27.11.15

LLANSOL NA CASA FERNANDO PESSOA:
SOB O SIGNO DO AZUL


Neste dia, faz hoje 84 anos, nascia bem perto do lugar onde nos encontramos, aqui em Campo de Ourique, Maria Gabriela Llansol. E num outro, há 21 anos (em 18 de Julho de 1994), estava Maria Gabriela Llansol nesta Casa para a apresentação do seu primeiro grande livro pessoano, Lisboaleipzig, por Eduardo Prado Coelho.
Para ir ao encontro do título do Livro de Horas que hoje apresentamos – O Azul Imperfeito –, e porque imagino que o azul será a cor do «final feliz» de que Llansol anda à procura quando traz Pessoa para o seu texto, em O Ensaio de Música, penso que o azul poderá ser visto como a cor deste dia do seu nascimento. Mas também Pessoa é por excelência o poeta da im-perfeição e da nostalgia de um certo azul, se este pudesse ser uma «consciência azul» que funcionaria nele como contraponto do «azul que pertence ao céu», de Llansol (LHV, p. 301).
O azul é em Llansol metáfora, ou imagem, de uma completude ou perfeição que não exige explicação («O azul é o sinal da esfera terrestre»), uma cor e um lugar que anulam as tensões do ser (ninguém questiona o miosótis pelo seu azul, o azul não tem origem, etc.) – o azul é aquilo que é, como o deus de Israel, e nessa sua quietude de ser é in-questionável. É assim em geral, desde a Bíblia, passando por muita pintura, de Giotto a Yves Klein e Almada, e muita literatura e poesia em que o azul é por excelência o objecto da nostalgia do intocável e acabado - em Hölderlin ("In lieblicher Bläue"/ "Em azul ameno") ou em  Novalis (na simbologia da Flor Azul), também em Llansol, como «figura de contemplação» (LHV, p. 360).
Ao introduzir, com a adjectivação de «imperfeito» (intrínseca à essência da aventura pessoana, e também llansoliana), aquele leve tremor na intangibilidade soberana do azul (tão mais própria do universo da música de Bach), Llansol põe também desde logo em cena o núcleo figural mais relevante deste projecto, a dupla Pessoa-Bach, a poesia (moderna e problemática) e a música (intemporal e quase divina).

Se a sala dos Bach em Leipzig é «um infinito azul» (LHV, p. 274), cada quarto alugado de Pessoa em Lisboa é o espaço cinzento e fechado de um ajudante de guarda-livros sonhando com o azul, na plena consciência de nunca o alcançar (em certos momentos, ele parece estar do outro lado do muro,  ou da janela aberta, no Esteves que sai da tabacaria –  mas esse será, ainda assim, um azul baço, «sem metafísica», apenas de «coisa real por fora» e não o do «sonho, como coisa real por dentro»).
Voltando a este dia 24: nós sabemos exactamente onde a Maria Gabriela nasceu, aqui em Campo de Ourique (na Rua Azedo Gneco, mas passando a viver, ainda muito pequena, na Domingos Sequeira): poderia ainda ter-se cruzado com Fernando Pessoa, ao colo da Maria Amélia, ou já andando por seu pé, a caminho da casa da «Avó Azul» (!), como chama áquela que vivia também na Rua Domingos Sequeira, um pouco acima da dos pais.
Mas com Llansol sabemos também que se pode nascer em qualquer lugar, e como que «sem origem», como ela diz do azul numa breve gravação que iremos ouvir a seguir. De facto, como também Nietzsche, e talvez Pessoa, sabiam, não é a origem genealógica que mais importa, mas aquela que se escolhe. Para Pessoa, Llansol encontra uma outra em Leipzig, fazendo-o renascer aí; para si própria escolhe várias, por exemplo a de nascer «no decurso da leitura silenciosa de um poema», «na sequência de um ritmo», como lemos no início de um dos seus livros. Ou aquela outra que deriva do que, em Amigo e Amiga, designa de «operação do azul», que é aí a cor do trabalho de luto que consiste em ser capaz de apagar «o negrume da noite» para deixar surgir «o fulgor que há nas coisas». Que será certamente azul. Penso que isto é audível na voz da Maria Gabriela, no excerto de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, que ouvimos neste vídeo que hoje aqui trazemos de novo. É um modo, entre outros, de evocarmos a sua memória, ainda sob o signo do azul.
João Barrento







[Foto: Maria Etelvina Santos]

Maria Etelvina Santos
  
Uma outra percepção de elos e de relações

O conjunto de inéditos de Maria Gabriela Llansol que constitui este Livro de Horas V, O Azul Imperfeito, reúne (como indicado em subtítulo) todos os textos que, redigidos entre 1976 e 2006, surgem associados ao «Projecto Lisboaleipzig», onde é central a figura do poeta Pessoa, juntamente com a do músico Bach e a do filósofo Spinoza.
Devo salientar, como ponto prévio, que esta apresentação não incidirá, pela sua necessária brevidade, em aspectos de ordem processual que se prendem com critérios de selecção do corpus final deste livro, ou de inclusão de notas e de remissões, aspectos todos eles explicitados na respectiva introdução ao volume; excluo também a referência às diferentes tramas narrativas que, embora protagonizadas por Pessoa na figura de Aossê, estão largamente desenvolvidas em livros como Lisboaleipzig, Um Falcão no Punho, Um Beijo Dado Mais Tarde, Onde Vais Drama-Poesia? ou O Senhor de Herbais, para referir apenas alguns, pois dos cerca de trinta livros publicados por Llansol, metade incluem Pessoa-Aossê como figura. Procurarei, antes, seguir duas linhas de leitura em constante diálogo que, estando presentes nos livros editados por Llansol, se acentuam e esclarecem com a publicação destes inéditos: uma que tenta perceber o que em Pessoa motivou Llansol, a ponto de se fazer acompanhar e dar testemunho da presença do poeta ao longo de trinta anos de escrita; e outra que procura mostrar como através da transformação de Pessoa na figura de Aossê, e tomando esta recolha como paradigma do gesto literário e da oficina de escrita de Llansol, podemos observar temáticas recorrentes e programáticas do seu texto.
[Foto: Mónica Almeida/CFP]
I.
Dar conta do imenso rio subterrâneo que corre paralelo ao rio da escrita que vai sendo dada à estampa, observar textos que partem e textos que ficam, apela a uma leitura articulada com os diferentes livros, o que, no caso de Llansol, contribui significativamente para irmos completando as múltiplas constelações figurais que constituem o seu texto. Na primeira página do livro Causa Amante, Llansol dá uma imagem que nos legitima a seguir este modo de ler, cruzando os textos dos livros com os textos dos diários manuscritos. Fala do seu jardim da casa de Herbais coberto de neve, ocultando os arbustos, e completa: «como se a estrutura dos arbustos e os relevos que sustentam a neve fossem o meu diário, e a neve total que os cobre, os meus livros, desde o livro das comunidades». Noutro momento, evoca a figura de Coração do Urso, o que protege os livros por dentro, como sendo «o companheiro permanente da espera». É essa relação dos textos dos diários como textos em espera, que é significativa no caso de Llansol (como também aconteceu com Pessoa, embora por diferentes caminhos). Os inúmeros inéditos que percorrem as páginas dos diários de Llansol não ficavam esquecidos nos cadernos manuscritos depois da publicação dos respectivos livros, ficavam à espera que as figuras os chamassem a novos livros, o que recorrentemente acontecia. Por isso a sua obra é um texto contínuo, por isso os dois planos dos textos éditos e inéditos podem, com legitimidade, ser cruzados ininterruptamente, de modo a completar ideias retomadas. Cabe ao leitor a multiplicidade das leituras. Quanto a nós, o que podemos continuar a fazer é apenas ir contribuindo para desenhar o imenso mapa da escrita llansoliana, édita e inédita, e é tarefa para muitos anos. 
Tratando-se, no caso deste Livro de Horas V, de um volume de inéditos reunidos cronologicamente, não existindo nele a organicidade dos diferentes fios narrativos que, não sendo embora apanágio do texto de Llansol, está presente nos livros publicados pela sua mão, ainda assim, podemos ver nele os mesmos módulos de pensamento que, como nos livros editados, viajam ao sabor e pelo saber das horas e dos dias, interligando-se, acrescentando, desdobrando e amplificando possibilidades textuais geradoras de novos pensamentos criadores ou de diferentes modos de fazer mundos.
Num texto agora editado, com data de 10 de Junho de 1983, com o título «Os trinta últimos momentos de Aossê», Llansol parece sintetizar o modo como leu o poeta Pessoa, que afirma pela voz de Aossê: «todas as minhas camadas foram quebradas no combate, deixo um rasto que se assemelha a um grupo disperso de plantas fósseis, e aponta ao meu coração que não cessa, com uma corda, de dar pancadas no meu corpo; [...] deixo de sentir a fadiga dos meus vários nomes; [...] estou só na minha sombra, sou o superlativo absoluto simples, ou a verdadeira causa de exceptuar».
E continuo, com um excerto do dia 11 de Julho de 1983: «Bach [...] era o guardião da sua vida naquele momento, que fechara, não metaforicamente, a porta para onde a morte o queria levar. Porque Aossê devia viver mais do que os seus quarenta e cinco anos já vividos – desse a morte por onde desse. E [...] a partir daí, seus animais descalços e taciturnos, a que chamavam heterónimos, haviam de ser domados e repletos da unidade de Aossê».
