A FESTA DE INVERNO DO AMOR FATI
O pretexto para a sessão de sábado passado foi a apresentação do calendário Amor Fati para 2022, das artistas Ana Mata e Catarina Domingues (o colectivo «Chama | Ficção»), que abre com uma evocação de O Começo de um Livro é Precioso, de Maria Gabriela Llansol, acompanha todo o ano com um texto para cada mês e uma imagem para cada estação do ano, e reserva espaços em branco para anotações.
O tema pedia contextualização filosófica e ligações ao Texto de Llansol, e isso foi feito, a abrir a sessão, por João Barrento. As duas artistas falaram deste seu projecto Amor Fati, expuseram obras e publicações e mostraram os cinco videos realizados em 2021, exemplos acabados de uma feliz articulação entre imagens e texto, e também expressão de uma ideia condutora que é também a do Amor fati nietzschiano: uma visão afirmativa e estética da vida e do mundo. Disso se ocupou a introdução de João Barrento, que a seguir se transcreve. A fechar a sessão, uma improvisação em clarinete baixo por Ricardo Ribeiro, inspirada nos videos que corriam.
João Barrento
AMOR FATI: A SABEDORIA DO SIM
Amor fati – aí está uma expressão adequada a um calendário, porque tem a ver com o curso dos dias, a viagem da vida, e o modo como nos relacionamos com esse destino/fatum. É precisamente a noção de destino, e da nossa relação com ele, que está em causa nesta expressão criada por Nietzsche (mas com uma história muito mais antiga no que se refere à ideia que contém). Vou tentar comentar um pouco essa história, para chegar à nossa Maria Gabriela Llansol, e também às artistas da «Chama | Ficção» que desde há alguns anos fazem este calendário. E começo precisamente por lembrar uma frase, quase um lema ou mote que orienta as criações da Catarina e da Ana, e que serviu de orientação para uma das suas últimas exposições, deste ano, intitulada «Desenho Desejo»: o desenho dos dias e o desejo (amoroso) de que eles tragam uma marca própria – que cada um aceita e explora o melhor que pode e sabe. Diz a frase:
Desejo.
Que cada dia tenha a sua marca, que haja um sentir da presença do mundo, da sua sensualidade.
A capacidade de sentir o mundo como presença sensível (geradora de beleza, e a que não temos de impor a nossa vontade arbitrária) é a condição fundamental definida por Nietzsche como base da noção de amor fati, um Sim à vida e ao que está aí, e tem sempre uma qualquer razão para ser assim (até um racionalista que Nietzsche não prezava particularmente, Hegel, o reconhece ao afirmar: «Alles was ist, ist vernünftig!», ou seja, tudo o que é, é assim à luz de uma qualquer forma de razão – mais prática do que pura ou abstracta!).
Em Nietzsche, o amor fati é definido nos seguintes termos, em dois dos seus livros: em Ecce Homo, um livro-síntese, com um subtítulo muito significativo para o que aqui nos interessa: «Como se chega a ser o que se é». Aí lemos:
A minha fórmula de grandeza do Homem é amor fati: não pretender ter nada de diverso do que se tem, nada antes, nada depois, nada por toda a eternidade...
Não quero de forma alguma que qualquer coisa, seja o que for, seja diferente do que é; eu próprio não quero ser diferente do que sou...
Isto leva-nos de volta àquele subtítulo: chega-se a ser o que se é pela escolha de uma origem, e pelo amor a esse destino – mesmo quando ele nos é adverso, porque se afasta do comum e do expectável! Algo assim como M. G. Llansol quando descreve as origens que escolheu (recusando ou esquecendo as mais óbvias): «Eu nasci no decurso da leitura silenciosa de um poema... Eu nasci na sequência de um ritmo. Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe, o caminho caminha, eu deslumbro-me quando o tempo se suspende...» (Onde Vais, Drama-Poesia). E também noutras passagens ela entra em consonância com o filósofo, quando escreve: «Eu vejo-me sem ter a posse do meu destino... Quer dizer, estou onde estou» (Caderno 1.20, p. 20 - 21.5.76); ou: «Destino não é só para diante. É depois e antes» (Caderno 1.04, p. 98 - 30.10.77). Como em Nietzsche, somos nós que escolhemos o nosso destino, e não um qualquer deus, ou deuses. Ele vem de trás, do momento em que escolhemos uma origem e um caminho, em que demos um sim ao mundo que aí está, e que reconhecemos como nosso.
