UMA VIAGEM PELA OBRA DE M. G. LLANSOL
A ideia subjacente à última sessão da «Letra E» do Espaço Llansol no MU.SA de Sintra foi já explicitada no post anterior. Hoje fazemos, como habitualmente, o resumo da tarde de ontem, dando a ler a quem não esteve em Sintra a introdução de João Barrento ao caderno que reproduz o Bloco 06 do espólio, e, por sugestão de algumas das leitoras, os excertos dos dezassete livros escolhidos para leitura a partir das frases de Llansol no Bloco, que foram sempre introduzidos e comentados por João Barrento ao longo da sessão.
UMA PEÇA DE
ARQUIVO E UM MODO DE LER:
O «BLOCO 06»
Um dia, presumivelmente em 1996, Maria Gabriela Llansol
usou todo um pequeno bloco de notas (o número 06 na classificação do espólio,
20 folhas numeradas) para fazer um singular balanço-síntese da sua Obra publicada até aí. De
cada livro (e também da Introdução às duas primeiras traduções de poetas de
língua francesa, Verlaine e Rilke, então já publicadas) escolhe uma frase que
para ela deverá ter apelado particularmente ou que, no momento, sintetizava um
aspecto fundamental do livro e dos seus modos de escrever e ver o mundo (indicando
sempre a respectiva página). Cada uma dessas frases pode hoje ser entendida como
indicadora de um caminho possível para a leitura do respectivo livro.
O que me proponho fazer é tomar cada uma dessas frases de
M. G. Llansol como guião de leitura, uma linha de água no grande delta de
muitos braços que é o universo da sua escrita única e contínua, para uma
abordagem livre e sobretudo amplificadora,
que explorará cada motivo ou pormenor da frase, e os seus contextos, e que poderá sair deles e do livro para a Obra de Llansol, sem no entanto os perder
de vista. Cada frase (ou frases) funcionará ainda como complemento do comentário,
enquanto núcleo de irradiação para a leitura
de excertos do livro em questão, que necessariamente conterão as frases escolhidas pela autora.
Ler um livro a partir de uma frase escolhida
arbitrariamente pode ser uma empresa de alto risco. Mesmo, ou sobretudo, se o
sujeito da escolha foi a própria autora. Porque nesse caso o risco pode ser o
da «cegueira crítica», de uma leitura determinada à partida pelo olhar do
autor, que impõe um caminho (e com isso impede uma visão mais ampla e
«desinteressada» da obra). Mas não é disso que se trata aqui: a ideia de ler
uma boa parte da Obra de Llansol à luz do «Bloco 06» poderá transformar-se
antes numa espécie de exercício divinatório, num jogo de possibilidades, numa
interrogação sobre a imagem (a ideia, as preferências?) que um autor propõe de
um livro seu, por vezes a muitos anos de distância.
O «Bloco 06» não nos fornece nenhuma
explicação, sequer uma nota, para esse gesto de resumir um livro a partir de uma
frase sua. Nem isso seria muito compreensível em Llansol, que temia as
simplificações e rejeitava as tentativas de fixação, em definições sintéticas e
inevitavelmente fechadas, dos constituintes abertos e mutantes da sua escrita –
figuras e noções, lugares e particularidades de estilo. Mas não é propriamente
isso o que ela faz com as frases deste bloco. Ainda assim, interrogamo-nos
sobre os motivos deste exercício que, na diversidade que parece caracterizar as
frases escolhidas, permite – e isso é o mais interessante e produtivo – ler os
vários livros, tanto pela via de uma ideia que provavelmente o viu nascer como
pela de uma figura que nele se tornou determinante, de um traço de estilo que a
autora quis destacar como seu, de uma frase enigmática que sugere, mais do que
explicita, uma camada de sentido importante, da «cumplicidade» com figuras ou
temas da sua preferência ou de uma proposição lapidar que torna evidente e
inquestionável a motivação primeira para a escrita de um livro …
Fosse qual fosse a motivação, o bloco está aí e apela
para nós com o fascínio de uma peça singular e intrigante no meio da torrente de
escrita de dezenas de milhar de páginas dos cadernos e outros blocos de notas.
E isso será suficiente legitimação para o gesto ousado de o tentar interpretar
e comentar, traçando com isso também um percurso por uma parte significativa da
sua Obra (dezassete livros e as duas primeiras traduções de poetas de língua
francesa).
João Barrento
O CÍRCULO DA LEITURA
[As frases a verde são as escolhidas por M. G. Llansol para cada livro]
1. OS PREGOS NA ERVA
O mar acabara para os olhos de Macário, naquela noite.
A areia frágil também acabara, e o rochedo esburacado como uma esponja pela
erosão, e a sua laca de espuma e de sol, e debaixo dos barcos virados, as redes
amarfanhadas em que os peixes morriam e o amor, às vezes, principiava. Pousava
nas mulheres o cheiro do mar, impregnava-as até aos ossos através das saias e
das blusas, de modo que nos seus corpos se abraçavam ondas solidificadas de
água. [...]
Era uma manhã de sol, sol de mar, de
luz e sal. Os gritos das crianças — "Olá, olé, oli" —
convergiam, a acabar-se, para a Escola. Barcos amarravam à areia o seu instinto
desumano de partida.
—
O inverno acabou — disse Macário. — Ainda bem.
—
Foi um Inverno frio — respondeu Elisa.
—
Um Inverno duro — acrescentou Macário.
Ia um pouco adiante. De vez em
quando parava ou olhava para
trás, a
estimular os passos mais vagarosos de Elisa. Derramava em si próprio a silhueta
traçada com firmeza em tecido negro, porque não trazia xaile. Tinha olhos
castanhos, limitados, e por isso quase fartos.
