21.2.22

 24 QUADROS

... E AS SUAS LEITURAS


Vimos no passado sábado, na série que denominamos «Encontros im-prováveis», o último filme de Abbas Kiarostami, 24 Frames, uma original obra que parte da fotografia para criar planos cinematográficos animados, e que, como sempre, associámos a temas, motivos, processos, propostas da Obra de Maria Gabriela Llansol. A fotógrafa Teresa Huertas apresentou o autor e a obra e comentou os seus processos, numa leitura que nos permitiu conhecer melhor a gestação, o desenvolvimento e as particularidades técnicas deste filme. E mostrou ainda, no final, um video que documenta o seu último trabalho, com evidentes paralelos com o de Kiarostami neste filme, na metamorfose progressiva de uma paisagem fotografada: a fotografia animada da exposição Átmos-Passagem # 1, que recebeu em 2021 o Prémio da Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira).
Discutiram-se depois da projecção, com o público, vários aspectos sugeridos por esta obra singular e híbrida, que pede atenção a pormenores ínfimos e em que o mundo natural, os seus comportamentos, os seus «dramas» e as suas emoções, parecem ser sempre o ponto de partida para uma leitura crítica das sociedades humanas, com um fundo poético inequívoco.


Fotografias de Fátima Vicente Silva

No caderno que acompanhou a sessão estabelece-se um diálogo entre textos de Llansol e de Kiarostami, e reproduzem-se os 24 quadros do filme. Desse caderno deixamos aqui, para quem não pôde estar presente, a introdução.

A AURA DA PAISAGEM,

O  DRAMA-POESIA DO VIVO,

O RESPIRAR DO TEMPO


O filme do realizador iraniano Abbas Kiarostami que aqui se apresenta, em paralelo com o mundo de Maria Gabriela Llansol (o primeiro «Encontro im-provável» foi com a série de Kiarostami intitulada Five, que mostramos em 2014), é feito de instantes que prolongam o olhar no tempo e no espaço, reflexos instantâneos do mundo nesse olhar. Filme minimalista construído a partir de fotografias do autor digitalmente animadas, deve tudo à atenção e a uma capacidade, que é comum ao cineasta e ao fotógrafo, de se ater ao ínfimo, ao aparentemente insignificante, ao eternamente recorrente (a neve ou a chuva, a vida animal e as estações do ano, a natureza sempre igual e sempre outra, os hábitos intemporais, os pequenos gestos), para tudo transformar numa festa para os olhos que pousam sobre as coisas do mundo o tempo suficiente para as dar a ver, e imperceptivelmente outras vão surgindo no campo de visão, não para substituir a anterior, mas para lhe responder, numa cadeia interminável – pelo menos para o espectador.

O realizador explica nos seguintes termos a ideia deste original filme que já não chegou a terminar (a montagem final foi feita pelo filho, Ahmad Kiarostami):

«Pergunto-me sempre até que ponto o artista pretende descrever a realidade de uma cena. Os pintores captam apenas um plano da realidade, e nada antes ou depois dele. Em 24 Frames parti de uma pintura famosa, mas depois passei a usar fotografias que tinha feito ao longo dos anos. E acrescentei a cada uma cerca de quatro minutos e meio, com o que imaginei que podia ter acontecido antes ou depois de cada imagem que captei.

O que vemos nestes 24 Quadros poderia resumir-se num conjunto de impressões, derivadas de todos e de cada um desses momentos de vida enquadrada pela fotografia que se anima de movimento – tal como as imagens de pensamento ou as cenas fulgor do texto de Llansol trazem à linguagem (que aqui deixa de ser vista como convenção morta) núcleos irradiantes e igualmente enigmáticos de tensão e vibração.

Ambos, Kiarostami e Llansol, são criadores de limiares (entre a fotografia e o cinema, a imobilidade e o movimento, o visível e o invisível, a superfície e a «dobra», o dentro e o fora), zonas onde se arriscam outras possibilidades de gerar sentidos, por mais inverosímeis que pareçam. As impressões e sensações que os 24 Quadros despertam no espectador nascem quase sempre de cenas do mundo animal (humanizado, como em Llansol), deixam falar os elementos, são palco de cenas vivas que prendem a atenção. Assim:

– Subitamente, o Vivo começa a animar paisagens aparentemente desabitadas.

– Essa animação manifesta-se em jogos de vários tipos: de sedução e de confronto, de atracção e de lamento, de revelações e de enigmas, de luz e de sombra, de movimento e de quietude...

– Por vezes, de uma imagem que começa a desdobrar-se no tempo nascem mini-narrativas atravessadas por instantes de emoção, de beleza, de vida-morte, frequentemente com um clímax dramático que encerra o quadro, e com «bandas sonoras» naturais ou musicais.

– Em cada quadro há – como sugere Roland Barthes para a fotografia – um punctum, um foco que capta a atenção do espectador, que se mantém preso a ele.

– A objectiva, a câmara, é um posto de observação sem pressas: com estes Frames aprendemos a viver no tempo, reaprendemos a lentidão, a concentração, o espanto.

E o substrato humano do mundo animal em acção, a pureza e a vastidão da neve ou do mar, os mistérios de mundos do Vivo que nos são familiares mas que, no fundo, desconhecemos, transformam cada quadro animado num momento de intensa beleza.