (e que não é já uma desconhecida nestas paragens) escreveu um dia, deixando claro o seu modo de estar no mundo: «Não darei um passo à margem do fulgor»! Fulgor, esse termo tão llansoliano, é precisamente o título do livro de fragmentos de obras de Maria Gabriela Llansol, organizado por Nieves Neira e María Corral Fernández, e que algumas mulheres aqui presentes leram dançando, num espectáculo inesquecível, no pátio do Espaço Llansol em Lisboa, em 2019.
É para a Nieves e suas companheiras, agora também para Branca Novoneyra, que vai a minha primeira palavra de agradecimento pelo convite para estar aqui. E depois, para todos os que vieram para esta «troca verdadeira», como gostava de dizer a Maria Gabriela.
Eu venho de um lugar – esse Espaço com o nome de Llansol – que, apesar de estar no centro de uma grande cidade como Lisboa, no seu interior, no que contém, na sua finalidade e no seu espírito, é um espaço situado nas margens do mundo de hoje – como este, da Fundación Uxío Novoneyra onde me encontro, também ele um espaço vivo, de poesia e pensamento («Parada do Courel, um Finis Terrae, onde todo se detén e contén o alento», como lemos na Introdução a Os Eidos de Uxío). Um espaço do culto, não da personalidade, mas da possibilidade, do Aberto, de uma crença que, se existe, só pode ser, como diz Uxío, «unha fe pola sensación vivida». Maria Gabriela Llansol gostaria de estar aqui, nesta casa tão diferente e tão próxima daquela que nos deixou, com o desejo de que ela não fosse um museu estático, mas um lugar dinâmico, onde a escrita nos chama, o pensamento vibra e a leitura é uma forma amorosa de ampliar o texto (logo veremos esse lugar no video que trouxe, centrado nas casas e nos mundos que dentro delas se nos abrem, sempre em devir, sempre «tornando-se» outra coisa). A Nieves viu bem esse «jogo» amoroso com o texto, no Prólogo ao livro que organizou, e que intitulou «Amor sive legens», que quer dizer: a leitura viva, dançada, em voz alta, é um acto de amor. Imagino que Llansol, nesta casa onde estamos, «casa-texto», como a Nieves também a vê nesse prólogo, na «miña casa que ten moitas casas» (Uxío Novoneyra) talvez vos lesse esta passagem de um dos seus muitos cadernos de escrita:
A casa grande, enorme, que conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as transformações, sendo apenas uma casa real, seria estática – um museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder audaciar-se, exprimir-se em obra que fique em toda a parte. (Caerno 1.43, p. 84, 4-10-1995).
Na «casa de escrever» de Llansol, casa feita de muitas casas como a de Uxío, sempre cheia de sinais e com múltiplas janelas abertas sobre o universo, tudo gira em permanente vibração e devir. Escrever é escreviver, escreler com as muitas figuras que antes dela escreveram e viveram e foram acolhidas na casa do Texto, e com os legentes que se alimentam da sua escrita e a prolongam, algo bem diferente do leitor passivo. Escrever é aí um acto de necessidade, uma pulsão, uma espécie de «segunda natureza».
Temos então dois lugares próximos na distância, lugares de pensamento vivo, onde não temos receio de correr todos os riscos já assumidos por uma Obra que escolheu situar-se nas margens, porque só aí pode ser autêntica: «Escrevo nas margens da língua, fora da literatura», diz Llansol.
Aqui, os paralelos levam-nos a uma outra poeta galega, Chus [María de Xesus] Pato: também nela encontramos, nas margens da língua, algo que está para lá da língua e que, como em Llansol, se chama «voz». Uma espécie de eco do inconsciente da escrita, que aparece assim comentado nas duas autoras. Em Llansol:
Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho... Se vim para acompanhar a voz, irei procurá-la em qualquer lugar que fale, / montanha, / campo raso [talvez un eido?], praça da cidade, / prega do céu (...) Entretanto, / um mais saber há-de subir à voz.