—
Uma vez deste-me uma bofetada.
—
Não queria bater-te.
Os vestígios dos seus pés marcavam uma fronteira ao
mar, mas as águas não a respeitavam. As pegadas alagavam-se, cobertas de seixos
e de limos.
— Estamos quase no fim da praia — disse Elisa. — A
maré começa a subir.
Macário olhou para trás, a verificar se a distância já
os ocultava ou ainda os descobria. Passou um braço em redor dos ombros de
Elisa. A água rasava-lhes os tornozelos, a perfurmar-lhes os pés. Voltaram a
cabeça para a direita e viram o céu e o mar, as duas profundidades inversas,
repletas da cor uma da outra. Rochas eram o sinal do fim da praia e do início
da falésia. Sentaram-se na areia pesada que, todavia, comungava a leveza do sol. A maré subia, inadiável. E a blusa de Elisa fez-se ao mar.
Através das tábuas desunidas via segmentos dos troncos
das três árvores. Sara dormia com a cabeça encostada à parede e o queixo
assente sobre o começo do peito. A luz que penetrava pelos mesmos interstícios
que permitiam a Marcos a visão de segmentos das três árvores, concentrava-se
num facho onde oscilavam poeiras e incidia sobre o ombro nu de Sara como uma
flecha de ponta partida.
Abel que passara a noite estendido em frente da porta
aproximou- se em silêncio de Sara e beijou-lhe o ombro nu. Marcos olhou-o sem
expressão. Abel ficou imóvel, com os joelhos e as mãos sobre o solo. O beijo
continuou-se nos lábios de Marcos que virou a cabeça para a fonte de luz
começada.
No vestido de Sara pendurado na parede, um pouco para
além da porta, uma mosca pousou as patas quase invisíveis. Os curtos fios
pretos comunicaram às flores artificiais do tecido uma existência matutina que
acabou logo que o insecto voou em direcção ao tecto.
Marcos descerrou a janela. — Ela acorda — disse Abel. […]
— Vou-me embora — acrescentou Sara de repente.
— Para onde?
— Um dia acontece.
— Acontece. Não somos capazes.
— Não. Deitamo-nos no mesmo chão. Pela tarde, Sara beijou Marcos.
— Vou-me embora — acrescentou Sara de repente.
— Para onde?
— Um dia acontece.
— Acontece. Não somos capazes.
— Não. Deitamo-nos no mesmo chão. Pela tarde, Sara beijou Marcos.
—
Leva os tecidos que quiseres.
—
Não.
Partiu calada, com os sapatos numa das mãos.
Marcos deitou-se com a pressão do beijo a repetir-se na face.
Através das tábuas desunidas viu, durante
instantes, o amarelo girassol do vestido de Sara.
2.
DEPOIS DE OS PREGOS NA ERVA
a uma sociedade nova. Mas posso destruir os mortos». )
Como, de resto, é evidente, não tive intenção de ser concebido. Dei comigo já sentado no quarto das sombras com uma perspectiva de descida
aos infernos diante dos olhos, ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma
relação humana era exacta para tornar-me equilibrado e justo, ou útil; no
quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada
mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma
passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma
acocorado à entrada e que, afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia,
o volume rutilante do sol no oleado; ficava, pois, limitado por uma proibição a
essa sala. Nas minhas reminiscências, neste passado que se prolonga e faz um
com o futuro, aparece castanha, quase luxuosa, infiro que deviam atribuir-me o
valor de um anel precioso para nos guardarem juntos tenho-o pousado em livro à minha mesa de
cabeceira amigo único santo fetiche foi o que ele disse os seus sintomas são resíduos e símbolos de
certos acontecimentos (traumáticos) [...]
Ficha 1 — O quarto é branco, com movimentos de
cor pincelados em cada parede, sou eu que os faço; molho o pincel em vários
baldes com tinta, segundo me prescreveram na minha terapêutica depois desta
aprendizagem de estar doente em que me vou tornando exímio, criança para sempre
irremediável sem palavras que não sejam figuras e cor cor que me sai em teia,
em fixação no passado com formas actuais conforme o que pinto na parede que é
obra minha banhado nesta
expressividade que me acompanha não falo tenho a mão; que se mantém muito
proximamente ligada à boca quando vomito ou como, aos olhos — choro; descobri
para as minhas lágrimas a felicidade de decomporem a luz e de me trazerem à
lembrança pessoas da minha família minha mãe, meu pai, meus irmãos, minhas
criadas também consideradas da nossa família, desejáveis como nos tempos da
minha infância ainda a não recuperar-se nesta casa...
3. O LIVRO DAS COMUNIDADES
[…] A parteira diz-me que vai dormir, que a espera muito se prolonga. Sorrio; e, tendo-a encontrado debaixo da página, guardei no
seio a mão decepada; São João da Cruz, ou meu filho, escrevem em vão sobre a
folha em branco. Sempre em branco não havia escrita: deitou-se então
sobre o papel, o corpo tomando as proporções de uma criança recém-nascida. Eu
olhei, ignorando. Nada se passava, apenas se ouvia um vagido, entre a mesa e
o tecto. De olhos fechados, ou abertos, eu não dormia; ele desapareceu na
página, e:
onde está a minha mãe?
O rumor da tempestade vem do
sul de Fontiveros. Já certamente atravessou Ubeda, e antes de Segóvia não
encontrará repouso. Faremos companhia um ao outro; não sinto dores, e de
nenhuma parte de meu corpo João poderá nascer; conheço as folhas de Fontiveros
no Outono, são vermelhas ou amarelas e ressoam nas ruas quando o ar se carrega
de electricidade ou ele passa com sua mão a escrever
deixando as ruas,
encontrou-se em pleno
campo. [...]
