O FILME-EM-METAMORFOSE DE ONTEM
Tivemos ontem, com um público muito participativo e viva troca de ideias, uma tarde especial, com a projecção da versão actual do filme de Sílvia das Fadas Luz-Clarão-Fulgor, de que dá conta o texto lido pela cineasta (que aqui se reproduz, e que incluímos no folder feito para esta sessão). Com o som de dois projectores de 16 mm sempre em fundo, lembrando antigas salas de cinema, na luz das imagens em paralelo, a preto-e-branco e a cores, a sala cheia pôde seguir os caminhos da câmara da autora por recantos desconhecidos de um Alentejo profundamente transformado. Este primeiro núcleo de imagens recolhidas e montadas em diálogo irá ser continuado nos próximos meses, para dar origem a novas versões de um filme que se apresenta como obra não acabada.
Luz, Clarão, Fulgor
Augúrios Para Um Enquadramento Não
Hierárquico e Venturoso
Deparei com uma fotografia a preto e branco, impressa num
jornal: as ruínas de uma comuna. Mostra uma árvore, o que resta de uma ruína, uma sombra projectada das suas paredes, até ao solo, um poço, um campo aberto e
florido. Poderia passar despercebida, mas a inscrição da fotografia — «Comuna
da Luz», bastou para acender uma centelha e revelar um rastilho que não resisti
a seguir.
A «Comuna da Luz» foi fundada no Sul de Portugal entre
1917 e 1918 por um anarquista Tolstoiano chamado António Gonçalves Correia. No
aparentemente sereno Vale de Santiago, em Odemira, Gonçalves Correia pôs em
prática uma experiência utópica, por fim esmagada pela repressão policial que
acusou estes companheiros de organizarem uma greve de trabalhadores rurais e de
participarem na conspiração que levou à morte de Sidónio Pais. Gonçalves
Correia fundou posteriormente uma segunda comuna, a «Comuna Clarão», em 1926 em
Albarraque, Sintra. Também não foi duradoura, mas Gonçalves Correia persistiu
em escrever panfletos e cartas para jornais anarquistas, ao mesmo tempo que se obstinava
a comprar pássaros em feiras, apenas para os libertar das suas gaiolas. Este
perigoso agitador comunista, de acordo com a polícia política, proclamou a
revolução como sua namorada, e jurou não cortar as suas longas barbas até que o
regime autoritário do Estado Novo fosse destituído. Morreu antes disso, mas o seu nome é ainda uma contra-senha nas terras do Baixo-Alentejo.
Apesar da escassez de documentos, o que me interessa
nestas tentativas colectivas de viver diferentemente é a irrupção do utópico,
com um excedente de sonhos indestrutíveis — uma condição a que chamo fulgor.
Partindo dos vestígios destas duas comunas comecei a engendrar uma terceira
comuna — «Fulgor» — nas ruínas da primeira.
O que é então o
fulgor? Vem de um texto cuja fonte se encontra n' O Livro das Comunidades, uma obra escrita nas margens da literatura
— em solitude, em fortitude, em cadernos, envelopes, guardanapos, e desenhos,
fragmentos de fragmentos — por uma mulher singular para quem escrever era o
duplo de viver: Maria Gabriela Llansol, a escrevente a quem volto continuamente
porque o seu texto nunca deixou de me perturbar, oferecendo-me resistência e
sustento. De acordo com Llansol, o fulgor é uma procura de luz, uma ruptura no
tempo e historicidade que conjura a possibilidade de encontros inesperados a
partir das margens. A luta quotidiana pelo fulgor é o resultado de uma batalha
contínua: um esforço diário para atingir claridade, intensidade — desejo de uma
cintilação possível e necessária. O fulgor, sendo um momento de revelação
súbita, possibilita um entendimento mais profundo do tempo. Já não estamos no
tempo e espaço da narrativa e da sucessão, mas num campo fulgurante onde Ana de
Peñalosa, Hadewijch, a beguina errante, Thomas Müntzer decapitado ou Hölder (de
Hölderlin), são removidos do firmamento da história para se tornarem parte de uma
outra ordem de significado — transmutados em Figuras que, num encontro
inesperado do diverso, formam uma comunidade de rebeldes. Através de uma
técnica de fragmentação e de sobreimpressão, o fulgor introduz brechas que nos
colocam na presença de encontros que ainda hão-de ter lugar, assim mudando a
ordem das coisas. Deste modo, o combate entre príncipes e camponeses ainda fermenta
e tudo continua em risco, seja em Frankenhausen ou no litoral do mundo
(Llansol), em França ou no Egipto (Straub-Huillet), demasiado cedo ou demasiado
tarde.
