OS «FILHOS DO NADA»
NA «COMUNIDADE SEM REGRA»
Quanto tempo
duram as obras? Até
Estarem prontas.
Pois enquanto exigirem esforço
Não caducam.
(Bertolt Brecht)
Tivemos ontem mais uma sessão da «Casa de Julho e Agosto», desta vez com a visita de um grande grupo do «Clube de Leitura de Autores Clássicos» da Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão. Mas muitos outros vieram, presenças a que já nos acostumámos na sala grande da casa.
De dois clássicos se tratou, clássicos do misticismo ibérico, islâmico e cristão, figuras importantes na Obra de Maria Gabriela Llansol: Ibn 'Arabi, de Murcia, e S. João da Cruz, de Fontiveros.
Falou-se da actualidade destes autores, num momento em que as questões da tolerância, dos conflitos, das guerras religiosas, de neofascismos e populismos voltaram a estar na ordem do dia. E de uma ideia llansoliana do humano, partilhada com as suas figuras maiores, orientada pelos pólos do fulgor ou da beleza (a jamal do misticismo sufi) e da justiça, de uma visão não hierarquizada do mundo.
Vimos como, em ambos os casos, a via da resistência (que em Llansol dá pelo nome de «Ilha de Ana de Peñalosa, a imagem com que se resiste») é a do esoterismo (místico), contra o exoterismo das religiões oficiais, com os seus rituais e encenações, que facilmente as transformam em instrumentos políticos. Llansol coloca esta questão em termos radicais, no ensaio sobre um outro místico ibérico, Ramón Lull, quando escreve: «há dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si...» Neste universo alternativo da Restante Vida, que é o da «Comunidade sem regra», Llansol insere várias figuras clássicas de místicos (ibéricos, árabes, flamengos, alemães). Para ela, o místico (que, lembre-se, não é necessariamente aquele que se afasta do mundo para pairar em regiões etéreas, mas alguém dotado de uma espiritualidade sensível, muito próxima do corpo e da imanência das coisas) é aquele/aquela que «vem testemunhar sobre o único necessário – o terreno comum, primordial e verdadeiro, onde se poderiam encontrar todos os homens, para lá das escolhas religiosas particulares e do lugar que a cada homem coube nas respectivas sociedades.»
Não se trata de utopismo, mas de uma espécie de «visionarismo ingénuo» (no mais puro sentido deste termo), da expressão de uma vontade de pujança – não de poder! – sempre an-acrónica, porque a História e os poderes lhe não permitem actuar no seu tempo...
Falou-se ainda dos modos particulares como tudo isto se configura em Ibn 'Arabî – o árabe heterodoxo, representante maior da vertente sufi do Islão, a mais original, contemplativa e até hoje com um alto grau de heterodoxia – e João da Cruz – o cristão rebelde, fundador de uma ordem renovada, a dos Carmelitas Descalços –, daquilo que os aproxima e daquilo que os distingue. Em ambos, estamos num espaço do entresser, num universo intermediário onde o espiritual toma corpo e o corpo se torna espiritual. Em ambos, a escolha é a de uma via interior que não é a das respectivas ortodoxias, e que Llansol também parece ter escolhido quando, ao se exilar na Bélgica, rompe com uma religiosidade mais convencional que leva consigo, para se aproximar definitivamente de formas de espiritualidade que a levam, por exemplo, a usar a palavra -Eus para designar Deus, passando do plano da abstracção metafísica para o da experiência individual interior.
Falou-se também, indo ao encontro do Clube de Leitura dos Clássicos, das implicações políticas e sociais deste tipo de vivência religiosa, cristã ou muçulmana. E lembrou-se como a vivência religiosa, da mais ortodoxa à mais herética, foi desde sempre espelho de situações políticas e sociais, e mesmo de modelos económicos. E culminámos com o comentário de um texto programático da Obra de Llansol, o Prólogo d' O Livro das Comunidades, que esboça já um «perfil de esperança» para o «jardim devastado» do mundo, com a sua «teoria dos três Vazios», que podem corresponder às três noites daquele livro, à via de ascensão e iluminação dos dois místicos tratados e das figuras de Llansol em geral, pela senda da metamorfose e da «metanoite», em direcção à Luz, a luz dos espírios livres dos rebeldes desta Geografia, «uma claridade que já é madrugada», como lemos em Finita. É esta a via de que se falou no final, presente na «mística nupcial» de João da Cruz, nas visões de Hadewijch de Antuérpia, nos sermões de Eckhart ou nas Iluminações de Meca de Ibn 'Arabî.
Da viagem se falou ainda, o grande motivo destas figuras e também de Llansol – viagem mais imaginante em Ibn 'Arabî, mais alegórica em João da Cruz, em direcção a um horizonte que pode ser o da «desnudez do espírito» (na Subida ao Monte Carmelo) ou o do «astro do despojamento» nas Iluminações do mestre sufi.
E como sempre, lemos textos de Llansol (por Helena Alves) e das suas duas figuras de místicos (por Maria Etelvina Santos). E ouvimos gravações desses textos cantadas por Amina Alaouy (do Canto do Desejo Ardente, de Ibn 'Arabî) e por Amancio Prada (das Canciones del Alma de João da Cruz).