3.11.21


«O DIÁRIO ESTÁ NO CENTRO DA VIDA»

AS XII JORNADAS LLANSOLIANAS

As edições e traduções dos Diários de M. G. Llansol
 
 
 
O tema das Jornadas Llansolianas deste ano, que decorreram no último fim de semana, centrou-se numa mónada em torno da qual gravita toda a escrita da nossa autora: o Diário, forma que subverte o género instituído para se tornar num modo único de comunicação pela escrita, e que desde muito cedo invade também os livros de Llansol normalmente lidos como ficção.
 
Os Diários e o espólio em exposição
 
A primeira entrada nesse mundo escritural e existencial foi dada, nestas Jornadas, pela leitura, a duas vozes (de Isabel Santiago e Maria Etelvina Santos), de partes do prefácio da autora e tradutora austríaca Ilse Pollack à edição alemã do primeiro diário de M. G. Llansol, Um Falcão no Punho, saída este ano em Leipzig. Trata-se de uma original entrevista imaginária em que a tradutora coloca à escritora algumas questões essenciais para a compreensão dos caminhos da sua existência e das suas opções literárias, de onde vai ressaltando a centralidade do Diário, e cujas respostas são sempre fragmentos de texto de Llansol, das mais diversas proveniências.

Isabel Santiago e Maria Etelvina Santos: leitura a duas vozes 

João Barrento procurou dar continuidade a esta problemática, centrando-se na evolução desta pulsão de escrita dos dias em Llansol, desde o seu primeiro diário, de 1949, e numa linha que foi acentuando o progressivo descentramento do Eu do diário no sentido de «um falar absoluto e sem sujeito» (Eduardo Lourenço, nas nossas Jornadas de 2010), de um ser de escrita que procura dar conta do («Escrevo como »), do movimento total do mundo – do Diário de um Eu (ainda mais ou menos convencional) ao Diário sem Eu. Aí, nos livros que nascem dos diários e permanentemente entram numa interacção osmótica com eles, as figuras centrais passam a ser o Tempo (dos dias, da memória, da História, do Ser), ou também um Eu duplo de si mesmo, des-subjectivado, falando na terceira pessoa. Uma escrita entre dicção (diarística) e ficção, em que a linguagem e os modos de composição da obra seguem uma terceira via, a da fricção com os géneros, para poder agir «nas margens da língua, fora da literatura».

Como complemento desta sua intervenção, João Barrento mostrou ainda o vídeo que se segue (clicar no link) – Llansol e o Diário: Leituras e projectos –, onde podemos seguir o interesse de Llansol pelos diários de vários outros/as autores (presentes na sua Biblioteca, e sobre os quais escreve) e também a sua verve diarística atípica, evidente nos muitos projectos de Diários, não concretizados como tal e com esses títulos, mas que acabaram quase sempre por se derramar pelos seus livros:

https://youtu.be/8OEsi4BxDPI 

A temática do Diário alargou-se depois a outros registos e línguas, com a relação estabelecida pelas responsáveis do Arquivo dos Diários de Lisboa, Clara Barbacini e Sara Aguiar, com outras formas, mais comuns, da escrita da memória, representada nos acervos dos arquivos de Lisboa e de Pieve Santo Stefano, em Itália, sua fonte de inspiração. Sara Aguiar leu alguns excertos de Diários do Arquivo de Lisboa que suscitaram grande interesse da parte do público.

Sara Aguiar e Clara Barbacini
Diários e epistolografia do Arquivo de Lisboa

A história, os objectivos e as actividades destes dois originais arquivos foram apresentadas nos vídeos que se seguem (o texto dos vídeos sobre o Arquivo italiano são dados em tradução, para mais clara informação dos leitores portugueses):

https://youtu.be/VOzVp_bwB0M

O Arquivo dos Diários de Lisboa [clique no link para ver]

 

 https://youtu.be/wcTCEzM1_Rg

O Arquivo Nacional Italiano dos Diários [clique no link para ver]

 
 

A tarde de sábado fechou com a apresentação de dois novos livros, moderada pela editora Helena Vieira

Em primeiro lugar, a terceira edição do primeiro diário, Um Falcão no Punho (agora acompanhada de oito pinturas de Ilda David'), comentada por Ana Marques Gastão, que intitulou o seu comentário «A geometria do punho». A patir daí reflectiu sobre o modo geométrico de operar na escrita de M. G. Llansol desde O Livro das Comunidades, e relacionou, nesta edição, a escrita llansoliana e as «pinturas-som» de Ilda David' (que não são ilustrações, mas confluências-metamorfose de duas artes da imagem), partindo de ideias como Peregrinação e Natureza-livro. Os traços longos nos textos de Llansol foam associados ao falcão (figura transfigurada do punho) como parte de uma arte combinatória com eventuais ecos cabalísticos, e a ordenação espacial rigorosa desta escrita afinal não diarística a uma «metafísica geometrizante» como a da música. A estrutura textual, a de um labirinto de linhas, é afirmada pelo grafismo ao qual a escritora alude quando fala da importância formal dos seus textos, reconhecidos pelo vórtice que nela provocam. O diário surge, assim, em Llansol como um «ser-em-potência» que age, de maneira activa, na intensificação do mundo.