Palavras e imagens devêm intensidades vivas. O fulgor é
móvel como o olhar ou o voo de uma bruxa, e como tal também eu me desloco
através de diferentes escalas e temporalidades: da Comuna da Luz à Comuna
Fulgor, de António Gonçalves Correia a Maria Gabriela Llansol, em direcção a
uma comunidade de errantes-mutantes. «A energia cénica do fulgor tem uma
qualidade muito espacial ____________________________ põe os seres em
confronto no auge da sua beleza. Interior, exterior e estética.»[i]
A paisagem que resiste é para mim uma cena fulgor.
Transporta em si o potencial de metamorfose e eu reconheço que a luta
quotidiana pelo fulgor tem de ser uma luta inventiva, uma luta que, tal como
Avery F. Gordon e Inês Schaber a colocam está «implicada no cultivo de formas
de vida e de trabalho independentemente/autonomamente de, ou fora de, ou em
oposição a, ou em alternativa a, ou nos mesmos moldes, mas não inteiramente
dentro dos termos dominantes da ordem social.»[ii]
É o reconhecimento desta consciência utópica, e desta insubordinação, que me
faz desejar uma outra comunidade no agora, mesmo que esta só possa ser
provisória, fugitiva, subterrânea, com raízes fundas mas móveis. E, mal comecei
a ensaiar uma comuna provisória nas ruínas de uma comuna histórica, cedo me
apercebi da necessidade de metamorfosear o ‘eu’ em ‘nós’,
e de em comum mapearmos lutas
contemporâneas e ancestrais pela terra e pelo bem colectivo na caleidoscópica
espacialidade do Alentejo, região com nome de rio, para além de um rio.
Talvez não haja nada de mais exterior do que este
território de desmesura e latifúndios, cuja distribuição de terras remonta aos
tempos da Reconquista do país aos Muçulmanos da Península Ibérica. Os primeiros
proprietários eram nobres, de ordens religiosas ou militares, e nessas terras
as comunidades encontravam-se dispersas e despossuídas. Se pressentimos algum espectro a rondar este filme, e outros que por lá se
fizeram, é provável que seja o da Reforma Agrária, semeada pela Revolução dos
Cravos e pelo breve (quão breve?) período insurreccionário que se lhe seguiu. «A batalha vinha, estava vindo»[iii],
pressagia o texto Llansoliano. Os patrões fugiram, e as pessoas,
cansadas de décadas de opressão e de desigualdades sociais, ocuparam as grandes
propriedades e distribuíram as terras por aqueles que, sem nunca as terem
possuído, as sabiam trabalhar. As mulheres estiveram na frente das ocupações, «praticando
a despossessão em colaboração»[iv]. O
cinema também lá esteve, a lutar através de imagens desta região, em filmes
militantes como A Lei da Terra, filme
colectivo realizado pelo Grupo Zero, que acompanha a ocupação da terra, a auto-gestão
dos camponeses e a criação de unidades de produção; ou Terra de pão, terra de luta, um filme de José Nascimento, que
desconstrói o sistema opressivo dos latifúndios. Mais recentemente, Farpões Baldios, de Marta Mateus, testemunhando
uma forma de vida, histórias contadas, histórias escutadas, matéria de
transmissão e tenacidade. A Reforma Agrária foi uma promessa interrompida,
traída, boicotada. No entanto, olhando para trás, não conseguimos deixar de
pensar que as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Altos desejos pairam ainda
na paisagem, com resiliência inscritos
nas suas
árvores
nas suas
gentes
no vivo.
