26.9.16

LLANSOL NO «FOLIO», EM ÓBIDOS

Passou ontem no FOLIO-Festival Literário Internacional de Óbidos, o filme de Miguel Gonçalves Mendes Curso de Silêncio, feito a partir de obras de Maria Gabriela Llansol e de uma conversa com Maria Etelvina Santos e João Barrento, gravada em Sintra em 2007.
Procurando construir algumas pontes entre o filme, essa entrevista e a Obra de Llansol, João Barrento falou ontem, depois da projecção, para o público que enchia a tenda montada em Óbidos, e desse comentário deixamos aqui algumas passagens mais significativas.


(Foto: Anabela Mota Ribeiro)
Eu começaria assim, indo às origens deste filme e fazendo minhas por um instante as palavras de Maria Gabriela Llansol:
«àquele que já sabe eu explicarei tudo; àquele que nada sabe eu nada poderei dizer».
As palavras vêm de uma conversa que a Vina e eu fizemos com M. G. Llansol em Julho de 2007, a pedido do realizador do filme.
A frase tem um toque sibilino, quase bíblico, mas de facto funciona ao contrário dessa sabedoria profética ou sacerdotal, e a um nível bem mais profano. É antes uma espécie de lema para uma ideia de comunidade humana possível, a dos semelhantes na diferença. A ideia implícita parece ser a da existência de uma consonância tácita (a daqueles que já sabem, mas nunca saberão tudo) – ou então da impossibilidade dela! Transpondo para este momento e este lugar, depois de visionado este filme, eu diria: aqui, estamos, em princípio, em consonância, e por isso é preciso explicar tudo! Ou pelo menos algumas coisas. É o que tentarei fazer, indo às origens.
E nas origens está uma pergunta, uma espécie de eixo central do que poderia ser o guião do filme, e que por sua vez deu origem a outras perguntas, desdobrando-se:
O que é isso a que se chama «riqueza de espírito»? E por que é que isso parece estar tão ausente do nosso «mundo da vida» (e também do mundo da arte, ou de muita coisa que por isso se toma)?
Esta era a pergunta inicial do Miguel a Llansol, e que todos sentimos logo que precisava de ser desmontada, desconstruída. E a Maria Gabriela, já com alguma dificuldade, fê-lo, com palavras que pareciam desde logo ir ao encontro do que seria um filme que ainda não existia, e ela não podia conhecer – daquilo que é, hoje, este filme do Miguel Gonçalves Mendes.
«Riqueza de espírito» é, à primeira vista, uma contradição de termos, uma perversão de sentido dos dois elementos da expressão. Mas é possível recuperar ideias desvirtuadas (quase sempre pelo uso – que não atenta nas palavras, não lhes dá a atenção que elas merecem e pedem!). A palavra «riqueza» foi reduzida ao ter, esquecendo o ser; e o «espírito» caiu em descrédito, tornou-se objecto de suspeição no meio de tanto materialismo de pacotilha, raso e falseado, que nada tem a ver com as origens, quer do materialismo, quer do espírito – que afinal se encontravam, dos pré-socráticos a Lucrécio, do pneuma grego ao ruah hebraico. Afinal, aí, o sopro (depois spiritus) era a energia da criação, a pujança do Ser, o combustível que põe o corpo a agir, a pensar, a criar...
Llansol responde à aparente incompatibilidade entre riqueza (material) e espírito (incorpóreo) desfazendo-a, e falando de um «isso» que estará entre os dois, ou de que ambos podem participar:
«Essa associação não tem sentido, mas não interessa dizer o que tem sentido ou não. Interessa dizer algo sobre ISSO. E isso... é incomunicável, faz-se de imagens pessoalíssimas, do trabalho sobre a vida quotidiana, do mundo envolvente, isto é, é um trabalho de todos os indivíduos, em que o corpo é o suporte físico».
Estamos em pleno no filme do Miguel. Mas Llansol esclarece ainda, dando-lhe outro nome, essa controversa «riqueza de espírito»:
«A vivência, a espiritualidade, chamem-lhe como quiserem. Eu diria mais: a vida imagética interior... pratica-se pela atenção; não tem momento de começar nem de acabar, está no próprio, portanto, é como quem diz: àquele que já sabe eu explicarei tudo, àquele que nada sabe eu nada poderei dizer». 
O momento seguinte foi o de saber: e como se faz um filme com isso? E Llansol respondeu, e o Miguel seguiu por aí:
«É quase impossível fazer um filme sobre isso, a não ser captar imagens: ISSO [lembremos: o dar a ver a «riqueza de espírito»] faz-se captando imagens.»
E veio ainda outra pergunta, no questionário do Miguel: e de que imagens precisamos, e para que servirão essas imagens? É a pergunta essencial do cineasta. A que Llansol responde como se o fosse  também – e mais uma vez é isso que o filme faz e põe em movimento, e tudo lá está, sem explicações, apenas algumas ligações textuais mínimas, com excertos de dois ou três livros: 
«Precisamos de imagens de montanhas, de imagens de textos, de imagens de rios, de imagens dos seres que amamos, de imagens dos animais que amamos, e de imagens do nosso pensamento criativo, é isso». 
E acrescenta uma frase que, ao que me parece, poderia ser o vademecum de qualquer cineasta, e o é neste filme. Disse a Maria Gabriela, à questão «para que servirão essas imagens»:
«As imagens não servem, elas são rainhas»!
O que pode querer dizer: a arte é, em última análise, sem finalidade; ou tem em si mesma a sua finalidade. E também este pressuposto (kantiano) se confirma na última resposta de Maria G. Llansol à pergunta «Escreve-se para quê? Dança-se para quê?», e à preocupação nela implícita. Diz ela, aludindo a uma noção de grandeza que nada tem a ver com fama, antes com o ímpeto que nasce de dentro e faz subir:
«Escreve. Dança. Sê grande. Se for com altura suficiente, ver-se-á... ninguém deixará de te ver. Podes ser tudo. Pois é, isto é muito a infância da arte...»
A infância da arte, a infância e a arte, a infância na arte: estamos novamente no cerne deste filme, em que cada imagem, apresentando-se nua, ganha grande densidade, e que também é um filme feito em larga medida com crianças e adolescentes. Uma vez mais sem finalidade, mas com um desígnio bem preciso. Sem princípio, meio e fim (i. e., sem uma lógica limitativa), apenas sequências não sequenciais de intensidades, de cenas-fulgor.
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De certo modo, já fui falando do filme do Miguel sem o abordar explicitamente. Mas aproximemo-nos um pouco mais.
Em 2007, aquando da sua apresentação no Festival Temps d'Images, o Expresso esvrevia numa nota: «Um objecto difícil de qualificar». Podiam estar a falar de qualquer livro de Llansol. As duas coisas, filme e livros, serão «inqualificáveis» (i.e.: furtam-se aos padrões de classificação habituiais) em relação a dois aspectos: a construção e a substância, que é como quem diz: a montagem não sequencial-narrativa, e a eventual estranheza ou singularidade das imagens. A montagem do filme é perfeitamente equiparável à montagem textual em Llansol: a articulação de cenas ou planos não é logicamente perceptível à primeira vista, mas há um subtexto que os liga, um fio de profundidade que assegura, no subconsciente da obra e de quem a vê/lê, o que é comum; algo semelhante à ideia do «esquema» kantiano (algo assim como um terceiro excluído incluído), um pressuposto do conhecimento que não é o objecto do conhecimento, mas que é decisivo para apreender o que está para lá da superfície visível das imagens. Para entender o que é esse «subtexto», poderíamos perguntar, por exemplo: o que liga, no filme, o gesto de escrever/copiar ao de acariciar a casca de uma árvore? ou a casa à floresta? ou o gesto invulgar de semear no mar ou de nascer de uma árvore? ou o homem nu ao piano/o rapaz que toca violino em plena natureza e a mulher constantemente rodeada de folhas de escrita?
Os entretextos que, como no cinema mudo, pontuam o caminho de plano a plano, e que provêm de livros de Llansol (muitos deles desse grande livro de luto e caminhada para a luz que é Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004), evidenciam esse substrato de ligação, e condensam o que as imagens irão mostrar: o acto de escrever/ler/copiar (seminal e sempre presente em Llansol), a casa como Lugar do intenso, ou a floresta como lugar do júbilo, os corpos que não servem uma acção, mas valem por si e em si, a relação humano/não humano, o poder da luz ou dos elementos, o princípio da metamorfose...
E uma ideia de fundo a atravessar tudo isso, indissociável da escolha de um grupo de crianças adolescentes como actantes (não actores!): como podem aqueles/aquilo que não tem voz ganhar uma voz própria? No filme (como em Llansol), esses/isso corresponde a duas esferas:
1) a criança, particularmente numa fase em que começa a querer ter voz, mas a ordem instituída quase nunca lho permite (em Llansol, escrita e infância andam sempre juntas, e a figura da(s) criança(s) está presente desde O Livro das Comunidades);
2) os seres mudos, todos eles tendo e não tendo voz: porque a árvore rumoreja, o mar brama, os animais têm as suas vozes... mas o que os faz existir, ou não, é o dar-se ou não atenção a essas suas vozes. A atenção que se dá ou não se dá ás coisas que estão aí e acontecem à nossa volta é decisiva, nomeadamente, como escreve Llansol, para nos apercebermos, em cada coisa e em cada ser, do que não está à vista, mas existe e é essencial: «reparar no real faz eclodir o real que, no invisível, lhe corresponde» – a atenção faz então nascer, ou despertar, aquilo que Llansol designa de «sensualidade do invisível». Também isto faz parte da «riqueza de espírito»: sem a atenção – essa «oração natural da alma», diz Benjamin – não se chega à «vida imagética interior» que corresponde, para Llansol, a essa riqueza de espírito.
O filme aproxima-se, como disse, muito da prática de escrita de Llansol, quer na montagem, na recusa de uma trama narrativa, quer também na fuga a qualquer sugestão de transcendência ou metafísica, nomeadamente dessa abominável «metafísica dos sentimentos», banal e kitsch, melíflua ou violenta, que ainda domina algum romance e mais ainda, actualmente, a praga das novelas televisivas de produção nacional.
Isto quer dizer: este filme faz-se e afirma-se, como qualquer texto de Llansol, na pura ordem da imanência (imagens, corpos, objectos, percepções, também a música). Aqui, não se documenta nada (não se trata de um documentário), nem se inventa nada (não é ficção): mostram-se, numa desar-ticulação de superfície, feita de intensidades, cenas fulgor que se articulam através daquele substrato de que eu falava há pouco, e que é o de uma ideia de busca – não de busca de um sentido (que o mundo não tem), mas de uma energia que anima as coisas e os corpos desse mundo, nesse mundo, e das razões da sua permanente metamorfose a caminho de uma qualquer «revelação» profana. Como M. G. Llansol explicou, em 1994, quando alguém lhe pergunta também por que escreve, para quê ou para quem escreve:
«eu ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das plantas, ando à procura de um final feliz. Ando a ver se o fulgor que, por vezes, há nas coisas, é melhor guia do que as crenças que temos sobre elas, ou do que os pensamentos que, a propósito delas, nos ocorrem.»
Ou seja, importa ver e dar a ver, sem especulação nem crença. Como no filme, de plano para plano, e com um duplo centro, muito llansoliano: uma casa (centro aglutinador, onde nasce a escrita e os objectos ganham estatuto de figuras) e o mundo (não o social, o gregário, mas o da physis, do Vivo – que também pode ser o inerte). Este filme, mostrando (porque mostrar é a sua natureza e a sua vocação) o que é misterioso ou pouco expectável, nas imagens, nos lugares, nos gestos, vem dizer-nos uma vez mais, como Llansol sempre fez: vejam (e ouçam) precisamente aquilo que o mundo que nos rodeia não deixa ver e ouvir. Esta incapacidade de ver e ouvir é de há muito o traço paradoxal que marca esta civilização dita da imagem, que também é a do ruído, em que vivemos há décadas. Do outro lado está o caminho da arte e de quem a recebe, é esta a perene «infância da arte» que vive da atenção, da ambiguidade e da inquietação produtivas, da questionação que provoca, de permanentemente nos lembrar a perda do Humano e apontar para a sua regeneração, dando sinais (elementares) de orientação – a quem os quiser entender, os que «já sabem» (os outros nunca precisarão deles). Sinais como aquele de uma imagem que se atravessa na minha memória visual, vinda de outro filme de que falei há pouco tempo, a de um copo de água límpida na mão da actriz Edith Clever num filme/espectáculo de H. J. Syberberg, contra o fundo de escombros da casa de Goethe em Weimar, destruída pelas bombas, e com a Pastoral de Beethoven a ecoar num fio de música ténue. Ou como as imagens tantas vezes contrastantes deste Curso de Silêncio do Miguel Gonçalves Mendes: as mais elementares, do mundo sensível da natureza, e as mais elaboradas, do universo da arte – o homem nu ao piano, a escrita (do rapaz deitado no soalho, de lápis na boca, da mulher à mesa, no seu ritmo incontido) ou a música de Bach. Ambas presentes e alternantes, sem hierarquias. E há sempre, nesta busca de rastos e restos, um movimento que é o da vontade de decepação da memória da morte pelo júbilo, o fulgor e a eterna lei da metamorfose. Sem preocupação de encontrar para tudo um sentido, uma lógica argumentativa ou narrativa. Llansol deixa claro este desapego do sentido, em favor de uma estética do aberto e do possível, quase no final de um dos seus livros mais carismáticos, Um Beijo Dado Mais Tarde, que iremos apresentar dentro de dias em segunda edição, e que agora me serve de ponte para o visionamento do filme do Miguel:
«Nunca olhes os bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem [...] O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.»

(J. B.)