NA ESCOLA – COM PARASCEVE
Alguns professores, também alunos, leitores de M. G. Llansol, foram ontem à Escola do Convento do Desagravo – uma bela escola, magnificamente situada junto do Panteão Nacional, em Lisboa – para ouvir as reflexões de Paulo Sarmento, professor de Filosofia do Ensino Secundário e «llansoliano» de longa data, sobre a situação actual do ensino, sobre as relações na escola, sobre o confronto permanente entre professores e alunos. Mas no centro da exposição de Paulo Sarmento, e na viva discussão que se seguiu, estava um livro de M. G. Llansol: Parasceve. Puzzles e ironias, uma obra em que acompanhamos o processo de formação e individuação de uma figura de mulher, e onde várias figurações da criança evidenciam possibilidades múltiplas de interacção e de acesso a realidades, posturas, afectos, que a Escola de hoje não conhece.
Fizemos para esta sessão, como habitualmente, um caderno que reproduz excertos de Parasceve, imagens escolhidas pelo dinamizador da sessão e quadros sinópticos que procuram cobrir todo o espectro dos discursos sobre a educação, colocando-os em confronto com frases, lampejos, vislumbres oferecidos por aquele livro de Llansol. A conversa foi ainda completada pela leitura de uma das três «fábulas« escritas por Paulo Sarmento para a ocasião e colocadas à disposição dos presentes: a «Fábula do lobo» (derivada de Parasceve), a «Fábula de Alice» (inspirada em Alice no País das Maravilhas) e a «Fábula do vento» (escrita a partir das três metamorfoses do Zaratustra, de Nietzsche).
Transcrevemos uma parte da introdução de Paulo Sarmento a esse caderno, que esclarece as motivações que o levaram a propor esta sessão da «Letra E» do Espaço Llansol.
Educador, eu
próprio, na escola pública desde há duas décadas e tendo percorrido mais de
vinte escolas em geografias e contextos sócio-económicos e culturais muito
diversos, fui assistindo à instalação de um crescente mal-estar entre os protagonistas
desta história, decorrente de uma incomunicação severa entre eles. Como fazia
parte do enredo, não podia dar-me por satisfeito. E comecei a interrogar a
minha prática pedagógica e toda a estrutura institucional que a sustentava,
colocando hipóteses que para mim próprio eram incómodas. Questionava agora a
obsessão pelo sucesso escolar, os pressupostos desse sucesso, a natureza desse
sucesso, a pertinência desse sucesso, a legitimadade dos meios para o atingir;
questionava se a obsessão com a disciplina dentro da sala de aula não
escamoteava o verdadeiro problema, se não estava ela própria a barrar o acesso
às soluções; questionava a avaliação nos termos em que é realizada e todas as
injustiças que lhe estão associadas.
Fui expondo estas inquietações pelas
escolas por que passava. […]
Mas o que
sobretudo eu via nestas reacções era impotência e medo, muito medo. E uma
inércia inamovível, fundada no hábito e em certezas de convicção. E, no
discurso de repúdio, o medo da mudança levava o nome de realismo…
Voltei-me então para a minha inércia
e perguntei-me sem realismo nenhum: onde procurar o movimento que cause alegria
naqueles que se me apresentam pela frente e, de passagem, que contribua para a
minha alegria de educador? Era óbvio que, de cima, não havia nada a esperar:
cada nova orientação ministerial revelava-se um remendo sobre remendos, confissão
de ignorância da realidade e de incompetência. Nisso estávamos todos de acordo.
Por sua vez, as ofertas coloridas Psicologia light, com a sua gíria
irresistível, também não me convenciam minimamente; causavam-me até repugnância.
Eram cabriolas, levadas a efeito dentro do círculo mais próximo da fogueira da
tribo, análises superficialíssimas resultando em falsas soluções, muito longe
do âmago do que terá de ser hoje educar. Só então cheguei à leitura dos que
deveriam ter sido desde sempre as minhas referências: pedagogos como Freinet,
João dos Santos, Agostinho da Silva, José Pacheco (da Escola da Ponte), Paulo
Freire, entre outros. Neles encontrei a confirmação do que intuíra. […] Mas, como a inquietação me abrira a
sensibilidade, em tudo encontrava sinais da passagem do verdadeiro alento da
pedagogia: fosse em filmes, romances, ensaios, poesia; fosse em trabalhos de
artistas como Oskar Hansen, Nicolás Paris, Pietro Proserpio ou Os espacialistas.… Com todos eles aprendia (e aprendo ainda) a deixar de «dar aulas», para
passar a criar as condições para que os jovens criem o seu conhecimento,
através da tentativa, da descoberta e da auto-organização. […]
A ideia deste encontro nasceu precisamente
quando, estando eu a reler
Parasceve de Maria Gabriela Llansol,
verifiquei que o quarto capítulo do livro (e depois que todo o livro, em várias
passagens) me dava a chave de acesso ao espaço comum entre o adulto e a criança
ou jovem, o acesso à infância de ambos. Além do mais, a leitura da obra
apresentava-se como excelente auxiliar
na desconstrução de muitos termos presentes no discurso tradicional sobre a
educação, termos que viciam o pensamento e bloqueiam a acção transformadora.
Era necessário partilhá-lo com os meus pares. Talvez, desta vez, graças à
linguagem fulgurante da autora, fosse mais bem-sucedido…