29.11.21

 A FESTA DE INVERNO DO AMOR FATI


O pretexto para a sessão de sábado passado foi a apresentação do calendário Amor Fati para 2022, das artistas Ana Mata e Catarina Domingues (o colectivo «Chama | Ficção»), que abre com uma evocação de O Começo de um Livro é Precioso, de Maria Gabriela Llansol, acompanha todo o ano com um texto para cada mês e uma imagem para cada estação do ano, e reserva espaços em branco para anotações. 


 

O tema pedia contextualização filosófica e ligações ao Texto de Llansol, e isso foi feito, a abrir a sessão, por João Barrento. As duas artistas falaram deste seu projecto Amor Fati, expuseram obras e publicações e mostraram os cinco videos realizados em 2021, exemplos acabados de uma feliz articulação entre imagens e texto, e também expressão de uma ideia condutora que é também a do Amor fati nietzschiano: uma visão afirmativa e estética da vida e do mundo. Disso se ocupou a introdução de João Barrento, que a seguir se transcreve. A fechar a sessão, uma improvisação em clarinete baixo por Ricardo Ribeiro, inspirada nos videos que corriam.



João Barrento

AMOR FATI: A SABEDORIA DO SIM

Amor fati – aí está uma expressão adequada a um calendário, porque tem a ver com o curso dos dias, a viagem da vida, e o modo como nos relacionamos com esse destino/fatum. É precisamente a noção de destino, e da nossa relação com ele, que está em causa nesta expressão criada por Nietzsche (mas com uma história muito mais antiga no que se refere à ideia que contém). Vou tentar comentar um pouco essa história, para chegar à nossa Maria Gabriela Llansol, e também às artistas da «Chama | Ficção» que desde há alguns anos fazem este calendário. E começo precisamente por lembrar uma frase, quase um lema ou mote que orienta as criações da Catarina e da Ana, e que serviu de orientação para uma das suas últimas exposições, deste ano, intitulada «Desenho Desejo»: o desenho dos dias e o desejo (amoroso) de que eles tragam uma marca própria – que cada um aceita e explora o melhor que pode e sabe. Diz a frase:

            Desejo.

           Que cada dia tenha a sua marca, que haja um sentir da presença do mundo, da sua sensualidade.

A capacidade de sentir o mundo como presença sensível (geradora de beleza, e a que não temos de impor a nossa vontade arbitrária) é a condição fundamental definida por Nietzsche como base da noção de amor fati, um Sim à vida e ao que está aí, e tem sempre uma qualquer razão para ser assim (até um racionalista que Nietzsche não prezava particularmente, Hegel, o reconhece ao afirmar: «Alles was ist, ist vernünftig!», ou seja, tudo o que é, é assim à luz de uma qualquer forma de razão – mais prática do que pura ou abstracta!).

Em Nietzsche, o amor fati é definido nos seguintes termos, em dois dos seus livros: em Ecce Homo, um livro-síntese, com um subtítulo muito significativo para o que aqui nos interessa: «Como se chega a ser o que se é». Aí lemos:

A minha fórmula de grandeza do Homem é amor fati: não pretender ter nada de diverso do que se tem, nada antes, nada depois, nada por toda a eternidade...

Não quero de forma alguma que qualquer coisa, seja o que for, seja diferente do que é; eu próprio não quero ser diferente do que sou...

Isto leva-nos de volta àquele subtítulo: chega-se a ser o que se é pela escolha de uma origem, e pelo amor a esse destino – mesmo quando ele nos é adverso, porque se afasta do comum e do expectável! Algo assim como M. G. Llansol quando descreve as origens que escolheu (recusando ou esquecendo as mais óbvias): «Eu nasci no decurso da leitura silenciosa de um poema... Eu nasci na sequência de um ritmo. Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe, o caminho caminha, eu deslumbro-me quando o tempo se suspende...» (Onde Vais, Drama-Poesia). E também noutras passagens ela entra em consonância com o filósofo, quando escreve: «Eu vejo-me sem ter a posse do meu destino... Quer dizer, estou onde estou» (Caderno 1.20, p. 20 - 21.5.76); ou: «Destino não é só para diante. É depois e antes» (Caderno 1.04, p. 98 - 30.10.77). Como em Nietzsche, somos nós que escolhemos o nosso destino, e não um qualquer deus, ou deuses. Ele vem de trás, do momento em que escolhemos uma origem e um caminho, em que demos um sim ao mundo que aí está, e que reconhecemos como nosso.

