O TEMPO DE HERBAIS E OS LABIRINTOS DA ESCRITA
Apresentação do Livro de Horas VI
Foi no passado sábado, uma vez mais casa cheia, novas presenças, ambiente «leve e jubiloso», que no final da sessão, na animada conversa com o público, haveria de «abrir caminho a uma conjectura grave» (para evocar Llansol no começo de Parasceve), a da busca essencial da «verdade» deste Texto.
João Barrento e Maria Etelvina Santos conduziram a sessão, abordando as duas vertentes maiores deste novo Livro de Horas: as idiossincrasias e as oscilações próprias do «tempo de Herbais»(1980-1984) e os múltiplos rios de escrita que o atravessam e se projectam no futuro, até meados dos anos noventa.
João Barrento começou por situar a matéria deste novo livro de inéditos (que, com os cinco anteriores, perfaz já um total de 2.300 páginas editadas) nos últimos anos do exílio belga. O Livro de Horas VI é uma radiografia muito particular de um lugar e de uma época. Lugar e época concentracionários, mais do que os quinze anos anteriores do exílio. A questão essencial foi a de saber como podem um lugar e um tempo ser tão determinantes de uma obra e de uma escrita. Isto aconteceu em Herbais (e não tanto em Lovaina ou Jodoigne) porque aí o simples lugar geográfico se transforma em Lugar, locus/logos, lugar de sentido e de um discurso próprio, mais carregado de tensões. E o tempo, mais do que os trabalhos e os dias (que este livro também espelha), é um tempo do Há, de uma forma de estar-aí inquieta e activa, que gerou muita escrita, «tempo suspenso» também, na espera da publicação de vários livros e na expectativa de um regresso a Portugal. O tempo de Herbais presente neste Livro de Horas foi um tempo duplo, fotografia a negativo e positivo, num lugar com dupla face, visto ironica e nostalgicamente como Air baie (a baga do ar, algo de precário e isolado) e Hebraï (a terra prometida – que não correspondeu totalmente à promessa).
Maria Etelvina Santos abordou a segunda vertente significativa deste tempo e deste livro, a dos muitos livros e projectos de escrita que nele se concentram. Partiu da noção de «passagens-metamorfose», importante para perceber a génese dos textos de Llansol, suas figuras, desvios e transformações nos projectos de escrita, com a finalidade de dar a conhecer a estrutura deste Livro de Horas VI, e a opção de não incluir nele algumas páginas escritas em Herbais (O Livro de Horas V, ao reunir os trinta anos da matéria pessoana, já inclui cerca de 350 páginas escritas neste lugar da Bélgica). Estabeleceu-se a relação entre os Livros de Horas III e VI, e também a ligação entre as duas primeiras trilogias e os livros seguintes, uma vez que com a mudança de Jodoigne («a casa das beguinas») para Herbais, estava concluída a primeira trilogia e iniciada a segunda, que, a partir de Causa Amante (já com a presença de Luís M., Comuns ou Camões, no Cabo Espichel), vai definir o caminho para o «dom poético», a segunda fase da Obra de Llansol, de que Herbais, no seu grande isolamento e intensidade, foi o núcleo irradiante. Herbais, diz Llansol, será «o lugar de encontro de Infausta, de Aossê e de Bach», mas também de outras figuras que a partir daí terão lugar de destaque na Obra, como Joshua e Hölderlin, de que o Livro de Horas VI é revelador. Como a autora explica numa elucidativa página deste livro, a escrita de «Com João», primeiro título para Da Sebe ao Ser, iniciada em Herbais, vai dividir-se em dois livros: Contos do Mal Errante, escrito quase de forma torrencial durante todo o ano de 1982, sobrepõe-se ao projecto anterior, encerrando no seu âmago o desejo de resolver um tempo de exílio que, embora decisivo, chegava ao fim (esta escrita, tendo passado para o livro praticamente sem alterações, não foi incluída neste Livro de Horas VI); e Da Sebe ao Ser, cuja escrita definitiva se arrastará até aos primeiros meses de 1985, já em Portugal (escrita não incluída no Livro de Horas VI, por abranger cerca de cem páginas em muitas anotações dispersas, que farão parte de uma próxima segunda edição da obra). A partir de meados de 1984, quando já está decidido o regresso a Portugal, começam a aparecer regularmente as figuras de Uriel (da Costa), Hölderlin, Myriam, Joshua, Giordano Bruno, que se encaminham para o futuro livro Hölder, de Hölderlin. Daí que se tenha optado por prolongar as datas deste Livro de Horas até Julho de 1985, quando Llansol está já (transitoriamente) no Mucifal, para ser possível incluir os dois projectos em curso, que são núcleos coesos: «O Livro de Uriel» e «O Livro de Joshua-Hölder». A incluir toda a matéria escrita durante os anos de Herbais, o Livro de Horas VI seria um volume com cerca de 900 páginas. É de Colares, da casa de «Toki Alai», que partiremos para um futuro Livro de Horas.
