«A IDEIA DA POESIA É A PROSA»
LLANSOL E A QUESTÃO DA POESIA
João Barrento falou ontem no Espaço Llansol da ideia da poesia em Llansol, uma intervenção integrada nos dias da Feira do Livro de Poesia de Campo de Ourique. A palestra abarcou os principais tópicos fornecidos pela obra publicada e por muitos inéditos (expostos na ocasião) sobre a questão da poesia, abrindo com uma passagem de Os Cantores de Leitura e fazendo depois o seu desdobramento progressivo em comentários que foram ampliando a questão. Deixamos aqui alguns dos parágrafos iniciais e a conclusão, na impossibilidade de reproduzir toda a conferência. No video apresentado no final deram-se a ouvir, não apenas alguns fragmentos dos cadernos manuscritos sobre a poesia, mas – em estreia absoluta – alguns dos poemas juvenis de Maria Gabriela Llansol.
... criar ruídos que sejam uma contra-música. Dar substância harmónica aos ruídos... Tudo se passa ao nível das paisagens de imagens. Das suas sonoridades. Das suas parecenças e dissemelhanças. (M. G. Llansol, Os Cantores de Leitura)
... criar ruídos que sejam uma contra-música. Dar substância harmónica aos ruídos... Tudo se passa ao nível das paisagens de imagens. Das suas sonoridades. Das suas parecenças e dissemelhanças. (M. G. Llansol, Os Cantores de Leitura)
Parti desta passagem sobre a
«contra-música» porque a expressão se ajusta perfeitamente àquilo que ouvimos
em qualquer página de escrita de M. G. Llansol: a harmonia dos ruídos (daquilo
a que geralmente se chama a sua «prosa poética»), as paisagens de imagens, as
suas sonoridades dissonantes, a tensão entre elas, as suas «parecenças e
dissemelhanças».
É esta, basicamente, a «melodia» de qualquer texto de Llansol – por isso ele é «poético» (da raiz poieín = pôr as palavras a agir), não sendo «poesia» em sentido estrito. A sua natureza é a de um «drama-poesia» (um agir, sobre quem lê, da palavra com o seu enigma).
É esta, basicamente, a «melodia» de qualquer texto de Llansol – por isso ele é «poético» (da raiz poieín = pôr as palavras a agir), não sendo «poesia» em sentido estrito. A sua natureza é a de um «drama-poesia» (um agir, sobre quem lê, da palavra com o seu enigma).
Num outro
livro lemos também: “Os poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir”.
Não é epígrafe de poeta, mas vem de alguém que conhece bem o potencial «utópico»
da poesia, muito embora, para Llansol, a utopia que o poema contém não seja
devaneio inconsequente, nem sonho acordado, nem profetismo: é, sim, uma
energia, uma força, uma vontade de não deixar as coisas, nem quem as olha, nos
lugares onde estão. Na frase está contido todo um programa do que podia
ser, mas nem sempre é, a força da poesia como motor de transformações – e a
própria escrita de MGL. Reparem em cada um dos segmentos da frase: o poeta vê e anuncia (é vidente e profeta),
anuncia uma ordem nova para as coisas do mundo (uma geografia) que, no entanto, não é deste mundo (é imaterial), e por isso é sempre algo de
diferido, da ordem do desejo (por vir). E
no entanto, a poesia, o texto que o poeta escreve ou diz, sabe o que está a acontecer. Para além de «sismógrafo»
de uma sociedade, a poesia pode ser mais do que registo de uma subjectividade –
pode ser também escrita do mundo. Era
assim que Llansol a imaginava, como escuta ritmada e «contra-música» da respiração do mundo.
[...]
[...]
Concluo explicando o título que dei a esta intervenção, e que vem de um conjunto de ensaios sobre a poesia de Hölderlin, do filósofo francês Philippe Lacoue-Labarthe: a Ideia da poesia é… a prosa. Para
o que aqui importa: a prosa de
Llansol, na sua utilização ex-cêntrica de uma linguagem comum e imagética,
mais do que poesia, mais do que prosa poética, é uma Ideia da poesia. A
Ideia não é o conceito, é o lugar ideal onde se projectam todas as
particularidades dos fenómenos, ou a sua quintessência – tudo aquilo que, na prosa de Llansol, indicia
um substrato poético, e que já fomos enunciando. Esse substrato tem a ver com o
ritmo, com a fragmentação do discurso, com a indecidibilidade de género, com
transições entre a narratividade e a escansão poética da frase, com
particularidades gráficas (o traço, os brancos). Tudo isto gera no texto
llansoliano (e também nas suas traduções de poetas, de que não vou ocupar-me)
uma espécie de dupla engrenagem, entre
a proximidade ofuscante da imagem e a distância (aura?), não do indizível, mas
do reverso ou da dobra das coisas e do mundo. Há um «sistema» que subjaz a este
caos aparente e movediço, uma qualquer totalidade impalpável e inexpressa, mas
sensível, que actua no subsolo poético da prosa de Llansol.
A sua relação com a prosa narrativa
mais convencional seria, assim (para utilizar uma sugestão do poeta Yves
Bonnefoy), como a do desenho com a
pintura. Segundo o poeta francês, num artigo intitulado «O desenho e a voz», o
que fala no desenho, no «acontecer do traço», é uma presença. Presença do ausente, como explica Bonnefoy recorrendo à
história das origens míticas do desenho, a da filha do oleiro de Sícion que
desenha na parede os contornos da sombra do amante, para lhe prolongar a
presença. Inventa, assim – como Llansol para a escrita –, «a grande figuração», aquela que «não se
interessa pelos aspectos exteriores, mas pela possível presença plena». O seu
«mais íntimo projecto» é: não representação, mas presença. E ao proceder assim,
consegue que no «grau zero da mimesis», na ausência da imitação ou
representação, se perfile «a presciência do invisível». É afinal o que acontece em toda
a grande poesia do mundo.