GABI: A NARRADORA DE SONHOS REAIS...
Regressámos na nossa sessão de sábado aos primórdios da escrita de Maria Gabriela Llansol, comentando e lendo algumas surpreendentes narrativas da aluna do Liceu Pedro Nunes nos anos de 1945-46 (com 13-14 anos de idade), já então vista por alguns colegas como «a literata» da turma, e pela professora Maria Arminda Zaluar como alguém que, «assim, poderá ir até aos astros!».
A poeta Maria Brás Ferreira (autora dos livros Hidrogénio [2020] e Rasura [2021]) comentou algumas dessas redacções, reunidas no caderno feito para esta sessão («Do meu olhar escorre o sonho...» - As redacções da Gabi (1945-46), numa leitura inteligente e iluminante dos aspectos essenciais e mais originais dessa escrita juvenil e já premonitória. Sintetizou-a como sendo uma escrita já então feita como trabalho (e não mero entretenimento), como algo de móbil, um motor ou catalisador da energia da imaginação, e com a capacidade do dom, que proporciona uma leitura activa e devolve alguma coisa a quem lê.
E conclui: «Todas estas histórias encerram o cunho inaugural da experiência estética. Inaugural, não por se tratar de redacções escolares escritas em idade precoce, mas precisamente por definirem, por extracção do real, o sempre começo, e o acontecimento sempre iniciático, com a solenidade que lhe está associada, do olhar. Trata-se da descoberta da experiência estética como aquela que transforma o limite em limiar, e a paisagem num plano fundo, esquivo. Das tentativas de o fixar [...] restará, inequivocamente resta, o descobrimento de mais uma falha e mais uma morada imaginária para o ser».
E ainda, assinalando as afinidades detectadas entre a escrita de Llansol e a poesia de Maria Brás Ferreira (com Spinoza e a «sobreimpressão» em fundo), compôs um «poema-sem-eu llansoliano» em que tudo é autobiográfico sem que o Eu fale de si (como já nas redacções da Gabi e na escrita posterior de Llansol), todo ele construído com linhas tiradas dos poemas dos livros da Maria Brás. Foi também a nossa forma de lhe agradecer a sua participação. Assim:
Vim porque o anonimato falou mais alto
para melhor montar os teatros de menina.
Prefiro os lugares recolhidos
onde se possa tão-só imaginar infinitamente
imagens trémulas, finas membranas de tédio-volúpia.
É isso o que é e o que somos:
nadar no ar, voar rente ao chão.
Devemos mirar-nos de dentro, para dentro,
para poder fixar
a grande evidência das coisas:
O corpo, que desconheço
(mas só o corpo importa);
a voz, o que mais recordo.
onde tudo começa.
As palavras dizem mais de mim
do que quero fazer parecer.
A voz extinguiu-se,
pois é o corpo que sempre prova
a bondade e a justiça.
E tudo importará:
por isso não morreremos nunca.
E experimentando e contornando o medo,
descobriremos o encanto da incerteza,
o desprendimento leal das formas amadas.
Que os anjos falem então por mim, de mim,
que falem de uma vez por todas
sem as amarras da língua [da impostura].
Os verbos que me impelem
são os silêncios, as paralisias
da grande História da Humanidade.
Para, em vez de ocupar o tempo,
perfilar a duração, [intuir o Há].
Para perceber como há noites
que são mais altas do que a noite.
(J.B. – alias, M. B. F.)