Depois da projecção do video Herbais foi de Silêncio, que documenta o lugar e a casa da última fase na Bélgica (e que se pode ver aqui), o actor Diogo Dória fez uma luminosa leitura de algumas páginas que espelham a intensa vibração, as oscilações e tensões do tempo duplo, ou múltiplo, dos dias de Herbais.
Uma pergunta de Diogo Dória, depois da leitura e a partir de uma das passagens lidas, abriria um largo tempo de discussão e de interrogações: que espécie de «verdade» conduz esta escrita, nomeadamente na relação de autenticidade que estabelece com os seus leitores, por parte de uma «escrevente» que «gostaria de fazer parte do número germinal dos que não enganaram», na história da literatura universal. E desta questão nasceram outros fios de discussão, nomeadamente o das eventuais afinidades da escrita de Llansol com a de outros escritores, portugueses e estrangeiros (e surgiram nomes de romancistas inovadores do século XX, como Virginia Woolf, Musil ou Kafka; ou autores como Clarice Lispector e Maria Velho da Costa, poetas como Herberto Helder, pensadores como José Gil, músicos como Emanuel Nunes...): e ainda o dos factores que, nesta escrita, levam criadores de outras áreas – as artes plásticas, a música, a fotografia ou o cinema – a lê-la a partir da força da imagem nos seus textos, ou dos ritmos, cesuras e formas de composição particulares que os distinguem.
E à noite chegar-nos-ia ainda a surpresa da reflexão posterior de uma das amigas presentes, a professora de Filosofia Isabel Santiago, a propósito da questão nuclear de onde toda a discussão partiu, a da «verdade» de um texto como o de Maria Gabriela Llansol (que, em última análise, só pode estar nele próprio, na sua linguagem e no impulso que o move: partir de «um primeiro pensamento verdadeiro», como faz Spinoza na busca da sua verdade, para chegar a compreender a «coincidência» de cada ser consigo mesmo, na definição da própria Llansol). Escreveu a Isabel, entre muitas outras considerações, de Platão a Nietzsche, de Spinoza a Kant, e retomando alguns dos tópicos que foram sendo discutidos na conversa final:
«A questão do Diogo foi importante porque aclarou ainda mais a razão do pedido de ir de mãos dadas com Spinoza. Quando o Diogo relembra e defende, a partir do que leu, que Llansol é da verdade porque não quer enganar o leitor, lembra que ela não está a dizer essa verdade que é para todos correspondência entre o dito e o real.
[...]
Ainda somos herdeiros dos que tomam o conhecimento como forma de domínio do mundo, e não raros são os dias em que sabemos que entre ciência e poder as relações são as linhas de poder/potência e dos poderosos do mundo. São, por isso, os senhores do «território» os da ciência e os do poder. Num certo sentido, são os mesmos e perigosamente confundem-se.
[...]
Quando Llansol diz que não quer enganar, ela está a dizer que não quer esta verdade, mas vai mais fundo, como Nietzsche, ela não quer o homem teórico, que é sempre o homem do conhecimento e da moral... Ela não quer o conceito nem a definição, ela quer a imagem.
[...]
E isto eu só percebi hoje, no âmago da discussão: a importância da intuição para ela. A mesma que tem para Spinoza, que a considerou o conhecimento último e, por outro lado, o contributo decisivo que a diferença entre imaginação reprodutora e criadora em Kant tem para percebermos todo o mecanismo da génese transformativa das personagens/autores e outros seres na escrita e na Obra de Llansol.
[...]
Essas imagens errantes não nos devolvem o conhecimento do mundo, até porque não seguem a orientação dada pelo entendimento, mas a beleza do mundo. E a imagem da beleza pertence à arte. Eu não sei se Llansol é uma mulher da literatura, mas sei que ela é uma artista. Sem território: o texto oscila sem género nos géneros, mas ela é musical e plástica. O segredo está nessa permanência na instabilidade da imagem ou da sua entrega à imaginação criadora e para sempre esta recusa em estar no «território» [a zona dos poderes]. Ela não deve escrever apenas, parece-me. Ela constituiu, com o que escreveu e pensou, um imenso catálogo ou álbum das imagens do mundo que mais ninguém viu. E isso exige muito de nós, leitores, que temos de pedir as mãos uns aos outros para não soçobrarmos no pélago do seu texto, que está para além daquilo a que chamamos texto [o platónico «pélago da verdade», na intuição].
Foi isto que pensei durante o caminho e agora entrego ao caminho que se faz para dialogar com o João e os do Espaço, ou melhor, do lugar em que Llansol nos deixa ver ou intuir o que foi por poder ter sido: é um ver sem realidade, mas real, ou, como na conjugação verbal, um mais-do-que-real.
Isabel»