Lugar 10
Deixara-se
levar pelo sono, o vento cálido do deserto apagara o lume
as estrelas
despontavam no sobrevoo da extensão gelada
Ana de Jesus abismou-se em
Giordano Bruno, e na infinitude do espaço.
Giordano Bruno, de
prodigiosa memória, viu a sua testa reflectida na fogueira e lembrou-se de
todos os instantes, de todos os minutos, de todas as horas, de todos os anos da
sua vida; mais intensamente ainda dos textos que lera e dos autores que lhe
haviam concedido esse prazer; depois pressentiu que uma labareda subindo lhe ia
dividir a fronte
mas nas duas partes se lembrava que o universo é
infinito, povoado de milhares de sistemas com os seus planetas e o seu sol.
4.
A RESTANTE VIDA
a) Capítulo I
Nos meses de
Setembro e Outubro
Por aquele tempo, os dias
para Hadewijch, por virtude de muito amor tornada Ana de Peñalosa, eram duros
como pedras; sentia-se sem memória, privada da sua sede de aprender, traída;
uma espécie de velhice extra terrena antecipava-se ao seu tempo de velhice;
Nietzsche subia mansamente nos seus livros, no auge do texto; e ela esperava
todos os dias a sua sede de conhecer [...]
Aplicou-se a ler as
palavras mas elas explodiam, e rolavam sem direcção precisa para lá de
Nietzsche e de Müntzer.
Tinha orado?
Envelhecido?
Libertado o
corpo?
Amanhã outro dia começava,
e de toda a parte viriam notícias de loucura e de guerra; homens estranhos
tomavam o poder, e eram imitados. Quem ali estava com ela sentado à mesa, acabaria
por partir; e teria de voltar à sala privilegiada para suportar os seios, um
dos lugares aberrantes do seu corpo; mas Müntzer, quando indirectamente lhe
falava, dizia-lhe «Sabes que serás em todo o tempo? Em toda a forma?» Via o
horror das caras filtrar-se através dos vitrais, e as caras eram horríveis, e
todas se inclinavam para ela; as cores perfuravam as caras de mil buracos, e o
seu corpo acabara nesse momento de encontrar lugar para as mãos; encontrou
então outras mãos de unhas muito longas, e com pele de contacto desconhecido;
retirou-se nessa visão e entrou no seu quarto, meio adormecida de tristeza e de
amor. Estava à beira do ponto-voraz, acabara de tomar possessão da tua memória,
ó rosto monstruoso que atravessas o
vitral. Reconhecia os cães desfigurados pela luta e os corpos de Nietzsche, e
de João da Cruz, e de Tomás Müntzer estreitamente desmembrados. O meu horror
tão triste pôs-se a cantar com uma voz doce saída da minha boca, seguia-os
fielmente como se estivessem mortos e fossem ser enterrados. Não podia
alimentar-me a não ser de tristeza [...]
Assim seria encontrada
depois da batalha,
longe,
esquecida entre as páginas
de um livro velho...
b) Capítulo II
quando
intervieram as paixões, foi outra forma de guerra; a
princípio não se sabia que trama se estava a preparar, somente Ana de Peñalosa,
descerrando a porta do quarto, verificava que muitas bocas se fechavam (a
sorrir) ou se abriam (a gritar);
mas,
nesta visão,
não há paixões; desde que
aqui me abro ao espaço criado pela casa, deixado em mim pelo jardim, que paira
no ar como um insecto repleto de metamorfoses, a guerra e a dor são
impensáveis. Ou talvez apenas se apresentem sob a forma de nostalgia, ou de pacífica
inquietação: quanto tempo durará esta paz? [...]
Viria a ter amor por quem assim fizesse
silêncio, gostaria de recebê-lo aqui.
5.
NA CASA DE JULHO E AGOSTO
a)
(XIV)
Chove
serenamente e estamos no verão, é um tempo de prova para as beguinas; não quero prosseguir na noite sem escrever-te, Eleanora, mas estou
completamente despojada de imagens e de narrativa; no entanto, queria
prevenir-te, sem que devas dar-lhe muita importância, que vai chegar o tempo em
que os irmãos do livre espírito serão perseguidos pelas hierarquias e que nós,
as beguinas, os esconderemos na teia de uma ampla rede clandestina.
b)
(IX)
Na periferia da madrugada,
levantou-se de seu leito, com profundas saudades do destino de Luís M..
Penetrou junto dele sem falar, nem barulho e em breve, sem nenhuma razão
aparente estavam a conversar sobre narrativas, quilhas de barcos. Luís M. dizia «o exílio levou-nos a falar a língua por
dentro, e a olhá-la por fora». Ao fundo do quarto havia a coluna
trepadeira onde estava sempre presente o desejo de nomadismo; diante da
escuridão. Era uma coluna de águas silentes voltadas para pontos vários e
também Portugal,
torre cravejada de
olivais,
sobreiros,
episódios, décadas,
peregrinações,
crónicas e estadias suaves
visualmente desaparecidas.
c)
Epílogo
Os pobres
entraram na Casa, a sala-cozinha tornou-se promíscua. Cada um é meu Mestre. Os
pobres, no país desta língua, são andrajosos, ainda mais desprezados do que em
qualquer outra parte. Capazes de nos ensinarem
muito sobre a trama da vida, têm opiniões sobre os acontecimentos quotidianos
que exprimem em frases lapidares e hereditárias. [...]
Entre os pobres, escondem-se
alguns perseguidos. É amargo, para quem não é pobre, tomar a fisionomia
discreta e monocórdica de pobre. É amargo viver sentado no chão com o espectro
da fogueira e de torturas. Quem pode ser morto pelo fogo não ama, como nós, a
chama da vela. […]
Ser só a mulher que escreve é impossível; uma
paisagem permanentemente marejada de pensamentos me mantém com ela sua escrava.
Na linguagem de Comuns, diria que é aquela cativa que me traz cativo, mas já o
Convento dos Capuchos, na Serra de Sintra, me perturba do fundo da sala, se
constitui acontecimento imperfeito de livro.
6.
CAUSA AMANTE
a) meu
quarto é musical e sem janelas e, no entanto, mal chega ao corredor, abre sobre
o cabo Espichel, de onde recebemos sugestões de Lisboa; no Brabante, dava sobre
uma árvore, Prunus Triloba; num e noutro país a minha ocupacão principal é
ligar-me a uma ideia, e examiná-la cuidadosamente; quando um pensamento é
verdadeiro podem deduzir-se, sem interrupção, outros pensamentos verdadeiros.
[...]
Confrontado ao silêncio com
que vivíamos essas noites
noite Sebastião deu à praia; a Praça era o nada
prestes a ser submerso, e foi molhado pela espuma das ondas que se retiravam que
eu vi seu rosto pela primeira vez; nunca mais Sebastião seria o Rei, dele tudo
se havia perdido, a não ser o corpo que nós tínhamos; era um corpo quase nu como
muitos que nós já encontrámos e, entre estar morto e estar vivo, debrucei-me
para ele, pus-lhe a cabeça sobre uma saliência húmida, lembrada da ternura de
Coração do Urso por todos os seres semelhantes. Os que lutam e perdem batalhas,
como Müntzer, vivem as suas vidas ignoradas em ideias submersas.
[...]
quando Sebastião ouviu (dizer) «Sou eu, Ursula»,
saiu pela porta dos incógnitos, e tornou-se arbusto com as árvores; uma das três
árvores era Prunus Triloba…
b)
Os arbustos
não foram vencidos pelas armas.
Os arbustos não foram vencidos
pelas armas.
Dom arbusto pede-me que
procure Comuns na paisagem, e lhe pergunte se ele não deseja admiti-lo na sua
companhia.
Sobre a massa de papéis de
Comuns,
onde tinha vivido em
contradição consigo mesmo,
um peixe arde no meio do
Oceano Índico estendido;
As guelras de luz dão a
claridade necessária
ao papel em que Comuns
escreve,
à volta Úrsula espalhou
especiarias,
as rochas ficaram cobertas
de moedas.
Comuns responde-lhe que não
sabe se se deve, ou não, excluir dom arbusto do caminhar incessante da palavra.
Úrsula diz-lhe que, no
Paço, foi dom Sebastião quem o privou de ser ouvido mas dom arbusto, que é o
mesmo e o outro, não deve ser condenado a distanciar-se da corrente da língua.
[...]
Pelas fendas da paisagem,
tornou-se perceptível um curso de ar que agitou de contentamento os ramos de
dom arbusto:
daqui faço uma linha que me
ata ao sol,
um traço para o solo
firme,
uma seta que guardes no
coração,
uma fenda para ver o mar.
7. CONTOS DO MAL ERRANTE
a)
elevações de Münster
mal conhecida
Hadewijch,
desde que tu
partiste nunca mais desnudei ninguém, mesmo em pensamento, porque qualquer
nudez seria
nudez
sempre opaca e
não diáfana.
Ainda bem que, não podendo
ver-te, me resta a possibilidade de escrever sobre ti com a esperança de que o
leias mais tarde quando acabar o duplo cerco de Münster — o interior e o
exterior — e, entre eles, a prova especular que te espera; tento compreender as
razões por que te separaste de nós e te fechaste sozinha com a alucinação
visual em que percepcionas a imagem do vazio como teu próprio espelho; assim,
dentro do cerco maior de Münster, há o cerco fiel da tua imagem e creio que
foi por ele que vim, e não por Münster. [...]
Compreendi, pela segunda
vez, que nos amavas, e que ou o tudo, ou o nada, ia restar- -nos dessa
tentativa.
Ó Hadewijch, quando se fala
muito claramente, fala-se muito infinitamente.
b)
eu falo;
mas Hadewijch
cala num murmúrio,
e tudo o que
ela não diz,
e eu presumo,
pode
induzir-me em erro.
de qualquer modo, já passou
de meio-dia, e acabámos de consumir o silêncio que tem uma vibração que nos
liga, e de que estamos conscientes; disponho-me a fazer-lhe perguntas directas,
tal como se o seu corpo conjectural tivesse cedido, e o último dos últimos
aparecesse; [...]
Pergunto-lhe, sem rodeios,
se ela tem nojo de nós, ou se já não sente alegria na mansão; e se nos atribuiu
qualidades divinas, e a desiludimos;
ela diz que, quando casou,
foi como se lhe tivessem posto um ovo no lugar onde se quer que a galinha faça
a postura [...]
Nunca mais dormirás
magicamente connosco?
Oh!, tende paciência. Disse Hadewijch.
8.
DA SEBE AO SER
6. “Vamos,
agarra-te à minha mão e caminha, vamos ver a nostalgia do mar” — pronunciou
inocentemente do lado dos Evangelhos. Esse foi o guia que suportou o seu peso
morto,
até ao Oceano
Atlântico onde as esperavam as caravelas; a terra descia e estava arrelvada de
retratos que a sua mente guardava como a sua verdadeira vida. [...]
10. Procuro um
nome novo para ela que a confirme.
Vejo
um espaço
ilimitado,
e uma angústia
plangente
que me acorda.
Psalmodia será o seu nome, aquela que sabe que ainda não chegou a minha vez de
ser abandonada.
Ela sabe que a
minha iguaria preferida é o entendimento e a ternura – o visto com ouvido.
[...]
11. Como ela
se dedica às cores, perguntei-lhe o que significaria a minha atracção pelo
castanho.
— “O castanho
é uma cor opaca” — disse ela. Passado um tempo, ia perguntar-lhe: —"O que resta?". – “A ternura por entender, um grão de
areia”.
Um sinal de beleza
sobre o princípio.
9.
UM FALCÃO NO PUNHO
Herbais, 2 de Outubro de
1981
Não há
literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há
técnica adequada para abrir caminho a outros.
Lisboa 3 de Junho de 1983
A escrita como busca de
verdade:
Não sou portadora de uma
verdade porque a verdade não pode ser transportada mas sofro o impulso de
formular perguntas à verdade que vejo como ajuste. Os seres têm um sentimento
final de que há um lugar onde chegarão à sua coincidência.
Para cada um, a sua. [...]
a verdade como matéria
a verdade não é subjectiva,
nem objectiva mas o contorno final e acabado da vida de cada um; a resposta
dada, com recta intenção, ao justo apelo. Perguntar «quem sou» é uma pergunta
de escravo; perguntar «quem me chama» é uma pergunta de homem livre.
Génese e significado das
figuras
À medida que ousei sair da
escrita representativa em que me sentia tão mal, como me sentia mal na
convivência, e em Lisboa, encontrei-me sem normas, sobretudo mentais. [...]
Nessas circunstâncias, identifiquei
progressivamente «nós construtivos» do texto a que chamo figuras e que, na
realidade, não são necessariamente pessoas mas módulos, contornos,
delineamentos.[...]
O que mais tarde chamei
cenas fulgor. Na verdade, os contornos a que me referi envolvem um núcleo
cintilante. O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por
enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor. Há assim unidade,
mesmo se aparentemente não há lógica, porque eu não sei antecipadamente o que
cada cena fulgor contém. [...]
O devir como simultaneidade
Como ser civil conheço o
presente, o passado, e o futuro. Mas como escritor tenho um olhar que toca
sobretudo o espaço, livre de tempo. Nele não há poder, que é sempre o poder de
escolher e de chegar à morte. [...]
Nem hierarquia, nem ruptura
entre corpo e espírito
O pensamento é impelido
pela geometria dos corpos. [...]
Quando o corpo e o espírito
são dois amantes experimentados, surge a proporção escondida, sabem extrair de
quase nada o ardor imenso de criar.
O texto, lugar que viaja
O texto é a mais curta
distância entre dois pontos. [...]
O acesso ao livro é imediato. Só depois, já
nele, principia o extravio. São João da Cruz diz melhor: «Chegaremos aonde não
sabemos por caminhos que não sabemos.»
10. FINITA
Jodoigne, 5 de Novembro de
1975
Textual é
Prunus Triloba que florirá. Escuto muitas vezes esse arbusto, que se mantém
direito a meio da fachada da casa. É Outono, o meu primeiro
Outono numa casa minha que tenha um jardim. A ramaria, ainda jovem, de Prunus
Triloba, espalha conceitos sobre o ar, conforme penso. Spinoza enunciou que as
palavras só têm uma significação precisa em virtude do uso habitual que fazemos
dela. Quando terá Prunus Triloba a força suficiente para se tornar um Uso
Habitual?
[...]
A minha impressão é a de
que nada foi, tudo está sendo; agora vivos, posso olhar de cima, ou do
exterior; acordo e verifico que sobre o dia de hoje já passaram cem anos, e
desço uma oitava, ou várias, no tom de descrevê-lo. Dia de verão, tão claro.
Sem neve, nem frio, nem claridade opaca. Preferiria um dia mais concentrado sobre
a casa, o pátio, o movimento que já pressinto na Avenida para além do portão,
que é meu amante (o Augusto atravessa-o quando chega, ou parte).
Sim, as coisas
são veículo de conhecimento, à medida que se dispõem experimentam o nosso
pensamento e submetem à prova a nossa maneira de agir; disponho-as de certa
maneira e já outras percepções surgem, mudo-as de lugar, estabeleço entre elas
outras recíprocas relações, e já novos seres estão presentes e começam a
exprimir-se (a mim) para que eu não os abandone, os descreva, os mantenha, os
reforce na sua realidade nascente; quando tudo por mim for abandonando (penso
na morte), haverá objectos que, em outras casas que os herdarem, chamarão
alguém a seu destino.
A narrativa que a estas páginas vai estando
subjacente não precisará, finalmente, de ficção. Será um livro póstumo, ou um
livro antigo, e chamar-se-á, referindo-se a uma mulher, Biografia. Não
por eu ser escritora, ou uma mulher que dá testemunho; mas por ter nascido ser
vivo; que eu fale sem enigmas, com a clareza e a sinceridade que descansam os
espíritos.
11. INQUÉRITO ÀS QUATRO CONFIDÊNCIAS
21 de Fevereiro de 1995
«Aquela história dos
pássaros, no outro dia, era o quê?, uma alegoria?»
«Não, uma confidência: um
dos lugares onde começa o mundo.»
«Um dos lugares de onde
jorra a imanência...»
«Sim...»
«... feita de elos fracos e
elos forte. Eu sei que o mundo começa nos elos fortes...»
«... e se desdobra depois,
como uma toalha, em elos fracos, em finos desenhos —, a maior parte,
imperceptíveis.»
«Sim. Sim. Mas já reparei
que a Gabriela não vai muito pelo lado da emoção...»
«Muitos dos elos fracos só
têm fraqueza na aparência; a nossa vida é feita de muitos elos frágeis. Quando
o Vergílio aborda a imanência fá-lo, sobretudo, pelo lado do sublime — comove.
Mas, outro assunto. Quer casa ou cão?»
«Quais são as quatro
confidências de que falou?»
Vou dizê-lo muito
rapidamente, e depois quero ir consigo a um outro lugar do mundo onde escrever
o texto é dançá-lo ao ritmo da sua fragilidade e beleza.
A primeira confidência
é que nada somos _____
(«Não se irrite»). O eu como nome é nada. Há um lugar de escravidão.
A segunda confidência
é que os nosso actos, mesmo
a transumância ou a transplantação do azul da jarra, são menores do que nós. Há
um torvelinho de intensidades a chamar-nos: são os anjos de Rilke, ou as
legiões de querubins evanescentes, de Walter Benjamin.
A terceira confidência
é que não há contemporâneos,
mas elos de ausências presentes; há um anel de fuga. Na prática, é uma cena
infinita — o lugar onde somos figuras.
A quarta confidência
é sobre o desejo e a
repulsa da identidade. Há um lugar edénico. («Não, não diga nada»). De facto,
deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um consistente — é um
verbo.
O nosso verbo, por exemplo,
é escrever. [...]
«Não temos nada,
nada nos tiraram.
Dissemos, simplesmente.
E dizer foi possível.
Quase impossível foi encontrar onde».
12.
AMAR UM CÃO
Através do outro, e em face
do outro, sob o seu olhar, um ser sendo forja a sua identidade. [...]
Pela primeira vez, alimentei
Jade (que adoeceu repentinamente), a intervalos certos, durante dias; ele
comprimia a minha mão com as patas, e eu dava-lhe leite vitaminado com uma
seringa; à medida que, neste trabalho, o aproximava de mim, e eu o sabia
construção viva da natureza, principiei a sentir uma alma incipiente insuflada
nele, e que duraria até ao fim do mundo, perguntando sempre «o que é a luz
comum? Eu sou da luz comum, ou uma primeira alteração dessa luz clara?» Chamo: — Vem, Jade
—, mas, com um prazer muito maior, designá-lo-ia por alma crescendo.
É esta relação
de alma crescendo que se estabeleceu entre nós; é esta relação, fora da luz comum, que estabelece as diferenças que
desempenham o papel de elementos perturbadores nos hábitos de servir os
afectos: eu ia a dizer que, nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim
de um livro respeitando-lhe a sequência coercitiva das frases, e das páginas.
Uma frase, lida destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe
correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo. Eu não consigo
abranger a infinitude do número e da harmonia das almas, nem o texto de um
verdadeiro livro, nem a terra de um jardim que se mantém há gerações. [...]
Foi por causa dessa
nostalgia que sonhei, esta noite, que Jade tinha deixado a casa. Só eu fui à
sua procura, e um homem, que encontrei numa aldeia, deu-me uma folha de alface
para ele se refrescar; uma mulher deu-me os seus sinais e bati a uma parede, do
lado da rua. Jade veio, e deitou-se, dando à cauda, num enorme prato de leite.
Felizmente, havia a trela, e trouxe-o para o Coreto do Jardim da Estrela, para
o lugar de onde havíamos partido.
Azenhas do Mar, finais de Agosto de 1990
13.
O RAIO SOBRE O LÁPIS
I
Seria eu capaz de sujeitar,
ou de vender, estes objectos, de força emocionante, que vivem na paz e na concórdia?
Seria eu capaz de trocar por dinheiro a tela de Ana ensinando a ler a Myriam?
E a teia da escultura que lhe corresponde, sobre a mesa nua, à entrada da
porta? Eles, os objectos, os verdadeiros livros fechados no novo escritório,
respondem por mim numa voz inaudível e, assim, eu sei que eles responderam
_________; e fico sem resposta. […]
XI
Os objectos escavam o
espaço, e ocupam nele um lugar. Depois, indicam que um ramo de pinheiro não é o
mesmo que o barro, nem que a água. Vistos assim, são o mundo físico da
inteligência atravessando a luz.
II
«Um escritório
especulativo é o inverso da vida»,
o segundo capítulo que me ocorreu como
frase. O falcão continuava a querer agitar-se dentro da secretária. O falcão só
poderia atravessar aquela escolha se se transformasse em intenção de partir.
Não compreendi
a
que nível de existência
pertencia o falcão;
se ele era a minha voz, ou
o seu súbdito;
se o escritório englobava
a secretária, ou era o
imenso território do
falcão...
X
________ a
jovem Myriam pergunta-me:
— Ana, o que é
o infinito?
Só posso
mostrar-lho:
— O infinito
tenha piedade de mim, e reze.
IV
Olhei profundamente o chão,
na noite, com a mesma expressão de olhar que erguera para o céu; e sob o labéu
de feio na sua boca de sapo, descobri um ser de natureza tocante, de aspecto
vulnerável e bizarro, em que cada feição me atraía o afecto e o amor. «Ele é
assim, infinitamente belo, através de uma outra percepção do Universo», pensei.
«Mas não estás no bom caminho», fiz-lhe sentir, com a rapidez indizível da comunicação
directa. «Vou pôr-te no bom caminho, pois eu tenho braços, e posso proteger-te
do meu falcão.»
Tendo uma certa relutância,
por causa da pele viscosa, em pegar directamente no sapo fulgurante, envolvi-o
na minha camisola, e pu-lo ao abrigo do olhar de Aramis.
A noite passava, profunda,
pelo mundo,
e roubava as almas que amavam o livro de imagens, desde o princípio
dos sapos, e das constelações postas sob a protecção de um animal. A Ursa caminha no céu, um sapo dera-me o privilégio de eu lhe pegar, a manhã estava por servir.
Epílogo
Eu sentei-me aqui para
tentar modificar uma ideia principal modulando-a por ideias acessórias. Dispus
de um ambiente, incluindo a música que fazia, como um primeiro degrau; depois,
subir é fácil, há sempre um terreno superior aos que nos encerravam; há um
intervalo, e eu parto para outro texto com os componentes passados desta luz.
[...]
Eu ando a pé: penso com
maior velocidade.
Colares,
3 de Dezembro de 1990
14.
UM BEIJO DADO MAIS TARDE
a)
Fiz interpenetrar as duas
casas, a que vive comigo, e a que jazia na Domingos Sequeira, com os seus
restos, e cinzas de melancolia.
Esta é a
história de uma família ambiciosa e fechada, vinda da Beira para um andar
mítico na cidade, onde se propôs subir a um alto ramo de árvore. Um divórcio. Uma noite de chuva em que se fez, a correr, uma mudança
de domicílio. Um filho que protegia do Pai a mãe, e que era a parte mais
enigmática do vermelho adamascado que se usava na sala. Uma sala abrindo para
um escritório, e uma criança abraçada aos livros debaixo da sombra de uma
criada; uma criada com um filho próprio, desaparecido nas masmorras da casa —
contrária à mulher que legitimamente lhe sucedera — e, para todo o sempre, fiel
à última criança que a casa teve, e que era fruto da parte verde, fonte da
casa;
todos morrem, trocando o
instinto da morte pela noite de Natal; mas há sempre um triângulo visível junto
à porta da sala de jantar – a criada, um homem novo, e a mulher legítima;
a criada é a jovem, mais
tarde possuidora da ciência de inumar os objectos e de solicitar para eles,
durante longo tempo, o banho lustral da água, e a sujidade protectora da lama.
Paradoxalmente, os objectos são conservados entre a linha da linguagem e, mais
longe, a praia calma da destruição. Só e Maravilha está então comigo, e
foge de mim. É um objecto que, posto numa sala, a esvazia completamente. Mas
não é luz. Nem quadro, ou moldura,
suspenso no silêncio. É talvez o fragmento de um livro numa primeira matéria
dura e imóvel. […]
b)
A estátua de Ana
ensinando a ler a Myriam estava no seu lugar, sobre a mesa, mas tornara-se
um espelho visionário reflectido no espelho do guarda-fato. O livro, amplificado entre ambas, atraiu Filipe e a Maria Adélia, por
razões diferentes, para cada lado do que estava inerte como texto; o homem
pousou a cabeça entre as mãos, e viu oscilar, diante de seus olhos verdes,
linhas sem sentido que o desesperavam, pois sabia ler __________ e não sabia ler
aquele caminho;
a amante fiel, analfabeta, tocou com a ponta de um pano a fonte
que estava próxima, e inclinou-se para limpar, até reluzirem, as letras do
título de ouro que ocultava o caminho. Eu senti uma dor aguda, e todos fomos
separados, incluindo Bela Face, ainda por criar. «O vislumbre dos corpos», leu
Myriam, «foi interceptado por múltiplas poeiras que mantêm, na aparência de
construída, a casa desfeita».
15.
HÖLDER, DE HÖLDERLIN
I
___________ Hölderlin sentou-se
silencioso à minha frente que sou casa — não disse nada — mas eu conhecia quais
eram os seus verdadeiros pensamentos pela inconstância do seu olhar [...]
Ao som de «natureza» ouviu
o gemido de um cavalo atravessar os ares, e o último mensageiro — o das dez horas
—, pedir uma cerveja, e deitar a carta no cesto de pão que estava sobre a
pedra.
«Agora pergunto-te,
dizia a carta,
os deuses da Grécia
morreram?».
Era a forma de afirmar,
perguntando, que os deuses da Grécia morreram. «Sim, morreram», comprovou
Hölderlin, sabendo o que lera. «E eu, suspirou, como viver sem essa diferença
entre os deuses e os homens?». Olhou para mim que avaliou, ao longe, incapaz de
renovação, e sem luzes; avançou para as minhas janelas com uma hesitação que se
ia multiplicando; procurou-me a porta, e não encontrou nenhum sentido.
«Será que o
Cristo apagou os deuses, e dividiu em miríades de luzes dispersas o meu
espírito?».
Alguém — que sou eu —,
estava a meio da porta e o recebeu com um abraço universalmente verdadeiro.
VIII
_______________ todos os dias
tinha uma energia brilhante em que falava com Myriam, Joshua, Giordano. Era-lhe
necessário vencer um obstáculo, pegar num grande peso arrastar, vergar qualquer
ideia ao seu sentimento interior (ainda não manchado). Neste processo de
transformação vibrante da sua própria pele, a claridade, o tempo, o cheiro de
pinheiros que todos respiravam era, essencialmente, brisa e método. [...]
Não suporta que haja
espelhos na casa; pôs-se a fazer aparecer verbalmente figuras luminosas sobre
as suas próprias espáduas, e deixou-se ir vogando sobre mim apertando o
cabelo sobre a nuca. O cabelo que ninguém corta traz uma liberdade infinita aos
ombros — e o homem desmultiplicado dorme.
Hoje, alguém procurou
Myriam: — Há aqui um saber perdido?
— É uma visão comovente de Hölderlin – respondeu ela...
X
Hölderlin brincava ali,
saltando; ia-se perdendo na sala; via-se deslizar com ele um lugar sem
criaturas humanas. [...]
A excitação sexual foi-se
marcando em todos, em torno do pobre tonto. Nenhuma lama se transformara em pássaro.
Nessa situação de desejo sensual profundo, Giordano Bruno acabara de entrar.
Teria dito
o que é escabroso no amor é que não tem anel; mas nada disse,
nos seus pulmões o ar parecia penetrar por meio de uma bomba
e todas as outras
imagens
haviam
sido,
longe,
hermeticamente fechadas. Até hoje.
Körtemberg,
23 de Junho de 1985
16. O ENCONTRO INESPERADO DO DIVERSO
Este é, Eleanora, o modo
abstracto-experimental de formular a emergência dessa quase-figura. Dir-te-ei o
que vi.
Nessa manhã, atingiu-se o
fim de um andamento, e Infausta sentou-se à mesa de trabalho de Aossê, sem
cruzar os olhos com o ramo da língua que lhe trazia a poesia. A uma certa
distância da partitura, fazia-se sentir um pedido insistente que eu via sob a
forma de um volume evanescente e sólido que ritmadamente se abria e se fechava,
porque eu sei que a música é uma parte do espaço organizada por um pulsar
vibrante. Infausta também a viu, mas como opala leitosa e azulada, ou uma irmã
rival de vegetação herbácea, e fechou os olhos, numa atitude distante.
Aossê
continuava a escrever à máquina, ouvindo, ao lado, Bach tocar cravo. [...]
Aossê começou a sentir-se
irrequieto, no difícil acabamento do poema iniciado — quando só há poema, se
fechado. A quase-figura mostrava uma crescente facilidade de deslizamento, e já
se lhe desenhava volúpia nos contornos, mas não sabia o que era seduzir, ter
paixão, instintos e sentimentos. Era um neutro, desprovido de sexo e de humano.
[...]
Suspendo a construção deste
texto porque todos os fragmentos que o compõem são, de facto, um Diário; escritos
nas datas que indico e que escrevi em paralelo com livros que, na altura,
estava escrevendo; no entanto, o texto que aqui resulta não é um diário.
Faço-o por vontade própria,
e compelida.
Por vontade própria, seria
um diário como Um Falcão no Punho; por compulsão, aparece outra
forma de texto, próximo de Um Beijo Dado Mais Tarde e que, no tom,
prepara Lisboaleipzig, que eu prossigo há anos.
Como se eu investigasse, no
dia a dia de outrora, um fio condutor, correspondências temáticas e de
preocupação, sob a forma geral da partida e da mudança: saída de Jodoigne para
Herbais, e desta para Colares, e entrada em Portugal, após vinte anos. Ao reler-me,
porém, essas passagens-metamorfose revelaram-me que Jodoigne foi a casa das
beguinas, que Herbais foi o lugar de encontro de Infausta, de Aossê e de Bach,
e que em Colares acabaram por encontrar-se os membros dispersos da comunidade,
nos seus extractos de época, distintos, idênticos e evolutivos.
E, o mais curioso, é que me
encontro face a um texto que não pressentira — porque não me dera conta de
quando queriam encontrar-se, enfim, os membros — visíveis e invisíveis — dessa
comunidade.
17.
O ENSAIO DE MÚSICA
Aossê dizia a
Bach que a poesia está no centro. Bach, habituado a servir-se do texto como
suporte, discordava, salvo num sentido muito lato de poesia.
O que Aossê lhe queria
dizer é que o interior é poético, construído como uma espécie de poesia branca,
caótica (Bach concordava que olhar para dentro era penoso, embora
soubesse que o belo vinha de dentro, mas do interior alto desse
espaço, emanando de uma espécie de névoa de oiro, a que a sua piedade
chamava espírito). Aossê não partilhava a ideia dessa arquitectura.
Falava-lhe em revoadas de pensamentos, de sentimentos em estado de expressão
livre, de visões.
O texto inquietava-se.
Era um facto que havia ali
um diálogo íntimo que se difundia (ou seria difuso?), misturando-se com as
conversas que se cruzavam. Aossê repetia que a poesia ocupa o centro do corpo,
mas uma voz triste levantava tristeza num daqueles corpos,
a que alguém, ou corpo, ou
interior, respondia: deixei de correr, de saltar obstáculos. Outra voz
(porque só se distinguiam pelos timbres) perguntava porquê? Mas não era
disto que Aossê estava a falar. Explicava que existe uma tessitura interior —
de cada um, e de todos, e de ninguém. Que os fios desse tecido emaranhado são
frases espalhadas. Bach respondia-lhe que o nosso interior era um único, que
cada um tinha o seu interior, apesar de todos serem feitos da mesma matéria —
som bruto e oração —, ao que Aossê contrapunha que talvez não, ou não bem desse
modo, porque no interior havia choque de frases, frases em velocidade ou
algumas mortas, mas que ruído não havia. E que oração talvez houvesse, pois
era assim que, na sua língua, se dizia frase (Bach sorriu com ironia) e que, se
ele quisesse, diria que o interior era um tecido esparso e incompleto de
orações a que a voz conferia sonoridade.
Ouvia-se outra voz que
dizia o esplendor lascivo (em si) não determinará mais, daqui para a frente,
a intensidade máxima dos meus actos. Seria a sombra das sombras
ao que Johann contrapunha que era defeito dos
literatos porem defeitos em tudo. Que na origem mas Aossê explicava que o espaço
interior não era originário, e que a poesia não era todo esse espaço. Que era o
que havia de sublime nesse interior. O resto, insistia, pertencia ao romance Bach desconhecia realmente o que era o
romance E Aossê apressou-se a
explicar-lhe: «é uma história iluminada sem luz».
(Fotos: Teresa Huertas e João Barrento)