Também a poeta galega acredita que há uma voz que fala no poema mas está para lá dele («o que, não dito, é outra cousa que o dito»), uma voz própria, inconfundível, e de algum modo estrangeira, habitante das margens. Chus escreve: «Estranxeira na miña propia historia / na miña propia paisaxe / na miña propia lingua». Não basta, a Llansol, a Uxío, a Chus, a Nieves Neira, a escrita de superfície, o poema meramente exterior da convenção, o relato de factos biográficos. Todos estão à escuta de uma qualquer «voz» («Quem me chama?», é o lema de Llansol, não «Quem sou?») para ouvir os apelos do mundo e os transformar em escrita, em acontecimento do poema/do texto que se demarca da linguagem (comum) e do sentido das palavras (que, querendo tudo dizer, lhes fecha os horizontes).
Por isso Llansol escreve: «Não ligues demasiado ao sentido; a maior parte das vezes é impostura da língua». (Ou seja: há que buscar outras camadas mais fundas, nas «dobras» do real, tentar traduzir o movimento do mundo numa linguagem aberta, criadora);
E Chus Pato: «Unha voz interna, escoitamos esa voz particular; agardamos ordes, agardamos instrucións desa voz interior (...)
Agardamos ordes, é así como escribimos?»
E ainda:
«Irrompes desde o sentido // non o cubras, trénzao [entrança-o] / trenza o que nunca poderás dicir».
Por sua vez, Uxío Novoneyra fala do «infinito da língua», «un infinito do idioma propio (...), eso que va conxuntamente coa fala e permite dicir cousas que inda non foron formuladas.». É uma perfeita definição da língua nova de Llansol, uma língua que, na narrativa-fora-do-género, recorre ao fulgor da imagem nua, ao pensamento não abstracto, àquela «língua sem impostura» e sem modelos que torna a sua Obra tão original.
A imagem nua e a língua pura de Llansol evocam também a Neve de Agosto da Nieves Neira. Este título, que vem do Oriente e chega a Octavio Paz (onde é «escritura del mar..., escritura del viento..., testamento de sol...»), pode também ser lido à luz de Maria Gabriela: para ela, que amava o mar, o vento e o sol, «a neve é, nestes dias, a verdadeira claridade da natureza» (Causa Amante), símbolo de pureza e de luz, de justeza e de integridade sem corrupção, que só pode vir de uma dupla fonte: o corpo e a escrita, o corpo que escreve. Também aqui e agora, no livro da Nieves e neste dia de Agosto, é daí que tudo vem ao nosso encontro. Estamos aqui para ver «onde nos leva a escrita» desses poetas – Llansol, Uxío, Nieves, Chus –, e se nós, com eles, poderemos chegar a ver a luz do júbilo, a abrir o corpo ao silêncio branco da página, à claridade da neve (e da névoa) de Agosto, nestes dois dias de comunidade de montanha.
Talvez se possa chegar aí, se soubermos simplesmente olhar («Olla as mans da luz abrindose na nebra», escreve a Nieves); ou então, com Uxío, descobrir a convivência do «baile en branco da páxina» expectante com a «palavra substantiva», esse «silêncio elocuente das poucas palabras» (as da sua poesia elegíaca do início, Os Eidos), ou com a palavra intensa, fulgurante que «convoca a presença», chama as coisas e, nomeando-as, as faz reviver.
Estamos no centro da Obra de Maria Gabriela Llansol, e é dela que agora irei dar-vos, em síntese, a minha leitura muito pessoal.
Essa Obra é um Livro único e contínuo que, nos últimos vinte anos, pelo menos, me levou realmente a mudar de vida. Um rio sem fim, porque Llansol, tendo publicado vinte e seis obras próprias (e muitas traduções de autores franceses, e outros), não «fez livros», limitou-se a escrever. No primeiro volume dos Diários póstumos (a série a que chamamos «Livros de Horas») lemos: «Desejo escrever, não fazer livros, o que é muito diferente daquilo que experimentava antes» [i.é, em Portugal, antes do exílio de vinte anos na Bélgica]; e «Todos estes textos integram o texto do meu livro, livro único, que aparece publicado em lugares, datas, textos ou volumes diferentes». E já antes, no diário Finita, lemos: «Eu não fui talhada para fazer livros, mas para dar a entender por escrito o que foi uma experiência...» – e «experiência» significa, na origem, travessia arriscada, entre «os perigos do poço e os prazeres do jogo» (diz Llansol em Amar um Cão). Estamos então perante um livro talvez desprovido de autor (e de autoridade), que não remete para alguém que o teria escrito, mas, como vimos, para uma «voz» que gera no leitor o fascínio de uma escrita do enigma – e é isto o que se sente quando se lê Llansol.