O segundo livro de Nietzsche, A Gaia Ciência, introduz mais claramente uma dimensão estética nesta escolha:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!

Há um livro de Llansol onde esta dimensão, para além de outras coincidências, está particularmente presente: O Senhor de Herbais, cujo subtítulo fala da «reprodução estética do mundo, e suas tentações». Também Llansol aí se entrega a uma aceitação sem reservas dessa dimensão estética do mundo, que o destino escolhido sabe onde procurar: «Continuo a pensar que a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas. Mas onde estão essas coisas? Por onde vogam esses objectos insólitos? De uma coisa estou certa: não será um Deus que no-los dará» (p. 48).

E já antes: «O mundo é puramente estético, mas raramente é santo» (p. 25); «Como é tão leve atravessar as várias estéticas do mundo... fazendo apenas atenção para não tropeçar em certezas, escolhos e quimeras» (p. 43). E ainda, confirmando a ideia de amor fati como, não uma estética apenas, não uma ética, que também é (sem réstia de moralidade), mas como uma étistética:

«Pelo meu lado, desejaria pôr a claro uma mínima parte da infinidade dos mundos – uma só física hipotética desdobrando-se activamente em várias possíveis estéticas. Nesse sentido, aceito que exista um poderoso ponto de equivalência entre estética e ética. Como opções pensadas, e nunca como corolários de um qualquer dever moral» (p. 46).

O amor fati perfila-se aqui como um claro sim à vida, intimamente ligado a uma relação estética com a existência, e como um antídoto à moral, «para além do bem e do mal», na versão de Nietzsche. As associações com outros aspectos centrais da Obra de M. G. Llansol são várias, a começar pelo lugar decisivo do plano da imanência das coisas, aprendido em Spinoza; a aceitação do que é tal como é (incluindo a minha própria existência), em vez de o remeter para o céu das ideias (platónicas) ou para uma qualquer noção de deus – que para Nietzsche morreu, e para Spinoza, enquanto Substância, só existe na própria imanência das coisas, despido de toda a transcendência. Isto significa aceitar a finitude e a fatalidade, mas também a plenitude que isso contém, porque só essa totalidade sensível nos pode realizar, ditar o nosso destino. Como lemos numa alma gémea de Llansol, Clarice Lispector: «Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida...» (A Paixão segundo G.H.). Em Llansol isso conduz à percepção do «fulgor que há nas coisas», à afirmação do júbilo do Ser — e à capacidade de superar os aspectos negativos da existência (pela escrita, mas não só). Por isso nesta Obra não há morte, por isso nela tudo e todos têm o seu lugar no mundo (o seu destino sem regulador externo). O amor fati é então uma sabedoria do Sim, e o Sim sem fronteiras é o motor da criação (sem acomodação e sem niilismo – a não ser talvez aquele a que Nietzsche chama o  «niilismo activo», a negação que serve para construir e continuar). Amor fati é aqui amor vitae: tudo o que vivemos e somos é absorvido (e de certo modo desdramatizado) nesse grande Sim. Em Nietzsche, em Llansol e também na filosofia eudemonista (da busca da felicidade) do seu mentor Spinoza – assumir o seu próprio destino, sem o deixar por mãos alheias, nem as da sorte, nem as de um qualquer deus ou senhor. Em Spinoza, o amor fati será uma «ideia adequada» que move as paixões da alma, contra as ideias inadequadas que produzem paixões negativas e destrutivas. É um «jogo da liberdade da alma» de carga positiva, porque, conclui Spinoza, «o homem livre em nada pensa menos do que na morte; e a sua sabedoria não é uma meditação da morte, mas da vida». 

Com tudo isto somos levados muito para além de Nietzsche, e não quero deixar de evocar, para finalizar, algumas das origens mais remotas desta ideia do «amor do destino», em dois ou três filósofos da Antiguidade, quase todos da linhagem estoica.

Um deles, em quem mais facilmente se pensará desde logo, é o Epicuro da Carta sobre a Felicidade, pela recusa do determinismo e do fatalismo no contexto estrito da biologia, da polis, da vida social e da relação com os poderes: «Mais vale aceitar o mito dos deuses [o fatum] do que ser escravo do destino dos naturalistas». Ou seja, importa afirmar a vontade e a liberdade individuais, escolher, diria Llansol, a «restante vida» e não o mundo, porque, uma vez mais, o destino não é uma fatalidade, mas um desafio.

Também Marco Aurélio, no Livro X dos Pensamentos, acentua este lado de desafio, e não de submissão:

«Tudo aquilo que te acontece, acontece para que o possas suportar, ou não. Se te acontece alguma coisa que possas suportar, não te queixes, mas lida com ela da melhor maneira possível. Mas se a não puderes suportar, não te queixes também, porque antes ela te aniquilará. Pensa então que tens a força suficiente para enfrentares o que te acontecer, e que fazê-lo só te trará vantagens.» – isto (dirá Nietzsche na Segunda Intempestiva, e também Llansol), se tiveres tido a capacidade de escolher antes a tua origem, que determinará o teu destino.

Mas talvez o mais pertinente e interessante dos antigos estoicos seja Epicteto e o seu Manual (o Encheirídion, um conjunto de aforismos de filosofia prática). Aí encontramos já de forma explícita, não o termo, mas a ideia do amor fati: «Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quere que aconteçam como acontecem, e a tua vida terá um curso sereno» (8.1) Há aqui claramente já a ideia de um dizer sim ao destino, à vida tal como ela se apresenta e corre, para lá da nossa opinião e da vontade de lhe impor outros sentidos ou outro curso. Isto é, fazer de cada situação a melhor possível, e continuar. Perguntamo-nos: mas não será isso pura acomodação às circunstâncias, aceitação da fatalidade ou wishful thinking? Mas quando se fala de fatalidade neste contexto (a raiz é a mesma, fatum), não se trata de submissão a algo de incontrolável, mas de o tentar compreender para melhor o ultrapassar! Afinal, de um savoir vivre, de um ajustamento feliz às circunstâncias, para poder continuar a viagem (o seu contrário é que seria fatal!).

Epicteto conta uma história exemplar que me parece servir bem para entender o sentido do amor fati como uma sabedoria do Sim, a que já me referi, e com ela termino. É a história de um cão que é atrelado a um carro puxado a cavalos com uma corda longa (a sua margem de manobra ou de decisão é grande), e a quem se oferecem duas hipóteses: 1) acompanhar tranquilamente o andamento do carro e desfrutar da viagem; ou  2) resistir com toda a força ao andamento do carro e ser arrastado por ele!

Esse cão somos nós: ou fazemos o melhor possível da nossa viagem em cada momento desta vida (o nosso destino), ou resistimos a qualquer contratempo, tentando compreendê-lo e superá-lo (e isso significa ainda aceitá-lo!), ou insistimos na nossa fraca opinião humana – e afundamo-nos.

O amor fati como sim à vida é também um sinal de compreensão do movimento do mundo e do sentido das coisas; e desse movimento do mundo está sempre a nascer o novo, o mundo é, diz Llansol, «o desconhecido que nos acompanha». E para ver e entender esse novo é preciso ter aquilo que ela designa de um «olhar à cão», inteligente, despreconceituado, disponível e livre. O olhar que Llansol oferece a Vergílio Ferreira (que na sua vida não terá conhecido nem praticado o amor fati) e que Augusto Joaquim um dia definiu de forma lapidar e certeira:  é aquele olhar «que procura a luz que emerge, algures, entre a ética da responsabilidade, a procura intransigente do belo e o dito rasante e justo».

É isto, em última análise, o que encontramos também nas obras – o desenho e o video – das nossas artistas da Chama | Ficção, a Catarina e a Ana: a responsabilidade (no sentido original do termo: resposta e encontro, em relação ao mundo), a busca do belo e a justeza do «dito», aqui a do mundo de imagens que é proposto ao nosso olhar (olhar à cão, ainda e sempre, livre de preconceitos, disponível para receber e tentar compreender).  Resumo o amor fati et vitae da Catarina e da Ana numa frase do crítico Bernardo Pinto de Almeida a propósito de uma das últimas exposições do Chama | Ficção:

«Uma reverberação de vida de que o próprio ser participa, porque o mundo inunda de seiva misteriosa, murmurante, os sentidos de quantos são capazes de se lhe abrir sem limite».



24.11.21

NOS 90 ANOS DE MARIA GABRIELA LLANSOL

Neste dia em que evocamos o nascimento de Maria Gabriela Llansol, há noventa anos, antecipamos a «Festa de Inverno» do Amor fati / Sim ao destino, que faremos no próximo dia 27 com as artistas do «Chama | Ficção», e que divulgámos já aqui.

A Maria Gabriela soube seguir o exemplo de Nietzsche, o seu «homem do livro», e foi capaz, desde muito cedo, de dizer Sim ao seu próprio destino. Assim:



22.11.21

 A SABEDORIA DO SIM

O tema do Amor fati, entre Nietzsche, Llansol e a arte 

do desenho e do video

 

 

Continuamos as sessões públicas do Espaço Llansol com mais um evento que reune o pensamento, a escrita e as artes em torno do conceito de Amor fati (Amor ao destino). A propósito da apresentação do seu calendário para 2022 que traz essa designação, teremos entre nós as artistas Ana Mata e Catarina Domingues (colectivo «Chama | Fiçção»), que falarão desse projecto e apresentarão alguns dos videos feitos pelo grupo em 2021. João Barrento apresentará o tema, lançado por Nietzsche (mas com raízes na Antiguidade) e absorvido por Maria Gabriela Llansol na sua Obra jubilosa. E Ricardo Ribeiro (mais conhecido por «Sr. Teste» e pela sua ligação aos livros) fará uma intervenção musical em clarinete baixo.


5.11.21

UMA HISTÓRIA COM IMAGENS

 

Acaba de sair no Brasil, na Editora Chão da Feira, de Belo Horizonte, com o título A casa do alto, a edição da história infantil Oh, oh, oh, la maison d'en haut, que ficou no espólio, composta e ilustrada (89 desenhos a cores) por Maria Gabriela Llansol, Augusto Joaquim e as crianças da Escola La Maison (no atelier «Contra-grupo Alfa», como o designou Augusto Joaquim), no exílio da Bélgica. O texto já tinha edição em versão portuguesa – Oh, oh, oh, a Casa da Avó –, incluída no livro da nossa colecção «Rio da Escrita» A Escola dos Contra-grupos (Espaço Llansol/Mariposa Azual, 2019).

3.11.21


«O DIÁRIO ESTÁ NO CENTRO DA VIDA»

AS XII JORNADAS LLANSOLIANAS

As edições e traduções dos Diários de M. G. Llansol
 
 
 
O tema das Jornadas Llansolianas deste ano, que decorreram no último fim de semana, centrou-se numa mónada em torno da qual gravita toda a escrita da nossa autora: o Diário, forma que subverte o género instituído para se tornar num modo único de comunicação pela escrita, e que desde muito cedo invade também os livros de Llansol normalmente lidos como ficção.
 
Os Diários e o espólio em exposição
 
A primeira entrada nesse mundo escritural e existencial foi dada, nestas Jornadas, pela leitura, a duas vozes (de Isabel Santiago e Maria Etelvina Santos), de partes do prefácio da autora e tradutora austríaca Ilse Pollack à edição alemã do primeiro diário de M. G. Llansol, Um Falcão no Punho, saída este ano em Leipzig. Trata-se de uma original entrevista imaginária em que a tradutora coloca à escritora algumas questões essenciais para a compreensão dos caminhos da sua existência e das suas opções literárias, de onde vai ressaltando a centralidade do Diário, e cujas respostas são sempre fragmentos de texto de Llansol, das mais diversas proveniências.

Isabel Santiago e Maria Etelvina Santos: leitura a duas vozes 

João Barrento procurou dar continuidade a esta problemática, centrando-se na evolução desta pulsão de escrita dos dias em Llansol, desde o seu primeiro diário, de 1949, e numa linha que foi acentuando o progressivo descentramento do Eu do diário no sentido de «um falar absoluto e sem sujeito» (Eduardo Lourenço, nas nossas Jornadas de 2010), de um ser de escrita que procura dar conta do («Escrevo como »), do movimento total do mundo – do Diário de um Eu (ainda mais ou menos convencional) ao Diário sem Eu. Aí, nos livros que nascem dos diários e permanentemente entram numa interacção osmótica com eles, as figuras centrais passam a ser o Tempo (dos dias, da memória, da História, do Ser), ou também um Eu duplo de si mesmo, des-subjectivado, falando na terceira pessoa. Uma escrita entre dicção (diarística) e ficção, em que a linguagem e os modos de composição da obra seguem uma terceira via, a da fricção com os géneros, para poder agir «nas margens da língua, fora da literatura».

Como complemento desta sua intervenção, João Barrento mostrou ainda o vídeo que se segue (clicar no link) – Llansol e o Diário: Leituras e projectos –, onde podemos seguir o interesse de Llansol pelos diários de vários outros/as autores (presentes na sua Biblioteca, e sobre os quais escreve) e também a sua verve diarística atípica, evidente nos muitos projectos de Diários, não concretizados como tal e com esses títulos, mas que acabaram quase sempre por se derramar pelos seus livros:

https://youtu.be/8OEsi4BxDPI 

A temática do Diário alargou-se depois a outros registos e línguas, com a relação estabelecida pelas responsáveis do Arquivo dos Diários de Lisboa, Clara Barbacini e Sara Aguiar, com outras formas, mais comuns, da escrita da memória, representada nos acervos dos arquivos de Lisboa e de Pieve Santo Stefano, em Itália, sua fonte de inspiração. Sara Aguiar leu alguns excertos de Diários do Arquivo de Lisboa que suscitaram grande interesse da parte do público.

Sara Aguiar e Clara Barbacini
Diários e epistolografia do Arquivo de Lisboa

A história, os objectivos e as actividades destes dois originais arquivos foram apresentadas nos vídeos que se seguem (o texto dos vídeos sobre o Arquivo italiano são dados em tradução, para mais clara informação dos leitores portugueses):

https://youtu.be/VOzVp_bwB0M

O Arquivo dos Diários de Lisboa [clique no link para ver]

 

 https://youtu.be/wcTCEzM1_Rg

O Arquivo Nacional Italiano dos Diários [clique no link para ver]

 
 

A tarde de sábado fechou com a apresentação de dois novos livros, moderada pela editora Helena Vieira

Em primeiro lugar, a terceira edição do primeiro diário, Um Falcão no Punho (agora acompanhada de oito pinturas de Ilda David'), comentada por Ana Marques Gastão, que intitulou o seu comentário «A geometria do punho». A patir daí reflectiu sobre o modo geométrico de operar na escrita de M. G. Llansol desde O Livro das Comunidades, e relacionou, nesta edição, a escrita llansoliana e as «pinturas-som» de Ilda David' (que não são ilustrações, mas confluências-metamorfose de duas artes da imagem), partindo de ideias como Peregrinação e Natureza-livro. Os traços longos nos textos de Llansol foam associados ao falcão (figura transfigurada do punho) como parte de uma arte combinatória com eventuais ecos cabalísticos, e a ordenação espacial rigorosa desta escrita afinal não diarística a uma «metafísica geometrizante» como a da música. A estrutura textual, a de um labirinto de linhas, é afirmada pelo grafismo ao qual a escritora alude quando fala da importância formal dos seus textos, reconhecidos pelo vórtice que nela provocam. O diário surge, assim, em Llansol como um «ser-em-potência» que age, de maneira activa, na intensificação do mundo.

Ana Marques Gastão e Helena Vieira

O segundo livro, acabado de sair como 22º volume da nossa colecção «Rio da Escrita»,  com organização de João Barrento, documenta todo o trabalho, agora concluído e realizado nos últimos anos, de tratamento do espólio total de Maria Gabriela Llansol: um «Inventário analítico e descritivo» de todo esse acervo, desde a sua descoberta, inventariação, organização e tratamento arquivístico e digital. É toda uma trama orgânica de relações entre os três grandes sectores – o espólio literário, o arquivo documental e o espólio material –, como um grande «Atlas» warburgiano, que no livro é apresentado através da descrição de cada sector e em quadros sinópticos pormenorizados, e com informação sobre as metodologias utilizadas  no arquivo físico e na classificação e indexação (seis índices de toda a escrita) de um espólio múltiplo e provavelmente único na literatura portuguesa do século XX. Um documento que poderá ser essencial para compreender, agora e no futuro, o que é verdadeiramente este «fragmento completo e sem resto», e  que Maria Gabriela Llansol parece ter antevisto um dia já em forma de livro, ao escrever numa das cerca de 34.000 páginas dos seus cadernos e dossiers: «Talvez o arquivo se transforme em livro... Pequenos lugares conscientes e inconscientes reunidos – perdidos uns dos outros e encontrados uns nos outros».
 
Na manhã de Domingo, duas intervenções, de Maria Etelvina Santos e Cristiana Vasconcelos Rodrigues, trouxeram novas perspectivas sobre o amplo tema da escrita do Diário, em Llansol e numa das autoras da sua biblioteca, a holandesa Etty Hillesum.
 
As intervenções de Cristiana V. Rodrigues e Maria Etevina Santos

Maria Etelvina Santos começou por destacar a relação múltipla e metamórfica entre os «cadernos de registo diário», os diários publicados e os livros «nodais» de Llansol, relação essa que passa por um processo de subversão e mutação do «género diário». Ultrapassando os registos de tempo e transformando-os em registos de espaço (com as suas «passagens-metamorfose»), os diários criam um espaço textual, não através da sua transcrição, mas através de uma inscrição no corpo dos diferentes livros, que resulta na consequente e frutífera hibridez de género. Um Falcão no Punho, Lisboaleipzig, O Senhor de Herbais e Onde Vais, Drama-Poesia? são momentos paradigmáticos onde a «oficina de escrita» llansoliana se revela na vontade de diálogo constante com o leitor/legente, integrando-o na génese dos livros e revelando-lhe os fios condutores de uma escrita que sabe que a condição do literário não radica na transparência.
A partir de exemplos da voz diarística de Etty Hillesum, Cristiana Vasconcelos Rodrigues fez uma aproximação ao espírito da letra llansoliana, em dois aspectos particulares, entre os muitos possíveis: o da relação de ambas com a História, ou com o espaço-tempo, e o da escrita como caminho, como processo em aberto. Pautando-se por características que, ao contrário da escrita llansoliana, fragmentada e sincopada, se aproximam formalmente do género do diário, a escrita de Etty Hillesum contém em si uma força dialogante para fora do género, que coloca esta mulher de vinte e nove anos entre as vozes místicas mais marcantes do século XX. Paralelos com a escrita de Llansol tornam-se evidentes quando pensamos na demanda da alegria e do júbilo, no encontro de pensamento e afecto, na oscilação entre hesitação e confiança que evita a queda no subjectivismo banal. E, sobretudo, ambas convergem na potência do agir pela palavra, no culto da escrita como forma de acção sobre o mundo, fundada na atenção, na vigília, no estado de alerta contínuo, para que nada seja em vão.

A tarde de domingo trouxe-nos um contributo original, diferente e ressumando beleza, de duas artistas plásticas – Ana Mata e Catarina Domingues –, desde há algum tempo trabalhando a quatro mãos, dois corpos e dois pares de olhos no colectivo artístico que designam de «Chama | Ficção», compondo dia a dia o seu diário singular feito de imagens e textos, e de onde nasceu o vídeo que apresentaram e comentaram, juntamente com um pequeno álbum que o complementa. O vídeo intitula-se Cadência, o álbum fotográfico Intermitências – os dois pólos do fluxo dos dias, dados pelo duo da «Chama | Ficção» na articulação dos ritmos e das cesuras das imagens (em parte colhidas no Espaço Llansol) e na discreta e bela atmosfera sugerida pelo fulgor sensual dos textos que as acompanham. Muito à imagem de tanta escrita de Llansol.

 A sessão com a «Chama | Ficção» (Catarina Domingues e Ana Mata) 


https://youtu.be/w1v8nM5-8CA

 O vídeo-diário Cadência
[clique no link para ver]

E o dia terminou com as habituais leituras de textos de M. G. Llansol sobre o tema das Jornadas, desta vez constituída por fragmentos distribuídos aleatoriamente entre o público presente, que os foi lendo na ordem por que a seguir se apresentam:






Entre o público encontrava-se a artista-poeta Marina Palácio, atenta observadora e acompanhante da natureza e da criança, e empenhada legente de Llansol, que nos deixou este seu registo verbi-visual das intervenções de Domingo: