13.3.23

 O FULGOR DA LUZ DE LER


Tivemos no sábado entre nós uma das mais singulares vozes de legente do Texto de Maria Gabriela Llansol, a professora de Filosofia  Isabel Santiago, que há anos acompanha esta Obra e o trabalho que vimos fazendo em torno dela.

Se há leitor/a de Llansol a quem o ser legente assenta como uma luva, esse alguém poderá ser a Isabel Santiago. Vem da Filosofia, mas mostrou na sua exposição (a partir do livro Parasceve, mas irradiando para outros) como, para falar deste Texto, é possível, e necessário, contornar o pensamento abstracto, e escrever e dialogar de preferência com imagens vivas do pensamento e da experiência – melhor seria dizer já, da vivência de um Texto que trouxe para a sua vida e a que dá vida nova ao lê-lo. A sua exposição mostrou como conhece o Texto de Llansol como poucos, sabe o que ele é, ou melhor: conhece o seu devir, sabe que ele existe para se transformar em qualquer outra coisa a cada leitura; enfim, sabe por que rios corre este Texto e aonde nos pode levar.


A Isabel é – como a M. G. Llansol –  um daqueles seres que antes de ser já eram, porque sempre foram o que são, porque um dia vieram a ser o que já eram – como o Nietzsche desse livro-balanço que é Ecce Homo, com o subtítulo, que ecoa em Llansol, Como se chega a ser o que se éTais seres estão predestinados a ultrapassar a sua origem primeira e natural e a escolher um dia a sua verdadeira origem. Llansol: «eu nasci no decurso da leitura silenciosa de um poema...», entre «tecidos espalhados pelo chão» e os textos que seriam lidos...Também a Isabel Santiago nos revelou a «origem» que ela escolheu um dia, muito cedo, como escreve numa carta recente – que é também um poema – que nos enviou depois da sessão sobre Llansol, «A bordadora de Texto» (em Maio de 2021). Aí explica como um dia – da noite para o dia –, ainda criança, começou a perceber o que é «escrever como deve ser» (coisa que, paradoxalmente, se revelaria como um escrever livremente a partir do olhar, sem imperativos categóricos, gramaticais ou estilísticos). Escolheu então a sua via (ou foi escolhida por ela?), como Nietzsche, quando de si dá conta na Segunda Intempestiva: «uma folha solta-se do rolo do tempo... e fica a pairar». Essa folha acompanhará sempre aqueles que escolhem uma origem, que assinala para sempre aquilo que serão. 

A Isabel é desta estirpe. Ela já então «sabia» – de um saber que entra pela janela, mas não vem dos livros – que um dia se iria encontrar com este Texto. Também ela nesses anos da escola, ao ter de escrever uma redacção, se descobriu a si própria como aquela que conhecemos hoje (tal como a Maria Gabriela, aos onze anos, quando começa uma redacção com «Era uma vez...», para logo a seguir dizer: Não, não vou por aí!). Também a Isabel, como Llansol de si mesma diz, tendo de escolher entre o tecido (que era mais o terreno da sua mãe) e o texto (que se revelou ser o seu), se decidiu por este. Mas afinal, os dois têm a mesma origem e etimologia: tratava-se apenas de tecer o texto com outros pontos e linhas, como tão bem o fez no sábado.

Transcrevemos daquela sua carta um parágrafo que diz melhor do que quaisquer outras palavras o que foi a sua lição sobre «O devir e o dever do Texto», que converge em muitos aspectos com o modo como Llansol se via a si mesma a escrever e ler, a escreler


«Na manhã seguinte dediquei-me a escrever como deve ser. Não sabia que o 'como deve ser' é seguir a regra que se impõe no instante fulgurante da imagem que chega à palavra, não sabia que o ritmo era o de uma orquestra com um maestro invisível a fazer movimentos diante da folha a que as mãos obedecem, fazendo ecoar o que as mãos traziam ainda mudas, mas desenhando sinais ou signos. Ainda não sabia e ainda não sei bem. Mas ao fim de algum tempo, debruçada sobre a mesa e a folha em que escrevi e apaguei, escrevi e apaguei, aprendi que podia estar sempre a ver numas coisas as outras, e senti o fascínio da analogia e do ponto analógico que mora no olhar. Sei que a composição terminava com esta frase: o mundo está sempre criado, mas quando chega a Primavera, ela transforma-o e ele torna-se outro

 

Podiam ser palavras de Maria Gabriela Llansol! Estamos perante um caso, raro, de simbiose perfeita.



[O texto completo da intervenção de Isabel Santiago será publicado no próximo número da nossa série dos «Cadernos de Tejo-Rio», que estará disponível a partir de sábado, dia 18].