15.5.22

A LUZ DE LER LLANSOL

E O PRINCÍPIO DA DESPOSSESSÃO


Foi no sábado, dia 14, mais uma sessão da série «A Luz de Ler», em que escritores têm vindo a dar conta da sua relação com o universo da escrita de Maria Gabriela Llansol, e os modos de a ler. Desta vez com o poeta Luís Filipe Pereira, autor de três livros de poesia densos e originais, escritos – tal como o próximo, a sair em Junho – em diálogo mais ou menos explícito com escritores, filósofos, artistas, com quem o poeta convive há anos, em particular António Ramos Rosa e Maria Gabriela Llansol.

Os livros de poesia de Luís Filipe Pereira

João Barrento apresentou a Obra deste autor, destacando aspectos que podemos pôr em paralelo com os modos da escrita de Llansol, como a capacidade de ver e transmutar o fluxo incessante do rio das imagens, a linguagem que é expressão de uma total autonomia (imagética) do dizer que nasce do ver, com referentes concretos que se esfumam mas nunca se perdem de vista; a poesia que busca trazer à palavra, não lugares ou acontecimentos, mas «paisagens» no sentido llansoliano do termo (espaços animados e vibrantes, uma língua própria em acção); a centralidade de cadeias isotópicas focadas em imagens de luz e de sombra, numa poesia de grande densidade, conhecedora da carne e do sangue (da crosta e do miolo) das palavras, e sensível aos apelos mais humanos, transcendentais ou ínfimos, de um mundo sempre vivido e transformado. Partilha-se aqui com Llansol a capacidade (necessidade?) de transmutar o visto em visionado, para chegar ao outro lado das coisas, ao cerne invisível da película do visível. Tudo isto num trabalho rigoroso e criativo com a linguagem, para chegar a uma fala poética própria, muito para lá do dizer comum (até de grande parte da poesia que hoje se faz).

João Barrento e Luís Filipe Pereira

E Luís Filipe Pereira trouxe-nos, para além de comentários que esclareceram a sua ligação com a Obra de Llansol, uma intervenção reveladora de grande saber filosófico e literário, e sobretudo de um raro conhecimento de uma escrita e de um mundo complexos e luminosos, que o poeta leu a partir de um motivo que é muito mais do que isso, porque pode explicar o móbil que desde sempre alimentou o «projecto do humano» de Llansol: a figura e os significados múltiplos do «Pobre» nesta Obra. Como sempre em Llansol, longe dos sentidos mais correntes do termo, a figura do pobre, o princípio da «despossessão» (há muito proposto por Silvina Rodrigues Lopes) e do «desmunir» (no posfácio a A Restante Vida) pode explicar as transmutações operadas em todas as figuras históricas da Obra da autora e o que acontece na «casa do Texto» e no processo único da escrita de Llansol. Luís Filipe Pereira iluminou este princípio fundador do trabalho da «escrevente Llansol», comentando detalhadamente os muitos encontros dos seus livros com os das inúmeras figuras que os alimentam e que são, elas mesmas, exemplos acabados dessa noção de pobreza ou despossessão de marca humanamente positiva: de Camões (Comuns, «o Pobre», em mais do que um livro) a Spinoza, dos místicos a Rilke, de Hölderlin ao «eremita» Raimundo Lull, de Pessoa a Eckhart ou Müntzer, e tantos outros.