O segundo livro de Nietzsche, A Gaia Ciência, introduz mais claramente uma dimensão estética nesta escolha:
Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!
Há um livro de Llansol onde esta dimensão, para além de outras coincidências, está particularmente presente: O Senhor de Herbais, cujo subtítulo fala da «reprodução estética do mundo, e suas tentações». Também Llansol aí se entrega a uma aceitação sem reservas dessa dimensão estética do mundo, que o destino escolhido sabe onde procurar: «Continuo a pensar que a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas. Mas onde estão essas coisas? Por onde vogam esses objectos insólitos? De uma coisa estou certa: não será um Deus que no-los dará» (p. 48).
E já antes: «O mundo é puramente estético, mas raramente é santo» (p. 25); «Como é tão leve atravessar as várias estéticas do mundo... fazendo apenas atenção para não tropeçar em certezas, escolhos e quimeras» (p. 43). E ainda, confirmando a ideia de amor fati como, não uma estética apenas, não uma ética, que também é (sem réstia de moralidade), mas como uma étistética:
«Pelo meu lado, desejaria pôr a claro uma mínima parte da infinidade dos mundos – uma só física hipotética desdobrando-se activamente em várias possíveis estéticas. Nesse sentido, aceito que exista um poderoso ponto de equivalência entre estética e ética. Como opções pensadas, e nunca como corolários de um qualquer dever moral» (p. 46).
O amor fati perfila-se aqui como um claro sim à vida, intimamente ligado a uma relação estética com a existência, e como um antídoto à moral, «para além do bem e do mal», na versão de Nietzsche. As associações com outros aspectos centrais da Obra de M. G. Llansol são várias, a começar pelo lugar decisivo do plano da imanência das coisas, aprendido em Spinoza; a aceitação do que é tal como é (incluindo a minha própria existência), em vez de o remeter para o céu das ideias (platónicas) ou para uma qualquer noção de deus – que para Nietzsche morreu, e para Spinoza, enquanto Substância, só existe na própria imanência das coisas, despido de toda a transcendência. Isto significa aceitar a finitude e a fatalidade, mas também a plenitude que isso contém, porque só essa totalidade sensível nos pode realizar, ditar o nosso destino. Como lemos numa alma gémea de Llansol, Clarice Lispector: «Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida...» (A Paixão segundo G.H.). Em Llansol isso conduz à percepção do «fulgor que há nas coisas», à afirmação do júbilo do Ser — e à capacidade de superar os aspectos negativos da existência (pela escrita, mas não só). Por isso nesta Obra não há morte, por isso nela tudo e todos têm o seu lugar no mundo (o seu destino sem regulador externo). O amor fati é então uma sabedoria do Sim, e o Sim sem fronteiras é o motor da criação (sem acomodação e sem niilismo – a não ser talvez aquele a que Nietzsche chama o «niilismo activo», a negação que serve para construir e continuar). Amor fati é aqui amor vitae: tudo o que vivemos e somos é absorvido (e de certo modo desdramatizado) nesse grande Sim. Em Nietzsche, em Llansol e também na filosofia eudemonista (da busca da felicidade) do seu mentor Spinoza – assumir o seu próprio destino, sem o deixar por mãos alheias, nem as da sorte, nem as de um qualquer deus ou senhor. Em Spinoza, o amor fati será uma «ideia adequada» que move as paixões da alma, contra as ideias inadequadas que produzem paixões negativas e destrutivas. É um «jogo da liberdade da alma» de carga positiva, porque, conclui Spinoza, «o homem livre em nada pensa menos do que na morte; e a sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida».
Com tudo isto somos levados muito para além de Nietzsche, e não quero deixar de evocar, para finalizar, algumas das origens mais remotas desta ideia do «amor do destino», em dois ou três filósofos da Antiguidade, quase todos da linhagem estoica.
Um deles, em quem mais facilmente se pensará desde logo, é o Epicuro da Carta sobre a Felicidade, pela recusa do determinismo e do fatalismo no contexto estrito da biologia, da polis, da vida social e da relação com os poderes: «Mais vale aceitar o mito dos deuses [o fatum] do que ser escravo do destino dos naturalistas». Ou seja, importa afirmar a vontade e a liberdade individuais, escolher, diria Llansol, a «restante vida» e não o mundo, porque, uma vez mais, o destino não é uma fatalidade, mas um desafio.
Também Marco Aurélio, no Livro X dos Pensamentos, acentua este lado de desafio, e não de submissão:
«Tudo aquilo que te acontece, acontece para que o possas suportar, ou não. Se te acontece alguma coisa que possas suportar, não te queixes, mas lida com ela da melhor maneira possível. Mas se a não puderes suportar, não te queixes também, porque antes ela te aniquilará. Pensa então que tens a força suficiente para enfrentares o que te acontecer, e que fazê-lo só te trará vantagens.» – isto (dirá Nietzsche na Segunda Intempestiva, e também Llansol), se tiveres tido a capacidade de escolher antes a tua origem, que determinará o teu destino.
Mas talvez o mais pertinente e interessante dos antigos estoicos seja Epicteto e o seu Manual (o Encheirídion, um conjunto de aforismos de filosofia prática). Aí encontramos já de forma explícita, não o termo, mas a ideia do amor fati: «Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quere que aconteçam como acontecem, e a tua vida terá um curso sereno» (8.1) Há aqui claramente já a ideia de um dizer sim ao destino, à vida tal como ela se apresenta e corre, para lá da nossa opinião e da vontade de lhe impor outros sentidos ou outro curso. Isto é, fazer de cada situação a melhor possível, e continuar. Perguntamo-nos: mas não será isso pura acomodação às circunstâncias, aceitação da fatalidade ou wishful thinking? Mas quando se fala de fatalidade neste contexto (a raiz é a mesma, fatum), não se trata de submissão a algo de incontrolável, mas de o tentar compreender para melhor o ultrapassar! Afinal, de um savoir vivre, de um ajustamento feliz às circunstâncias, para poder continuar a viagem (o seu contrário é que seria fatal!).
Epicteto conta uma história exemplar que me parece servir bem para entender o sentido do amor fati como uma sabedoria do Sim, a que já me referi, e com ela termino. É a história de um cão que é atrelado a um carro puxado a cavalos com uma corda longa (a sua margem de manobra ou de decisão é grande), e a quem se oferecem duas hipóteses: 1) acompanhar tranquilamente o andamento do carro e desfrutar da viagem; ou 2) resistir com toda a força ao andamento do carro e ser arrastado por ele!
Esse cão somos nós: ou fazemos o melhor possível da nossa viagem em cada momento desta vida (o nosso destino), ou resistimos a qualquer contratempo, tentando compreendê-lo e superá-lo (e isso significa ainda aceitá-lo!), ou insistimos na nossa fraca opinião humana – e afundamo-nos.
O amor fati como sim à vida é também um sinal de compreensão do movimento do mundo e do sentido das coisas; e desse movimento do mundo está sempre a nascer o novo, o mundo é, diz Llansol, «o desconhecido que nos acompanha». E para ver e entender esse novo é preciso ter aquilo que ela designa de um «olhar à cão», inteligente, despreconceituado, disponível e livre. O olhar que Llansol oferece a Vergílio Ferreira (que na sua vida não terá conhecido nem praticado o amor fati) e que Augusto Joaquim um dia definiu de forma lapidar e certeira: é aquele olhar «que procura a luz que emerge, algures, entre a ética da responsabilidade, a procura intransigente do belo e o dito rasante e justo».
É isto, em última análise, o que encontramos também nas obras – o desenho e o video – das nossas artistas da Chama | Ficção, a Catarina e a Ana: a responsabilidade (no sentido original do termo: resposta e encontro, em relação ao mundo), a busca do belo e a justeza do «dito», aqui a do mundo de imagens que é proposto ao nosso olhar (olhar à cão, ainda e sempre, livre de preconceitos, disponível para receber e tentar compreender). Resumo o amor fati et vitae da Catarina e da Ana numa frase do crítico Bernardo Pinto de Almeida a propósito de uma das últimas exposições do Chama | Ficção:
«Uma reverberação de vida de que o próprio ser participa, porque o mundo inunda de seiva misteriosa, murmurante, os sentidos de quantos são capazes de se lhe abrir sem limite».