O texto contínuo de Maria Gabriela mostra ainda (contra o que diz o filósofo Adorno, em Minima moralia) que pode «haver vida verdadeira no meio da falsa», e que, para além da sua inquestionável singularidade textual, o projecto do humano que o orienta seria susceptível de mudar o mundo, esse «jardim devastado» em que ela procura implantar o «perfil da esperança», até o tornar de novo reconhecível como um mundo mais humanizado (também este «projecto» tem paralelos com o do Uxío mais político, o de Do Courel a Compostela e de Dos soños teimosos).
Llansol sabe que «nada ainda modificou o mundo», mas também que há a possibilidade de «conceber um mundo humano que aqui viva, nestas paragens [neste mundo nosso, o de hoje!] onde não há raízes», nem memória. Ela e Uxío sabiam que vivemos nesse jardim devastado, mas onde sempre pode aflorar a esperança. Nem um nem outro abdicam do seu «projecto do humano». Uxío Novoneyra anda também, como Llansol, «à procura de um final feliz», de um qualquer «espaço edénico», mas sem Éden, porque ele pode existir aqui, «no meio da coisa», sobre esta Terra. Não é uma utopia, talvez apenas uma ucronia, o lugar de um tempo-outro, que para Llansol é o não-tempo de um eterno presente vivido. Uxío di-lo nestes termos:
«Sabemos que ti podes ser outra cousa / sabemos que o home pode ser outra cousa. Sabemos que hai mesmo unha posibilidade de ser outro e de sociedade outra. Sempre hai unha posibilidade non mentida, non é unha ilusión falsa, hai, existe, sabémolo e sábeno todos... e afirmao a teima dos soños e os ollos que erbellan... No Courel din erbellar, 'erbellábanlle os ollos', o brillo movido e múltiple. Unha imaxe mesma da Esperanza.
Hai un sublimarse, un excederse, un cume do humano».
E em Chus Pato a questão está também presente, quando a poeta diz que o que se busca não é apenas «unha experiencia de si» (biográfica), mas «unha nova experiencia política do sensíbel ou unha experiencia sensíbel do político». Ambas, Llansol e Chus, sabem que, como escreve esta última, «o bosque medra sobre o entullo dunha cidade arrasada» e que «un corazón soña como as árbores soñan». Ambas sabem que «en tempos de fartura, os sistemas de dominio xa non se ocupan das poboacións», e que «o capital é analfabeto». E Llansol percebe isso já há mais de trinta anos, na Lisboa que encontra depois do regresso do exílio: «Na Lisboa que vim encontrar agora a crença é o progresso que, na realidade, é dinheiro a correr mais ligeiro..., é o nome do nada-de-prata que a Europa pluthocrata, telemathica e futurenta deu a alguns aqui». Mas há também o reverso: «Aqui poderá ser a terra do homem comum... Deve bastar que o homem se ocupe finalmente do homem».
O que é mais importante compreender nesta Obra não será, assim, tanto o que nela há de mais óbvio e a levou a romper cânones e normas literários – isso não faz ninguém mudar de vida, quando muito de gosto. Ora, o que faz mudar de gosto e de vida é claramente de outra ordem, não estética, não ética, mas etistética. O lado estético, o da rotura com os paradigmas do realismo, da passagem da narratividade à «textualidade», da verosimilhança ao fulgor, do fluxo de uma história à intensidade da imagem e à autonomia relativa do fragmento, da expressão do Eu para o «poema sem-eu» que é o texto de Llansol, tudo isso me parece, afinal, apenas uma parte (a mais propriamente literária) deste projecto de escrita-vida. O que é mais importante, pelo menos tão importante, são os princípios de ordem ética e existencial que sustentam esta Obra, e que fundam também uma visão política do mundo. Em Llansol ela está presente desde a primeira trilogia, a «Geografia de Rebeldes» da História, a busca de uma «Restante vida» contra o mundo e os seus «príncipes», a crença numa «Casa do Ser» da comunidade – não sociedade! – dos «absolutamente sós»; e continua-se mais tarde no que ela refere como o seu «projecto do humano» – mesmo fora da perspectiva histórica, simplesmente na «ordem figural do quotidiano», no dia-a-dia do corpo de cada um. Tendo vivido e escrito essencialmente em tempos de espera, depois das grandes guerras e antes dos desastres de hoje, Llansol e Uxío foram ambos aquilo a que este chama «vigias de uma geração» – sem nunca petencerem a uma geração! Este é o modo próprio de ser um escritor (também) político sem cair no discurso ideológico explícito.
Já Chus Pato parece entrar nestes territórios por outras vias: afirmando, por exemplo, a necessidade de criar e cultivar uma língua contra o capital, que a reduz a coisa de consumo (também Llansol faz isso, mais discretamente). Ou quando diz, numa entrevista, que «a época do sublime acabou. Estamos no capitalismo tardio e a beleza tem de ir acompanhada de uma ética e uma proposta». É a proposta da escrita que não deseja apenas fazer uma revolução formal, mas também empenhar-se nesse «projecto do humano», uma escrita que, como Llansol nos disse pouco antes da morte, vive de «restos que se revoltam».
Também a poesia de Nieves Neira, de forma mais subtil, nos dá a entender que há nela um ideia condutora de fundo em que o corpo é o centro, uma nostalgia de algo de distante que é essencial, um substrato escondido – porque – lemos em Neve de Agosto – «a letra tem um dentro», porque «a profundidade está na pel» e «aquí a pel é distancia» –, uma voz-outra que faz dela também uma poesia de intervenção (na consciência de quem lê). Assim, por exemplo, neste poema em que dialoga com Uxío Novoneyra:
Quen soña coa distancia?
Quen non soña coa distancia?
Pode morrer definitivamente a distancia?
Cando afunde a illa morre a distancia?
Afunde a illa na consciencia do conquistador?
Tudo isto tem a ver com formas de escrita que não se des-cuida de si, mas que também cuida de pensar caminhos possíveis para «este desconhecido que nos acompanha», que é o mundo para Llansol. Esta será a sua face mais ou menos abertamente política (um aspecto até agora muito esquecido nas análises da Obra desta escritora / escrevente).
O estímulo para continuar leva-nos então pelos caminhos de um Texto em que, contrariamente ao que por vezes se diz, não há transcendência, nem metafísica, nem metáforas, a que eu chamaria o caminho do ver. Percebendo o que é isso nesta Obra, seguindo por aí, não só eu vejo mais nitidamente o que o texto me dá a ver (só preciso de o ler como texto, na sua materialidade, sem entrar em efabulações imaginativas, sem transfigurar o valor facial que a palavra nele adquire), como, sobretudo, ele me vê de cada vez que o leio. E não há muitos textos que me vejam, que, depois de neles entrar, passem a viver comigo. Sem medo daquilo que, à primeira vista, pode deixar-nos perplexos, talvez assustados. O que acontece é que pecisamos de reaprender a ler (com) este Texto. Se não desistirmos, talvez cheguemos a mudar de vida e de pensamento. Talvez «cheguemos aonde não sabemos por caminhos que não sabemos», como escreve San Juan de la Cruz. E a ver o mundo com outros olhos.
Nada disto implica uma visão negativista do mundo. Pelo contrário, em Llansol, como ainda em Uxío Novoneyra, é a afirmação do lugar imprescindível do sonho (da «utopia concreta» do filósofo alemão Ernst Bloch) na vida e na escrita. Em Uxío, «o fenómeno dos soños teimosos», «esa teimosía dos soños do posible máximo». Em Llansol: «Se é o sonho que cria o homem, vou criar o sonho que me cria», porque «o sonho é um grande escritor».