É este o Pessoa de Llansol, transmudado na figura de Aossê, a caminho de uma unidade perdida em Lisboa e recuperável em Leipzig. Enumero apenas algumas das linhas recorrentes da sua transmutação, que com este Livro de Horas V se clarificam:
Na página de rosto da sua edição do Livro do Desassossego, Llansol enuncia:
            «Bach organiza Pessoa / Pessoa caotização de Bach».
            «Gostava de exprimir a parte de felicidade que ele não teve».
Com base neste enunciado, iremos assistir à criação de figuras femininas necessárias à realização deste propósito. Refiro duas: Anna Magdalena Bach, a mulher-mãe, a que representa o amor na casa dos Bach, a mulher que faltou a Pessoa, ela ou Elizabeth, a filha do casal Bach, que se apaixonará por Aossê; e Infausta, por vezes nomeada como o heterónimo feminino de Aossê, noutras surgindo como narradora ou «a chave da porta»; Infausta que nestes inéditos dá a ver o imenso percurso que está por detrás do seu nome, desde Infalsa a Infausta, ela que começou por ser Florbela e Mansuetude. É talvez das figuras que mais se completa com a edição deste volume de inéditos.
Outra linha recorrente prende-se com a ideia de casa, com tudo o que ela pressupõe: a casa única, desejada, que Pessoa não teve, apesar das muitas por onde passou, e que Aossê encontra em Leipzig na família Bach. E que é também a casa onde a música se ouve, dentro e fora, até ao canto de Anna Magdalena. Casa onde Aossê será recebido, como hóspede e peregrino, ele «o poeta estrangeiro» – casa que lembra a da infância perdida, a do Largo de São Carlos, com a música por perto.
Também o desejo de viagem é uma constante em Pessoa e na sua transformação nos textos de Llansol: «Ir pelo mundo teria sido a alegria inteira de Aossê», diz-se em 11 de Janeiro de 1983.
E também a cidade como lugar de encontros ou da falta deles, a Lisboa de Pessoa, cidade que reprime, cinzenta e de vontades sempre adiadas. A Lisboa que se transforma em Lisboaleipzig, não a cidade inventada, não como lugar geográfico, mas como lugar textual, o lugar da «efectivação do possível».
Refiro apenas mais uma linha de leitura que com este Livro de Horas V se amplifica: a da intertextualidade dos textos de Llansol e Pessoa, principalmente de Alberto Caeiro e Bernardo Soares, com muitas citações explícitas de «O Guardador de Rebanhos»  e do Livro do Desassossego.
[Foto: Mónica Almeida/CFP]
II.
Os novos mundos possíveis que o texto põe em prática, como o que resulta do encontro entre os Bach, Aossê, Infausta e Baruch Spinoza, são, no dizer de Llansol, «fascinantes e incómodos, aparentemente utópicos» porque parecem nascer só da linguagem, parecem vir do nada, mas «existem, são futuros», como refere no livro O Senhor de Herbais. Nesta frase gramaticalmente paradoxal – «existem, são futuros» reside um dos motores da escrita de Llansol, para o qual convoca Fernando Pessoa e a leitura que dele faz, para depois deixar a quem lê a tarefa de saber dar força e pujança ao não-evidente e, de modo similar, reconhecer o que dizem os autores que não são do seu próprio tempo, os póstumos, os intempestivos, que generosamente nos retiram o tapete do «horizonte de expectativa»  em que nos sentamos.
Neste sentido, falando de Maria Gabriela Llansol estamos também a falar de Fernando Pessoa, de Emily Dickinson, de Rilke ou de Hölderlin, daqueles que propondo-nos um «pacto de inconforto», negando-nos a certeza de um sentido, nos oferecem, à deriva de protocolos de leitura, a intensidade do acto de ler e a possibilidade de criar pensamento. Com eles aprendemos que é pelo desassossego e no jogo do intenso que o vislumbre acontece. E a leitura, como da escrita diz Llansol n’ O Livro das Comunidades, vislumbra, não presta para consignar.
Como no caso do vislumbre, o reflexo de luz que antecipa, também no texto llansoliano o carácter fragmentário e aparentemente des-ordenado, acentrado face a uma condição narrativa, antecipa e produz núcleos de significação ou cenas irradiantes, geradoras de intensidades dramáticas que põem em acção outras viabilidades de sentido e, consequentemente, uma outra percepção de elos e de relações. Dizer isto da escrita de Llansol é dizer o mesmo de Pessoa face à sua condição poética: a mesma intensidade dramática, o mesmo carácter fragmentário, a mesma infinitude compósita. Em ambos a capacidade modular e antecipatória de contribuir, ainda que de modo diferido, para a efectivação do possível. Em ambos a condição fragmentária não se fixa, aspira ao movimento, exactamente para que o sentido, sendo também mutante, continue a proporcionar o vislumbre.
É da «imensa fragmentação que Pessoa deixou escrita», e do vislumbre dessa leitura, que emerge o enorme potencial que Llansol viu nele. Pessoa que não será personagem de romance, porque para Llansol o potencial que, como outros ele oferece, está para além do ficcionável. Por isso o texto llansoliano, como sabemos, não cria indivíduos-personagens, mas módulos transitáveis de energia, figuras de «recomeço de novos ciclos de pensamento e de formas de viver», como se diz em Um Falcão no Punho (FP: 97). Não personagens, não heterónimos, como o poeta antecipou, mas figuras, para que, destituídas de psicologia, possam suscitar novas formas de pensar o humano.
