AS XIII JORNADAS LLANSOLIANAS
Poderia dizer-se, «literalmente e em todos os sentidos», que as XIII Jornadas Llansolianas, que, decorreram no último fim-de-semana, foram «o jardim que o pensamento permite». De facto, muito pensamento se espraiou pelo Espaço Llansol nesses dias. Na introdução ao caderno que documenta o tema destas Jornadas, lemos: «Quem entra na profundidade deste jardim que suscita o pensamento e alimenta o corpo, fica a saber que aí há muitas portas que se abrem, que o pensamento aí tornado possível não é esquema, raciocínio, esqueleto, mas acção da mente e do corpo em que essas portas podem abrir para o prazer e para a dor. Por detrás de cada uma delas há perguntas, e não respostas». Os vários Painéis de intervenções destes dois dias, de que adiante damos conta, deixaram muitas questões a pairar.
Mas o verdadeiro centro pairante, o foco incontornável e surpreendente destas Jornadas, foi o «jardim triangular» ressuscitado e trazido de Herbais para a nossa Casa de Julho e Agosto por três mulheres legentes – Helena Alves, Isabel Santiago e Anabela Farinha – que o instalaram na sala grande do Espaço Llansol. Aquela nave ajardinada e suspensa falava por si, e deixava todos os que entravam mudos de espanto.
As nossas Jornadas têm sido sempre, sob as mais diversas formas, jardins que nos vão permitindo deambular pelo Texto de Maria Gabriela Llansol para o pensar. Nestas, isso foi acontecendo, sempre à sombra do Jardim Triangular, nos vários «Painéis» do programa, num total de nove intervenções, que a seguir lembramos. Imaginamos para cada uma delas um comentário de Maria Gabriela Llansol, que fomos buscar aos seus textos, e que acompanha as imagens de cada Painel.
1. Aurora Carapinha: «...é mais espaço do que o espaço...»
Arquitecta paisagista, Professora da Universidade de Évora. Ausente por incontornáveis razões pessoais, marcou apesar disso presença com o video que passámos, em que a Professora fala da natureza do jardim a partir de um caso exemplar que acompanhou em toda a sua história, com vários livros, como é o dos jardins da Fundação Gulbenkian. O video pode ver-se clicando neste link:
https://youtu.be/worl_EXFr6w
Maria Gabriela Llansol [sobre o jardim triangular de Herbais]:
Tem dois anos e meio, e é de uma imensa beleza; comparando-o ao espaço, é mais espaço do que o espaço; os seus arbustos, e árvores, obedecem a uma plantação irregular mas têm uma ordem; o Inverno, dominando pela geada as ervas do chão, faz sobressair a sua parte aérea, que ressoa nas minhas costas quando volto para casa.
2. João Barrento (Espaço Llansol): «O segredo dinâmico e profundo», ou o Texto-jardim
Maria Gabriela Llansol [em carta à amiga Anabela]:
[Os livros] são os jardins do Texto, querida Anabela, paralelos aos outros, que serão os teus. Certamente haverá uma grande correspondência entre eles, uma interferência da linguagem e da matéria vegetal. Esse é o nosso elo, descubro-o agora, e será o nosso segredo dinâmico e profundo.3. Susana Neves:
O jardim como duplo e a Eva reincidente Etnobotânica, fotógrafa, escritora, autora de Histórias que Fugiram das Árvores. Um arboreto português e Ama o Precipício. Viagem à Mata Nacional do Buçaco.
Maria Gabriela Llansol:
Que felicidade pertencer-vos, natureza, dentro das muralhas eróticas de um jardim... Encontrei um canto descoberto em que plantei as flores – em círculo, tulipas e jacintos, em que medito pensando que eram os mesmos, há quantos anos? As formas florais são imagens dos deuses, e elas presidem no meu paraíso retirado.
4. Nieves Neira Roca: «Eu nunca quis ter um jardim». O risco do jardim e a possibilidade da comunidade em M. G. Llansol
Poeta e jornalista de Lugo (Galiza) (ver texto no final deste post)
Maria Gabriela Llansol:
... Eu espero que o jardim me revele os nomes de muitos seres que, a olho nu (e cego), não se vêem há tanto tempo pela Terra; eu espero que o jardim me proteja do mal de utilizar sem discernimento o poder; eu espero que o jardim nos introduza numa Comunidade de Seres onde não há hierarquias, mas apaixonantes diferenças...
5. Teresa R. Cadete:
Jardinar é preciso? Reflexões com Maria Gabriela em pós-navegação.
Escritora e Professora jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa
Maria Gabriela Llansol:
Eu tenho uma história, uma história interior, e parece-me, através de uma evolução precisa de subtis acontecimentos, começar a aperceber-me corporalmente de que faço parte de um conjunto múltiplo em que tenho muita e pouca importância. Tudo se torna então mais relativo, e o que acontece de bom e de mau ao nível das relações humanas é uma luta de projecção moderada na minha vida.
6. Maria Etelvina Santos (Espaço Llansol): A asa triangular de Herbais
Maria Gabriela Llansol:
... Tive o sentimento de que o jardim que estava a perder, e em que eu no Verão passado criara geometrias reflectidas em arbustos, se havia de transformar em território, ou seio de um livro. O seio de um livro ninguém o pode dominar ou destruir, nem eliminar por crueldade, ou cobiça.
O primeiro Jardim de Herbais e a Encyclopaedia Universais (meus jardins) fazem parte dos territórios que não se adquirem por venda, mas pelo acto de inventar e de tornar real e efectivo.
7. Marina Palácio:
Mãe-Sol: os jardins das infânciasIlustradora e arte-educadora.
Maria Gabriela Llansol:
Era um lugar extraordinário para uma criança citadina, e como eu. Havia uma casa em que sobressaía a madeira velha, uma varanda extensa dava sobre o jardim/quintal em que animais, legumes, flores, tanque de água e poço com roldana viviam lado a lado na paz da terra, e na curiosidade do meu espírito. Para lá desse quintal havia um grande espaço de árvores e plantas por onde se entrava por uma cancela... Não conhecia muito, nem a utilidade nem os nomes das plantas, mas reconhecia-lhes a presença, e contava de todos os seres acontecimentos que os ultrapassavam.
8. Livros novosa) Paula Morão (Professora jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa) apresentou o livro que documenta as Jornadas de 2021: «A Conta-corrente do mundo»: Llansol e a escrita do Diário (Ed. Espaço Llansol/Mariposa Azual).
Paula Morão abordou amplamente a relação entre a escrita do diário e da autobiografia, recorrendo a paralelos com outros autores, como o francês Philippe Lejeune ou a portuguesa Irene Lisboa.
Maria Gabriela Llansol continua esse discurso, comentando o tema em duas frases:
A sequência diarística aparece-me, por si só, como um livro fundamental.
O Diário garante que eu existi; que existiu, sobretudo, o caudal de cenas que se formaram e fluiram a partir daí. Eu secundário, vista que tinha para a margem – principal.
b) António Guerreiro (crítico literário, Professor na escola Superior de Belas Artes de Lisboa) comentou o último dos «Livros de Horas»: Escrever nas Margens. A marginalia na biblioteca de Maria Gabriela Llansol.
O destaque foi para a «descontinuidade» (natural, no caso vertente) deste livro, para a sua «escrita parasita», «hóspede» das margens e dos espaços livres da casa textual de outros autores.
Escrevendo nos espaços do que leu, Llansol cria uma nova modalidade deste ofício: a de escreler. E dirá, neste Livro de Horas:
No fim dos livros, há sempre que escrever______
Sempre gostei de escrever nos livros. Posso marcá-los? Se sim, é porque ainda hoje o livro feito continua a ser querido, e a ser.
Gosto de escrever nos livros para que 'se realizem' na minha própria casa.
Escrever sobre os livros traz-lhes mais folhas.
E tivemos ainda nestas Jornadas:
==> Um «documentário» do cineasta brasileiro Daniel Ribeiro Duarte (nosso colaborador nos primeiros anos do Espaço Llansol) com uma montagem de cenas filmadas em dois lugares relevantes da infância de Maria Gabriela Llansol e da sua relação com o mundo natural, tal como os encontrámos em 2011, data de um projecto do Espaço Llansol que não chegou a ser concretizado: o de um filme que documentasse os lugares importantes da vida de Llansol, com o título Seguindo o Olhar (sugerido já por ela própria em A Restante Vida). Esses lugares, que o video mostra também em fotos de Llansol criança, são: Vila Pouca de Aguiar, em Trás-os-Montes (o quintal-jardim da tia Alice), e Alpedrinha, na Beira-Baixa (a Casa da Estação, dos avós paternos).
Na Casa da Estação, Alpedrinha
No quintal de Vila Pouca de Aguiar
==> A habitual exposição de materiais do espólio relacionados com o tema das Jornadas, com um núcleo especial que reproduzia alguns dos muitos «Desenhos foliáceos e florais» nos cadernos de M. G. Llansol.
==> O caderno temático Os Jardins de Llansol, com textos da Autora, organizados nas seguintes secções:
- Lugar e simbologia do jardim
- Jardins vividos: da infância, do exílio, do regresso (Colares e Sintra; Jardim da Parada em Campo de Ourique)
- Jardins textuais (o imaginário do jardim)
- O Espaço Edénico (jardim da pura imanência).
E já depois de concluído este resumo, eis que nos chega um texto que poderá dar conta de toda a atmosfera que se viveu nos dias 22 e 23 no Espaço Llansol. A Poeta de Lugo, Nieves Neira Roca, envia um testemunho de grande sensibilidade com as suas impressões desses dois dias, escrito na viagem de regresso à Galiza, que exprime certamente as vivências de grande parte dos que nos acompanharam nestas Jornadas. Aqui fica:
O JARDIM QUE VIAJA ATÉ LUGO
Na mais distante lembrança / de um corpo / o mar é um jardim
Cheguei ao Texto de Maria Gabriela Llansol aos quinze anos por um pequeno livrinho da série editada pela Expo '98, que me ofereceu meu irmão mais velho, A Terra Fora do Sítio. Dele ficou-me uma frase: «Não foi o mar, Juan, / mas o seu movimento / que nos foi dado em herança». Quanto podem umas poucas palavras estender o seu corpo por uma vida, não como caminho que orienta, mas como resto que nalguns lugares se desdobra?
Cheguei às XIII Jornadas Llansolianas no dia 22 de Outubro, pela imensa generosidade do Espaço Llansol, de João Barrento e Maria Etelvina Santos, que agradeço desde já para sempre. Na sala pairava um jardim. «Olha», disse-me Maria Etelvina, «Olha! É o jardim triangular de Herbais, o jardim que o pensamento permite!» Com mãos de abandono, mãos precisas, as mesmas mãos com que Maria Gabriela se dava ao jardim, Helena Alves, Isabel Santiago e Anabela Farinha teceram uma trama, uma rede de pesca em macramé. Nela colocaram plantas, invertidas, com a sua raiz protegida em algodão molhado. «Que vai acontecer com as plantas depois?», perguntou Teresa Cadete, uma pergunta que, diziam, poderia ter sido a de Maria Gabriela. «Voltarão à terra», foi a resposta. O lugar do belo é o lugar do Vivo.
Em Na Casa de Julho e Agosto lemos que as beguinas que cosem são as que mais sonham, e, depois, as que jardinam. Nesta casa que tem o nome do livro, este jardim pairante é feito de sonho e de costura. Na sala onde um ramo de legentes se reuniu para pensar o jardim, ele – o seu terceiro sexo – não perdeu nem por um segundo a eloquência. Todo o tempo esteve a vibrar, corpo de pensamento. Alecrim, fetos, urzes, trepadeiras, ramas de Prunus e de oliveira..., e no vértice, apontando, branco como a espuma, o ciclame do jardim é também uma proa de barco capaz de «ler horizontes«. Dom Arbusto, que é Dom Sebastião convertido ao mundo vegetal, e como tal humanizado, como lembrou Susana Neves, lança o seu sopro pela sala. A vocação oceânica transformou-se, assim, no vegetal, na ponta aguda de um jardim que, sendo continente, navega.
Tinha de estar invertido este jardim, para metabolizar a paisagem, precisavam estas plantas de perder pé e receber a terra pelo ar, para sintetizar essa falha em que Teresa Cadete situou as coordenadas do jardim, e que aqui, em Lisboa, tem a forma de uma meia-Lua, diz a professora, ou de uma vela, soprada para dentro. Ir sem abandonar, sem explorar, sem perder o corpo; ficar sem erigir nenhuma fundação, mito, origem. Os jardins de Maria Gabriela viajam. O jardim triangular voga para outro continente, o jardim de Alissubo é errante como a alma. Viajar é aqui ler horizontes, aproximar todo o longe que uma flor pode alcançar quando se abre. Não um jardim dentro ou fora do mundo, mas um mais-mundo, uma mais-paisagem, que pode, como o espaço edénico, nascer dentro do jardim, vogar, ou ter um tamanho minúsculo.
«Não iria voltar à natureza, pelo/contrário: iria tentar trazer a natureza de volta______», escreve Llansol, nessa frase em que vemos desvanecer-se as fronteiras entre a natureza e a cultura. A escrita parasita, instala-se nas margens dos livros, é hóspede da leitura, na feliz imagem que nos ofereceu António Guerreiro na apresentação do último dos Livros de Horas, dedicado à marginália nos espaços brancos da biblioteca llansoliana. A escrita instala-se, como no seu Texto se instalam as figuras, como nas árvores os pássaros ou os insectos e anfíbios nos charcos dos jardins da Gulbenkian, lembra a professora Aurora Carapinha. Um jardim é uma casa de casas, e há uma certa equivalência entre a frase desta professora segundo a qual é tarefa dos seres humanos criar ecossistemas e o acto de tornar reais e efectivos os lugares de trazer a natureza de volta, de Llansol. A escrita incessante do diário, de que falou Paula Morão na apresentação do livro que recolhe as intervenções das Jornadas do ano passado, dedicadas a esse tema, é parte desse tornar real descentrado o universo multiplicado.
Estamos aqui, esse Aqui que é o começo de Causa Amante. O lugar não é um mero topos, é um infinito de relações, como lembrou João Barrento, na intervenção que abriu as Jornadas, citando esta passagem de Numerosas Linhas: «Uma tulipa é a chuva em que momento? É a luz do Sol em que momento? É a passagem dos vermes que arejam a terra em que momento?» Uma tulipa é sol, como uma mulher, eu, aqui sentada, a ouvir, sou sombra dos arbustos. O risco do jardim é o de arriscar a identidade. A possibilidade da comunidade é a de dar o corpo sem perdê-lo. A medida justa, triangular, quadrangular, de que o corpo precisa para se tornar infinito. «Escrever sobre um livro é somar-lhe páginas», palavras de Llansol lembradas por António Guerreiro. Viver no litoral desta frase é curvar a voz.
«Na mais distante lembrança / de um corpo / o mar é um jardim», escreveu João Barrento no caderno de poemas que nos ofereceu. Também na lembrança mais distante deste lugar há uma frase, um movimento que nos foi dado em herança. Ou será que o texto começa antes, quando em criança olhava a poalha luminosa das árvores, como as crianças dos jardins das infâncias de Marina Palácio? «Porque a infância-pessoa não era dela, pertencia ao pensamento, à arte de viver comum», como nos diz Llansol em Parasceve. A essa arte quer levar-nos o Texto quando diz: «Tens de mudar a tua vida», como no verso de Rilke, porque «a crise ecológica – aponta Etelvina na sua intervenção – é uma crise de sensibilidade».
«Parece uma canoa ao contrário», diz a filha de Albertina Pena sobre o jardim que paira, somando-lhe folhas.
«Onde foram?», pergunta Etelvina, dando pela nossa demora antes da última sessão. «Fomos ver o céu», respondo, e as duas surpreendidas por a língua poder dizer o que nós não conseguimos, abrir esta clareira. O céu é o da Igreja de Santa Isabel, pintado por Michael Biberstein. «Tens de ficar lá quinze minutos, pelo menos», dizem-me Helena Alves e Helena Vieira. Pedro Patrício repara que «é impossível distinguir nesse céu qualquer figura». Um céu infigurável, imperfeito, «do sublime esmagador ao sublime do ínfimo», como disse Maria Etelvina a propósito de Maria Gabriela, o menos singular dos céus. Passei quinze minutos debaixo desse céu, e todo o tempo das Jornadas debaixo do jardim triangular. E não senti necessidade de olhar para cima, porque «não foi o mar, Juan, / mas o seu movimento / que nos foi dado em herança», porque era no papel das notas que caíam, minúsculas, as gotas daquele mar.