Ana Marques Gastão e Helena Vieira

O segundo livro, acabado de sair como 22º volume da nossa colecção «Rio da Escrita»,  com organização de João Barrento, documenta todo o trabalho, agora concluído e realizado nos últimos anos, de tratamento do espólio total de Maria Gabriela Llansol: um «Inventário analítico e descritivo» de todo esse acervo, desde a sua descoberta, inventariação, organização e tratamento arquivístico e digital. É toda uma trama orgânica de relações entre os três grandes sectores – o espólio literário, o arquivo documental e o espólio material –, como um grande «Atlas» warburgiano, que no livro é apresentado através da descrição de cada sector e em quadros sinópticos pormenorizados, e com informação sobre as metodologias utilizadas  no arquivo físico e na classificação e indexação (seis índices de toda a escrita) de um espólio múltiplo e provavelmente único na literatura portuguesa do século XX. Um documento que poderá ser essencial para compreender, agora e no futuro, o que é verdadeiramente este «fragmento completo e sem resto», e  que Maria Gabriela Llansol parece ter antevisto um dia já em forma de livro, ao escrever numa das cerca de 34.000 páginas dos seus cadernos e dossiers: «Talvez o arquivo se transforme em livro... Pequenos lugares conscientes e inconscientes reunidos – perdidos uns dos outros e encontrados uns nos outros».
 
Na manhã de Domingo, duas intervenções, de Maria Etelvina Santos e Cristiana Vasconcelos Rodrigues, trouxeram novas perspectivas sobre o amplo tema da escrita do Diário, em Llansol e numa das autoras da sua biblioteca, a holandesa Etty Hillesum.
 
As intervenções de Cristiana V. Rodrigues e Maria Etevina Santos

Maria Etelvina Santos começou por destacar a relação múltipla e metamórfica entre os «cadernos de registo diário», os diários publicados e os livros «nodais» de Llansol, relação essa que passa por um processo de subversão e mutação do «género diário». Ultrapassando os registos de tempo e transformando-os em registos de espaço (com as suas «passagens-metamorfose»), os diários criam um espaço textual, não através da sua transcrição, mas através de uma inscrição no corpo dos diferentes livros, que resulta na consequente e frutífera hibridez de género. Um Falcão no Punho, Lisboaleipzig, O Senhor de Herbais e Onde Vais, Drama-Poesia? são momentos paradigmáticos onde a «oficina de escrita» llansoliana se revela na vontade de diálogo constante com o leitor/legente, integrando-o na génese dos livros e revelando-lhe os fios condutores de uma escrita que sabe que a condição do literário não radica na transparência.
A partir de exemplos da voz diarística de Etty Hillesum, Cristiana Vasconcelos Rodrigues fez uma aproximação ao espírito da letra llansoliana, em dois aspectos particulares, entre os muitos possíveis: o da relação de ambas com a História, ou com o espaço-tempo, e o da escrita como caminho, como processo em aberto. Pautando-se por características que, ao contrário da escrita llansoliana, fragmentada e sincopada, se aproximam formalmente do género do diário, a escrita de Etty Hillesum contém em si uma força dialogante para fora do género, que coloca esta mulher de vinte e nove anos entre as vozes místicas mais marcantes do século XX. Paralelos com a escrita de Llansol tornam-se evidentes quando pensamos na demanda da alegria e do júbilo, no encontro de pensamento e afecto, na oscilação entre hesitação e confiança que evita a queda no subjectivismo banal. E, sobretudo, ambas convergem na potência do agir pela palavra, no culto da escrita como forma de acção sobre o mundo, fundada na atenção, na vigília, no estado de alerta contínuo, para que nada seja em vão.

A tarde de domingo trouxe-nos um contributo original, diferente e ressumando beleza, de duas artistas plásticas – Ana Mata e Catarina Domingues –, desde há algum tempo trabalhando a quatro mãos, dois corpos e dois pares de olhos no colectivo artístico que designam de «Chama | Ficção», compondo dia a dia o seu diário singular feito de imagens e textos, e de onde nasceu o vídeo que apresentaram e comentaram, juntamente com um pequeno álbum que o complementa. O vídeo intitula-se Cadência, o álbum fotográfico Intermitências – os dois pólos do fluxo dos dias, dados pelo duo da «Chama | Ficção» na articulação dos ritmos e das cesuras das imagens (em parte colhidas no Espaço Llansol) e na discreta e bela atmosfera sugerida pelo fulgor sensual dos textos que as acompanham. Muito à imagem de tanta escrita de Llansol.

 A sessão com a «Chama | Ficção» (Catarina Domingues e Ana Mata) 


https://youtu.be/w1v8nM5-8CA

 O vídeo-diário Cadência
[clique no link para ver]

E o dia terminou com as habituais leituras de textos de M. G. Llansol sobre o tema das Jornadas, desta vez constituída por fragmentos distribuídos aleatoriamente entre o público presente, que os foi lendo na ordem por que a seguir se apresentam:






Entre o público encontrava-se a artista-poeta Marina Palácio, atenta observadora e acompanhante da natureza e da criança, e empenhada legente de Llansol, que nos deixou este seu registo verbi-visual das intervenções de Domingo: