29.5.23

 GABI: A NARRADORA DE SONHOS REAIS...

Regressámos na nossa sessão de sábado aos primórdios da escrita de Maria Gabriela Llansol, comentando e lendo algumas surpreendentes narrativas da aluna do Liceu Pedro Nunes nos anos de 1945-46 (com 13-14 anos de idade), já então vista por alguns colegas como «a literata» da turma, e pela professora Maria Arminda Zaluar como alguém que, «assim, poderá ir até aos astros!».


João Barrento e Maria Brás Ferreira falam das redacções

A poeta Maria Brás Ferreira (autora dos livros Hidrogénio [2020] e Rasura [2021]) comentou algumas dessas redacções, reunidas no caderno feito para esta sessão («Do meu olhar escorre o sonho...» - As redacções da Gabi (1945-46), numa leitura inteligente e iluminante dos aspectos essenciais e mais originais dessa escrita juvenil e já premonitória. Sintetizou-a como sendo uma escrita já então feita como trabalho (e não mero entretenimento), como algo de móbil, um motor ou catalisador da energia da imaginação, e com a capacidade do dom, que proporciona uma leitura activa e devolve alguma coisa a quem lê.

E  conclui: «Todas estas histórias encerram o cunho inaugural da experiência estética. Inaugural, não por se tratar de redacções escolares escritas em idade precoce, mas precisamente por definirem, por extracção do real, o sempre começo, e o acontecimento sempre iniciático, com a solenidade que lhe está associada, do olhar. Trata-se da descoberta da experiência estética como aquela que transforma o limite em limiar, e a paisagem num plano fundo, esquivo. Das tentativas de o fixar [...] restará, inequivocamente resta, o descobrimento de mais uma falha e mais uma morada imaginária para o ser».



Também João Barrento destaca, na Introdução ao «Caderno de Tejo-Rio» com uma dúzia de redacções, momentos como: a surpresa dos «caminhos da imaginação e a riqueza de escrita...  numa escrevente daquela idade»; «a escolha de situações originais, revelando grande capacidade de observação e análise emocional das figuras, interesse social (sobretudo pelas classes mais desfavorecidas), uma tendência visionária que o futuro confirmará, e uma particular sensibilidade à beleza e aos fenómenos naturais». E ainda a diversidade dos tipos de narrativa, a que muitas vezes está subjacente uma «reflexão (quase) filosófica sobre as grandes questões do humano, e o registo fantástico ou parabólico. Muitas das histórias narradas são grandes alegorias da vida humana (...), transfigurando vivências banais em algo de mais elevado com sentido universal».

E ainda, assinalando as afinidades detectadas entre a escrita de Llansol e a poesia de Maria Brás Ferreira (com Spinoza e a «sobreimpressão» em fundo), compôs um «poema-sem-eu llansoliano» em que tudo é autobiográfico sem que o Eu fale de si (como já nas redacções da Gabi e na escrita posterior de Llansol), todo ele construído com linhas tiradas dos poemas dos livros da Maria Brás. Foi também a nossa forma de lhe agradecer a sua participação. Assim:

Vim porque o anonimato falou mais alto

para melhor montar os teatros de menina.

Prefiro os lugares recolhidos

onde se possa tão-só imaginar infinitamente

imagens trémulas, finas membranas de tédio-volúpia.

É isso o que é e o que somos:

nadar no ar, voar rente ao chão.

Devemos mirar-nos de dentro, para dentro,

para poder fixar

a grande evidência das coisas:

O corpo, que desconheço

(mas só o corpo importa);

a voz, o que mais recordo.

Olha para o mundo e diz-me

onde tudo começa.

As palavras dizem mais de mim

do que quero fazer parecer.

A voz extinguiu-se,

pois é o corpo que sempre prova

a bondade e a justiça.

E tudo importará:

por isso não morreremos nunca.

E experimentando e contornando o medo,

descobriremos o encanto da incerteza,

o desprendimento leal das formas amadas.

Que os anjos falem então por mim, de mim,

que falem de uma vez por todas

sem as amarras da língua [da impostura].

Os verbos que me impelem

são os silêncios, as paralisias

da grande História da Humanidade.

Para, em vez de ocupar o tempo,

perfilar a duração, [intuir o Há].

Para perceber como há noites

que são mais altas do que a noite.

 

 (J.B. – alias, M. B. F.)