Mas vejamos ainda, para terminar, que coisas, desejos, sonhos são esses que o texto propõe e o humano, tal como o conhecemos, dificilmente comporta. O Texto de Llansol sugere, desde os seus primórdios, alguns caminhos, que me limito a lembrar:
–- evoluir para «pobre» (segundo o princípio do despojamento e da des-possessão – mas não da proletarização: o pobre, aqui, não é o proletário);
–- superar a «impostura da língua» (com todas as implicações que isso tem: éticas, literárias, e também sociais);
–- olhar o mundo como coisa estética: sem cair no esteticismo estéril e preciosista, seguindo antes pela via da aisthesis(dos sentidos e do corpo), vendo o mundo como revelação permanente: de significados ocultos, de beleza, de fonte de possibilidades, de encontros produtivos... Porque, lemos em O Senhor de Herbais (2002), «o mundo é puramente estético. Mas raramente é santo»;
–- imaginar que se pode ir além do colectivismo estreito das lutas sociais, no sentido de uma comunidade ampla dos seres(dos «semelhantes na diferença»), de sentido realmente universal e livre (o oposto da «globalização hegemónica» do capital abstracto, em que estamos mergulhados);
– seguir o sonho de realizar um processo de individuação próprio, para lá da inevitável socialização uniformizadora de comportamentos, consciências e saberes;
– mas lembrando sempre que nós, humanos, não somos o centro de uma cadeia hierárquica, mas um elo na «grande cadeia do Ser». E que temos a enorme responsabilidade de assumir um contrato com o Vivo (ideia que lhe vem de Spinoza e deveria estar hoje reflectida nos protocolos sobre as políticas do ambiente, cada vez mais politicamente ineficazes e acomodadas aos interesses dominantes).
–- finalmente, numa época do virtual, o texto propõe a possibilidade de se seguir (igualmente) a via do carbono, da clorofila, da matéria do mundo no seu hiper-realismo fulgurante que muitos já não vêem, ou a que simplesmente não têm acesso. Numa agenda do ano 2000, em 14 de Março, Llansol anota:
«... a minha escrita é matéria ligada à matéria, ou seja, apresentação ao cosmos, que tudo impregna – incluindo eu própria.
É sobretudo uma força energética recebida da ‘natureza’ em sentido amplo».
Entendemos talvez agora melhor que o futuro que este Texto tão singular procura e oferece mais não é, provavelmente, do que aquilo que muitos de nós já desejamos hoje: qualquer coisa como uma nova infância do mundo. Uxío, também ele um «herdeiro das margens», sabia disso, sabia que esse lugar podia estar nos seus eidos, quando escreve: «Hein d'ir [...] / a un eido solo onde ninguén me vexa».
Aqui, no Courel, estamos próximos desse Lugar.
[As citações de Uxío Novoneyra, Chus Pato e Nieves Neira Roca provêm dos seguintes livros:
Uxío Novoneyra: Os Eidos. Libro del Courel (Madrid, Árdora Ediciones, 2010) e Dos soños teimosos (Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2010)
Chus Pato, Um Fémur de Voz Corre a Galope. Antologia [bilingue] (Porto, Officium Lectionis, 2022)
Nieves Neira Roca, Neve de Agosto (Santiago de Compostela, Chan da Pólvora Editora, 2022)]
Na tarde de sábado João Barrento apresentou ainda, na antiga escolinha do lugar, com as suas carteiras originais, dois videos que permitiram aos muitos interessados que se deslocaram nesse fim-de-semana à aldeia de Parada do Courel conhecer melhor os lugares e as casas do percurso do exílio, real e interior, de Maria Gabriela Llansol (A Vocação do Exílio, proveniente das Jornadas Llansolianas de 2015), bem como todo o imenso espólio que nos deixou e as duas casas que o acolheram, a de Sintra e a de Campo de Ourique (o video com o título Um Lugar e um Legado).