É esta a força projectiva do texto de Llansol, para o qual convoca Pessoa – «conceber um mundo humano que aqui viva», sendo que o humano precisa de ser redefinido (e hoje de modo ainda mais premente). Alargar a noção de humano ao vivo da espécie terrestre, como Llansol propõe, deverá ser o contrato a estabelecer com o mundo. Efectivar essa possibilidade, ainda que como linha do horizonte, é tarefa para inúmeras gerações; primeiro recuperando vestígios, depois, sobre esta terra (que outra não temos) ensaiar poeticamente novas humanidades, leia-se, pôr a agir de outro modo, fazer ser novas formas de humano. Pessoa mostrava-se capaz da tarefa, mas num país adiado.
Llansol vai ensaiar, com Pessoa e através dele (com a ajuda de Bach e de Spinoza), esse contrato que implica redefinir o humano, ao alargá-lo a todo o vivo e ao fazê-lo evoluir através de várias humanidades, das quais a bi-humanidade de Aossê, narrada em Lisboaleipzig, será a primeira, não sob a forma do hermafrodita (pelo regresso a uma mítica origem perdida), mas sob a forma do híbrido que pertence a uma geração sem-nome, capaz de mutação, e que seja sinal da evolução da espécie. A figura do híbrido, explicitada mais concretamente num livro como Parasceve, publicado em 2001, está presente no «projecto Lisboaleipzig» através da figura do falcão, gerado por Aossê,  anunciando o híbrido de um homem novo com olhos de falcão. Mas é preciso pensar esta imagem quimérica, a do novo ser, para além do fabuloso: se Llansol atribui a Pessoa-Aossê a capacidade de gerar um homem com olhos de falcão, habitante dos ares, é para lhe retirar a «projecção maiúscula» que lhe atribuímos como poeta-pátrio onde o enredámos, e pondo ênfase no uso da retina tentar chegar à Índia por outra via, abordar o Oriente de outra perspectiva, ou seja, definir outros métodos ou caminhos para o humano, fora da esfera do poder e do lucro, construindo através do falcão Aossê «uma nova arquitectura para a aventura da água». Tentar perceber, não historica mas esteticamente, como se desconstrõe o «paradigma da água», símbolo da nossa ideia viciada de glória. O ar será um meio mais propício a Aossê, e a música de Bach a possibilidade dessa elevação.
Se «os limites da espécie humana não são conhecidos», e não é só Llansol que o diz, ensaiar a leitura do encontro entre o poeta Pessoa e o músico Bach, submetendo-os ao pensamento de Spinoza, pode provocar uma mudança de escala: pode, por exemplo, relançar o pensamento sobre a glória de Deus na música de Bach, sobre a postura de poeta-pátrio em Pessoa, ou sobre o nome do atributo escondido na Ética de Spinoza; isto, e muito mais, se nos apercebermos da «complexidade inextricável» desse encontro, escovando a História a contrapêlo, como propunha Walter Benjamin, ou submetendo os textos a pontos de vista desconstrucionistas, como tão bem entendeu Derrida, que teria tido no texto llansoliano um gratificante campo de leitura.
Bach arranca Pessoa da «ínfima escala» em que este se encontra como poeta-pátrio, se conseguirmos ler nessa imagem uma mudança de paradigma, a da substituição do conceito de pátria pelo de comunidade, aliás mais conforme ao desejo de Pessoa, como tantas vezes enunciou, de contribuir «para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade», como refere, logo em 1915, numa carta a Armando Côrtes-Rodrigues.
Que potencial de leitura se esconde nos inúmeros planos deixados por Pessoa! Quantas humanidades subterrâneas e encontros possíveis não chegaram ainda a acontecer, quantas possibilidades, para além do jogo heteronímico, foram já soterradas pela leitura dispersiva dos seus nomes!
Não faço juízos de valor. É verdade que cabe à crítica a difícil tarefa de consignar, não tanto a de vislumbrar, mas cabe às escolas de saber livre (modo como António José Saraiva, em tempos, se referia às universidades) ensaiar novos modos de ler os grandes textos (para que não corram o risco de cair em estereótipos canónicos e leituras feitas), porque é no vislumbre que se ensaia o jogo do possível, e é para efectivar o possível que eles foram escritos. Descobrir-lhes as potencialidades e os vestígios que deixaram é o que nos permite (ou não) prolongá-los numa «sobrevida» operante que formule, hoje, novos modos de pensar a nossa condição no mundo, porque como póstumos eles estavam já a ler e a escrever estes nossos dias futuros.
A edição de textos inéditos, em autores multímodos e de uma complexidade tão abrangente em termos fragmentários, como Pessoa ou Llansol, pode ser particularmente elucidativa por potenciar linhas de pensamento que, por vezes, extravasam os domínios circunscritos à publicação dos textos editados. Pessoa porque quase nada publicou em livro, Llansol porque deixou, para além dos livros, um imenso espólio inédito – «restos que se revoltam», assim lhe chamou, porque reunem a força de um dia serem chamados a efectivar o possível.

