«TODOS OS DIAS UMA CARTA»
Apresentação do livro com a correspondência de Llansol
Apresentámos ontem, no Espaço Cultural Cinema Europa, e no âmbito da Feira do Livro de Poesia de Campo de Ourique, o volume com uma selecção de cartas de Maria Gabriela Llansol (entre 1967 e 2005), com o título «Todos os Dias uma carta». A editora da Mariposa Azual, Helena Vieira, contextualizou o aparecimento de mais este volume, a professora da Escola Superior de Cinema e Teatro, Maria Duarte, leu algumas das cartas, e João Barrento apresentou o novo livro com o texto que se segue:
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Este novo volume da colecção «Rio da Escrita», que o Espaço Llansol vem editando com a Editora Mariposa Azual desde 2008, é já o nº 24! A maior parte são textos de intervenções nas nossas Jornadas anuais sobre a Obra de Llansol, mas há também alguns volumes de autor (de Eduardo Prado Coelho, João Maria Mendes, Augusto Joaquim, Maria Etelvina Santos ou eu próprio). Este é um pequeno volume muito especial, a par de um outro, que reune as Entrevistas de M. G. Llansol. Não muitas, que a Autora nunca foi muito dada à feira das vaidades literária, mas iluminantes, como esta selecção de cartas. Trata-se de livros que ajudam a compreender melhor todo um percurso de escrita, uma Obra e uma vida, também relações afectivas que esta autora singular sempre privilegiou. Também estas não muitas, e quase todas nos vão sendo reveladas pelas cartas que este novo livro contém.
Trata-se, naturalmente, de uma selecção. No espólio de M. G. Llansol encontramos muito mais correspondência, mas sobretudo de carácter familiar ou institucional. Bastante menos correspondência com figuras do mundo literário, português ou outro – o que se explica pelo isolamento (sem fechamento total) em que a autora viveu, no exílio e depois dele. Mas desde cedo que aparecem nomes importantes da literatura ou da crítica, a certa altura também da tradução de algumas obras para francês ou alemão. Acontece, no entanto, que metade da vida literária de Llansol é a dos vinte anos de exílio na Bélgica, com muito poucas ligações ao universo literário português. A primeira secção documenta bem as dificuldades de encontrar editor para os primeiros livros, os da primeira e segunda trilogias, todos escritos no exílio belga, entre os anos 70 e a primeira metade de 80. E à medida que avançamos na leitura começamos a perceber como estas cartas não são mera correspondência de circunstância, mas, como acontece também com os milhares de páginas dos diários de Llansol, um repositório de ideias, um espelho da pogressão de uma Obra, um registo diário de experiências que revelam muito dos interesses e das obsessões pessoais e das vicissitudes da vida literária desta autora que a si mesma se vê, de forma viva, como «um corp' a 'screver».
Maria Duarte e João Barrento na apresentação do livro
O título que encontrei (que a Maria Gabriela me ofereceu, como quase todos os desta colecção!) para esta selecção de cartas é o de um texto em que a autora imagina uma troca de cartas fictícias com a escritora belga Marguerite Yourcenar, «Todos os dias uma carta», que seria publicado na revista Vida Mundial em Dezembro de 1997 (vd. a minha Introdução).
Interessava-me destacar, com este volume, este lado ainda não conhecido de Llansol, a sua pulsão epistolar, «o discurso ritual da manhã» ou, como ela escreve numa das suas agendas, «o grande desejo de escrever cartas e guardar as cópias». De facto, ela guardou muitas cópias, manuscritas (nos cadernos) ou já saídas da máquina de escrever, e foi isso que facilitou a minha tarefa de organização deste livro. A atracção pela escrita epistolar – mais do que pela comunicação oral e rápida do telefonema, que se esfuma e não fica disponível para releitura – aparece por mais de uma vez expressa nestas cartas, que não são simples meio de informação, mas registos de pensamento, ensaios de escrita, testemunho de relações de afecto. Também, por vezes, pura poesia, o que pode justificar a sua presença nesta Feira do Livro de Poesia de Campo de Ourique, o bairro que a viu nascer e crescer, entre a Rua Azedo Gneco, a Domingos Sequeira e a Igreja de Santa Isabel.
A atracção pela carta é assim expressa por Llansol num caderno de 1981:
Com uma carta é diferente [diferente de um telefonema], estende-se uma longa teia, se se quiser. E relê-se. E a cada releitura fica-se tão próximo, e encontra-se um novo sentido imaginário, possível. São asssim as cartas de C[hristinne] [e, poderíamos dizer, as de Gabi para ela e outros!]: o ouvido, a vista, o olfacto, o tacto, o entendimento. Mas, o que é que capta a carta? Certamente as leituras sucessivas, as aproximações da necessidade de resposta que não surge no imediato, mas mais tarde...
A carta é, assim, também literatura disponível, um «fragmento de secreto que circula» de mim para outro e de mim para mim, como uma página de diário (é assim que elas devem ser lidas). A sequência das quatro partes em que organizei o volume mostrará claramente como estas cartas não são mero resultado de condicionalismos exteriores de uma vida literária (edição, crítica, leitores, intervenção de artistas...), mas acima de tudo, e frequentemente, «escrita de si» que ilumina os meandros da Obra e das situações concretas em que ela nasce – sem cair no confessionalismo, ou no que Llansol designa de «a mediocridade da autobiografia». O que elas são, acima de tudo — e quem as for lendo apercebe-se facilmente disso — é, entre outros «guias» úteis, um breviário para a leitura de uma Obra, das margens envolventes e dos núcleos irradiantes de uma escrita que se foi fazendo ao longo de quarenta anos, na teia dos dias, carta a carta, e «ao fio do corpo» – como a Maria Gabriela sempre fazia quando escrevia.
(J.B.)