O LIVRO DA «RAPARIGA QUE TEMIA A IMPOSTURA DA LÍNGUA»...
… apresentado pela poeta que «vive por causa do amor»
Ontem foi dia de falar de Um Beijo Dado Mais Tarde, na nova edição da Assírio & Alvim. A poeta Marta Chaves falou-nos do livro, o actor Diogo Dória leu, no final, algumas passagens, e João Barrento abriu assim a tarde:
E a Marta falou de Um Beijo dado Mais Tarde como quem o traz consigo há muito tempo, exactamente desde que ele apareceu, em 1991. Transcrevemos algumas das passagens do seu texto de apresentação:
FULGOR E
MISTÉRIO
«Um eu é pouco para o que
está em causa»
[…] Quando fui buscar
o exemplar da reedição deste livro (a seguir referido como BDMT),
propositadamente não o retirei do envelope que o continha. Passaram-se mais de
três horas até que o abrisse. Quis prolongar esta cena, adiando por isso a
visão do objecto. Abri o envelope e li o nome: Maria Gabriela Llansol. Pensei
que o nome das pessoas, lido depois de já terem morrido, ganha uma dimensão
particular de presença. Parece ele próprio uma oferenda. Assim me aconteceu com
esta edição que hoje temos aqui, especialmente enriquecida com as fotografias
de Duarte Belo. Na capa o verde, tal como o do vale, era verde. Fiquei feliz.
Não poderei falar deste livro enquanto unidade, não me
é possível lê-lo isoladamente dos livros de Maria Gabriela Llansol que li antes
e depois. Este livro absorve e é absorvido pelos outros. Se tentasse falar
sobre ele per se, correria o risco de
colocá-lo em lugares onde não pertence. Evitarei descer por esse escorrega
perigoso. […]
Estou aqui para dar um testemunho. […]
[…] Desde o
início destas minhas leituras, aceitei com uma familiaridade confortável o
convívio que me ofereciam. Nos livros de Llansol ficamos no contacto com as cenas
fulgor (expressão apaixonante e
apaixonada criada por Llansol, que concentra uma morada de vibração e
alegria, onde o real iluminado se manifesta), ficamos numa imersão
que não carece de água e por isso não traz o risco de afogamento, mas antes de uma
limpeza a seco, pureza, ascendência e transformação, sem que haja fim ou
finalidade. Esta é a possibilidade: viver o vivo sem sentir aprisionamento nem
medo. Trata-se pois de uma despossessão libertadora.
Na
generosidade de Llansol não há extravagância, não há teatro, há rendição. Rendermo-nos
é ligarmo-nos, e a sua obra oferece-nos a vivência de encontros únicos nos
espaços e tempos que atravessam. Há o prazer da desordem vivido numa acepção de
liberdade e libertação. É uma dádiva sentir-me amada por ler um livro,
sobretudo quando me encontro num desassossego íntimo, como íntimo foi o meu
modo de relacionar-me com ela através da sua escrita. O desassossego que
conduzia Llansol às viagens, a mim conduz-me aos seus livros.
Enquanto legente não procuro chegar a nenhum fim e nem
a lança da sua morte na minha vida me deu esse sentido, pois que a cada leitura
há uma renovação de votos, há um caminho que se abre para o meu ser e portanto
esse acontecimento não abrandou o meu amor nem a sua existência em mim.
[…]
Ao contrário do
verso de Celan que Maurice Blanchot traduziu como le dernier à parler (o
último a falar), Llansol, para mim foi a primeira a falar. Tinha dezassete
anos quando comecei a lê-la e ter sido a primeira a falar não sucedeu
exclusivamente em virtude da minha idade, mas sim pelo inesperado que a sua voz
ofereceu ao meu mundo. Celan escrevia para permanecer humano, Llansol concebe
um mundo humano que aqui viva (BDMT, p. 122).
Em Um Beijo Dado Mais Tarde, aprendi a ler tal como Témia, a rapariga
que temia a impostura da língua. Quantas vezes como ela, sentimos uma nostalgia
infinita? Quantos de nós adormecem a suplicar por lugares de aprendizagem? Aprender
a ler é sair do negror, da cinza da
melancolia (BDMT, p. 48) para o fulgor dos encontros e do encantamento. Com
Llansol não há perda, há labor e transformação.
[…]
Que romance será
este? É um romance que não o é, e que foi escrito para que o romance não morra,
como referiu Llansol no seu discurso de agradecimento do Grande Prémio de
Romance e Novela de 1990, atribuído a Um
Beijo Dado Mais Tarde, pela Associação Portuguesa de Escritores.
Llansol escreve
para que a língua não morra aniquilada pela sua própria impostura. A
liberdade na escrita, torna apreensivos e inclusivamente afasta muitos
leitores. A sua velocidade pessoal dispensa contornos e formatos. É
surpreendente de facto, mas não implica uma lei e tão pouco pede ao leitor que
aceite coisa alguma. Não há no seu texto algo de sobrenatural, há um modo de
relacionar-se com a vida, que não sendo vulgar, não o torna menor. A falta de
sentido atormenta-nos a todos, e é exactamente a essa falta ou ao sentido que
nos é imposto pela língua, que Llansol oferece a sua indiferença activa.
Importou-lhe
retirar da palavra o sentido de utilidade, essa função que a subjuga e não
conduz necessariamente ao encontro entre os humanos. A palavra é tomada
enquanto elemento que pode guiar-nos ao sonho sobre o princípio do princípio
antes da contaminação que vem depois. A palavra que permite brincar ao
pensamento enquanto somos vivos, sendo que conforme Maria Filomena Molder, pensar quer dizer precisamente caminhar em
direcção a um que está à nossa espera. Entremos então na palavra como vale
encantado, não entre duas montanhas, mas entre os humanos para que possa fazer
de nós vivos no meio do vivo (Lisboaleipzig,
p. 120).
[…]
A sua vivência é atravessada por um movimento de
aproximação, há um intuito relacional que se configura nos encontros entre
pessoas e objectos, pessoas e lugares, figuras e tempos. A escrita existe
enquanto suporte de celebração não pelo modo como diz, mas por dizer. Não é a
forma textual que interessa, mas sim o acto enquanto movimento. Como quem tem um
falcão no punho e não consegue deter esse animal veloz, o mais rápido do seu reino.
O que imprime na escrita de Llansol o seu carácter de alteridade é uma
geografia rebelde que não se quer circunscrita a um campo de entendimento com
razões ou fundamentos. O que importa não é que a palavra se ajuste ao corpo de
pensamento que a lê, mas que justamente através dela, esse corpo se liberte e
viva para além da linguagem, num fora-de-si. Esta postura implica capacidade
rítmica e isto sugere-me que quem sente dificuldade em ler Maria Gabriela
Llansol, talvez o sinta por não conseguir entrar no ritmo, o que redunda numa
falta de compasso.
[…]
Llansol não encara a natureza nem os seres como
algo que pode vir a dominar. Penso que prefere a presença das coisas para além
de coisas que são, ser leal à natureza, à sua origem e possível mutação, numa
relação de afinidade original, porque é perpassada pela sua própria vida, sem
leis nem redis. O poder, na sua acepção mais estrita, afasta a vida possível,
deixa restos, e são esses restos mal olhados, mal amados que interessam a
Llansol. Nem sempre o poder e a língua são justos.
[…]
Ficamos a saber
na primeira página de Um Beijo Dado Mais
Tarde, que na casa (casa da
Rua Domingos Sequeira), não se administrava bem a Justiça da língua. Pressentimos
que a língua, mesmo quando não está oculta, pode não dizer, não falar. Há algo de que se desconfia, um medo do engano, de ser trapaceada
pela língua. Ainda assim, quem duvida decide sentar-se numa poltrona, a
fazer companhia a toda esta luz ressentida. Estamos num lugar/cena algures
entre o nascimento e a morte, entre a alegria sobre a terra e tristeza
no paraíso. Quem nasce acolhe ou é acolhido? Há também quem morra enterrado
por um simples olhar: um filho bastardo, por exemplo, como neste livro.
Em Um Beijo Dado Mais Tarde, Llansol
diz-nos: Numa história, há (ou não há) um
momento a que se chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor
treinado já conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à escrita
(BDMT, p. 62). Sublime é
precisamente o nome que Llansol dá à escrita e é nesse exercício que está o que
importa desvendar.
Havia um segredo, diz-nos o texto, mas diz-nos também que há
coisas que se revelam silenciosamente e se adiantam a nós pelo facto de serem
vistas por quem lhes tira o véu, por quem duvida se as coisas existem como
prova de existência delas próprias ou se nós as vemos ou inventamos para que
possamos existir. A disponibilidade e disposição para ver/ler, expande e leva o
pensamento em caminho.
A casa que habita
este livro é a casa da Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. Casa da infância de
Maria Gabriela Llansol. A propósito de outra casa, creio, Llansol escreveu em Um Falcão no Punho: É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém.
Confesso que é das frases que mais me marcaram nas minhas leituras. Maria
Etelvina Santos relembra-nos na introdução ao Livro de Horas V (O Azul
Imperfeito), que Llansol nomeava as casas onde viveu como passagens-metamorfose. Esta expressão
traduz a ligação e o reconhecimento entre paisagens e figuras, o inevitável
resgate da origem na direcção do desconhecido. Aprendemos que importa que
antepassados e objectos, respirem e sejam baptizados por um raio de sol que os
ilumine e resgate do mau silêncio, do não-dito. Entregues à luz, encontrarão a
serenidade. Assim se dá um beijo que preenche o vazio, um beijo que se dá mais
tarde.
Quando nos
dispomos, por obrigação ou vontade íntima, a visitar os lugares do nosso
passado, quando olhamos para as heranças das vidas que nos antecederam e que de
certo modo antecipam e ditam coisas em nós, quando a elas regressamos, tem de
haver algo que ligue este caminho difícil entre três tempos, passado, presente
e futuro, algo que reúna o que se herda e o que se escolhe guardar ou
transformar. Em um Beijo Dado Mais Tarde,
esse algo é alcançado através de um dom poético, quando ouvimos, por exemplo,
Bach cantar uma música que faz de corredor no corredor. O sublime facilita assim
um caminho para o real que se apresenta. Em Llansol há uma consciência aguda da
fragmentação que atinge as nossas vidas, das feridas entre voo e queda, mas há
também uma necessidade de congregar a nostalgia imensa e infinita que percorre
a existência. É um desejo difícil de concretizar.
Fechar uma porta
sabendo que não mais a poderemos abrir, pode ser uma sentença, um dito para
sempre, se assim o quisermos entender. Equivale ao esvaziar o guarda-roupa de
alguém que morreu. Fecharmos a porta da casa da nossa infância é também
despedirmo-nos de uma parte que ficará ali, sem nós, num para sempre, e avançar
com outra que nasce dessa morte.
Llansol
teve uma vida própria, uma vida com uma maturidade que não desiste de olhar
para o que já foi vivido, não como quem relê, mas sim como quem lê, como alguém
que está disposto a conceber-se até à morte no sonho acordado dos afectos e que intensamente procura não adoecer
com as feridas causadas pelo real.
A sua
escrita é marcada por uma transparência invulgar, por mais que nela seja
apontada uma densidade impenetrável que necessita ser desvelada, quando de
facto para mim sugere um campo aberto. Sentir a vida, mais do que pensá-la,
vivê-la e passar com ela e nela, não por ela. Vivê-la de modo cientemente
humilde através de uma tomada de conhecimento afectivo. Não é uma escrita que
fale do ser humano mas de ser-se humano. É difícil não nos perdermos de nós
próprios. É fácil perdermo-nos dos outros. É difícil desembaraçarmo-nos de uma
língua pesada e imposta, e Llansol desata os nós da língua para abrir a língua
e não os nós.
Oferece-nos
uma visão de um mundo que vai além da força ou fraqueza dos objectos e figuras
amados. Parece-me que lhe interessa sobretudo a possibilidade de movimento que
os habita e é nela que lhe interessa participar: no movimento quase musical que
os investe ou que pode ritmicamente ser investido neles. No seu mundo, as
imagens ganham
existência através do corpo de emoção que produzem em quem vê ou lê e assim o que há de amor em cada parte do ar / é-(lhe)
enviado com nome próprio (BDMT, p. 69).
Para Llansol, os bens sobre a terra são cinco: O
conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de
viver. Cinco bens entrelaçados, que se alimentam mutuamente, pois que o conhecimento traz abundância, a ponto de
tornar generosos os homens (BDMT, p. 62), e porque para ela o humano
define-se pelo face a face ao Amante, de
que o corpo é a manifestação presente, e o texto a ausência que se manifesta
(Lisboaleipzig, p. 130).
(Fotografia de Inês Dias)