Principiámos
a caminhar e a procurar augúrios no Verão passado, concentrando-nos em
fragmentos de tempo: «a densidade da
Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.»[v] Ali,
com uma violência inarredável deparámos com: cercas e vedações, propriedade
privada, extracções mineiras, arbustos de oliveiras e amendoeiras em fileiras a
saturar o horizonte (cemitérios, aos meus olhos), trabalhadores migrantes e
clandestinos, rios envenenados, a terra erodida. Ali também, uma luta afim por
uma vida vivível está a ser travada: corpos no processo de resistirem e de se
reinventarem a si mesmos, afirmando as margens, reactivando os vínculos à
terra, tornando-se «indisponíveis para a servidão», opondo-se a projectos
extractivistas, contruindo zonas autónomas, disseminando sementes autóctones e
informação crítica, traduzindo poesia, praticando o dom da hospitalidade. Nós
tecemos, seguimos e emaranhamo-nos num fio de engendrar mundos: «Observando geografias de acção
directa, apoio mútuo, e políticas prefigurativas.»[vi]
Nós estamos a preparar-nos. «Queremos
ver aquilo que fazemos à medida que o fazemos. Não é que questões de habilidade
ou de ofícios tenham sido suspensas. Apenas foram socializadas, desindividualizadas,
partilhadas» (clama Fred Moten). Coral, e em processo, criado e incriado, o
filme é uma ferramenta para a convivialidade (Illich, Andersen), dobra-se e
desdobra-se em espanto, guiado pelo fulgor, ou pela potência para florescer em
enquadramentos não-hierárquicos.
Observando
teimosamente as ruínas de uma comuna, procuramos augúrios.
Por exemplo: uma árvore e uma ruína. Um riacho. Uma serpente. Iremos ver.
Através de
práticas quotidianas de recusa e reencantamento, em dissonância, perguntamos:
«Qual a
relação e/ou a diferença entre emancipação e despossessão?»[vii]
Quais as condições necessárias à sobrevivência e reencantamento da terra? Como
poderemos reunirmo-nos num lugar de hospitalidade e ensaiar a nossa imaginação
crítica em direcção a um tempo para além da possessão, uma sociedade não racial
e não capitalista? Que imagens darão forma a este anseio por uma comunidade de
rebeldes, «o segredo a que se chamou solidariedade»[viii],
o sonho fugitivo? Onde jaz a semente da insurgência e qual poderá ser a oferenda
do cinema?
Que as
imagens em bruto que se seguem possam ser «cartas vívidas e imperceptíveis».
Se
ousarmos.
Sílvia das Fadas
Primavera de 2019
[i] Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004.
(Lisboa: Assírio & Alvim, 2006), p. 198.
[ii] Avery F. Gordon and Ines Schaber, “The Workhouse.” Acessível
em: http://www.averygordon.net/current-projects/the-workhouse/ [acesso em: 31 de Maio
2017]
[iii] Maria Gabriela Llansol, O Livro das Comunidades. (Lisboa: Assírio & Alvim, 2017),
p. 48.
[iv] Fred Moten, “come on, get it!,” The
New Inquire (2018) Acessível em: https://thenewinquiry.com/come_on_get_it/ [acesso
em: 12 de Abril 2019]
[v] Maria Gabriela Llansol, O Livro das Comunidades. (Lisboa: Assírio & Alvim, 2017),
p. 11.
[vi] Simon Springer, The
Anarchist Roots of Geography: Toward Spatial Emancipation. (Minneapolis/London: University of Minnesota Press,
2016.), p. 94.
[vii] Fred Moten, Id., Ibid.
[viii] Stefano Harney and Fred Moten, The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study (New York:
Minor Compositions, 2013), p. 42.