III.
Uma última palavra para o título deste Livro de Horas V, O Azul Imperfeito, anotado num inédito como título para o terceiro volume de Lisboaleipzig que, previsivelmente, seria uma obra em seis ou sete volumes, o que justifica o imenso material que permaneceu inédito. Também a ele me refiro na introdução. Gostaria agora de lembrar apenas o vocábulo «imperfeito» – não o seu significado imediato, mas a forma verbal que ele enuncia, a do ainda-não concluído, a que possibilita que a acção verbal continue, a que está em processo de, à espera como os inéditos, na iminência de acontecer. Este modo imperfeito de ser é o que melhor serve à leitura do fragmento, mas pode também ser uma escolha, a decisão de um modo de ler. Relembro um parágrafo escrito por Llansol no pequeno livro Amar um Cão: «Uma frase lida destacadamente, aproximada de outra que talvez lhe correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo. Eu não consigo abranger a infinitude do número e da harmonia das almas, nem o texto de um verdadeiro livro, nem a terra de um jardim que se mantém há gerações».
Resta-nos o imperfeito e a tarefa infinita da leitura. Mas podemos escolher o lugar ou ponto de vista onde nos situamos face ao mundo: não o aceitando sem ter de o recusar, escolha-se o alpendre do mundo. A partir daí, vislumbrar a terra azul como o infinitamente grande, ou procurar no infinitamente pequeno o que eternamente vive 
na flor azul de Novalis,
ou no azul imperfeito de Llansol.


Na sessão de apresentação do novo Livro de Horas participaram ainda:
Diogo Dória e Raquel Mendes, que leram excertos de O Azul Imperfeito.

[Fotos: Mónica Almeida/CFP]

O violoncelista Nelson Ferreira, que executou três peças para violoncelo:
João Madureira, Inscrição para violoncelo (inspirada no texto de Llansol)
J. S. Bach, Prelúdios das suites para violoncelo # 1 e 2.
[Foto: Mónica Almeida/CFP]
[Foto: Helena Alves]