LISBOALEIPZIG:
O LANÇAMENTO
Apresentámos ontem, na Livraria Assírio & Alvim do Chiado, em Lisboa, a nova edição de Lisboaleipzig, num volume em que o texto vem acompanhado de 32 xilogravuras de Ilda David' (a totalidade de gravuras criadas pela artista, em número superior a 100, será mostrada na grande exposição do «Centro Internacional das Artes José de Guimarães», que inaugura a 26 de Julho próximo na cidade de Guimarães).
Este livro é mais uma das muitas edições que o Espaço Llansol tem vindo a realizar com diversos editores nacionais e estrangeiros, numa actividade paralela à do tratamento do espólio de Maria Gabriela Llansol e da divulgação da sua Obra pelos mais diversos meios, agora em particular com as sessões regulares do espaço que designámos de «Letra E», em Sintra.
Esta nova reedição fez-nos olhar para os últimos seis anos, os que passaram desde que a Maria Gabriela nos deixou, e para o muito que tem acontecido no campo da edição, reedição e tradução de obras suas, e também de livros sobre a sua escrita e o seu universo. O balanço – sem contar com os muitos textos inéditos que vimos dando a conhecer regularmante em revistas (portuguesas, brasileiras, francesas, espanholas, catalãs..., em suporte de papel e online) e nos «Cadernos da Letra E» que nós próprios editamos – é deveras impressionante, e faz da Obra de Llansol uma das mais editadas, traduzidas e comentadas actualmente no espaço literário português (com permanentes prolongamentos no estrangeiro). Contando com as novas edições em andamento, no final deste ano teremos um total de 36 livros publicados por nossa iniciativa e com a nossa intervenção directa, assim distribuídos:
Edições:
- 4 Livros de Horas (Assírio & Alvim)
- Uma tradução de M. G. Llansol (de Pierre Loüys, Relógio d'Água)
Reedições:
- 3 Diários, com um volume de Entrevistas (Editora Autêntica, Belo Horizonte)
- Um Beijo Dado Mais Tarde e a primeira trilogia, «Geografia de Rebeldes» (7 Letras, Rio de Janeiro)
- Lisboaleipzig (Assírio & Alvim)
Traduções:
- 5 livros em francês (quatro na editora Pagine d'arte e um na Les Arêtes)
- 2 livros em italiano (Pagine d'arte, contando já com a Antologia de Textos escolhidos de Llansol, em preparação)
- 3 livros em alemão (2 volumes de Lisboaleipzig, na Leipziger Literaturverlag; e o Almanaque Llansol na Berlin-Press)
- 3 livros em castelhano (a primeira trilogia, a sair brevemente na Editora Cinca, de Madrid)
- 1 livro em inglês (O Livro das Comunidades, já traduzido e revisto, para a Ugly Duckling Press, de Nova Iorque)
Sobre a Obra de Llansol:
- Europa em Sobreimpressão: Llansol e as dobras da História (Assírio & Alvim e Espaço LLansol)
- 8 volumes da colecção «Rio da Escrita», na editora Mariposa Azual
- 1 Caderno de Leituras (Llansol na crítica) (Mariposa Azual)
E ainda dois volumes colectivos, realizados com a nossa colaboração e publicados por duas editoras universitárias brasileiras: Um Nome de Fulgor, organizado por Maria Lúcia W. de Oliveira para a Editora da Universidade Federal Fluminense; e Partilha do Incomum, organizado por Maria Carolina Fenati para a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Este é apenas um preâmbulo à matéria mais importante no dia de ontem, a apresentação da nova edição por Maria Etelvina Santos, cujo texto aqui deixamos:
No regresso de Lisboaleipzig
Aos leitores dos meus textos:
Há anos que escrevo Lisboaleipzig.
Inicialmente pensei que seria um livro de um único volume. Com o tempo,
apercebi-me de que seria um livro em vários volumes (...). Achei oportuno publicar,
no mesmo volume, textos dispersos que escrevi, ao longo dos anos, e com os quais
procurei esclarecer-me sobre o sentido da minha escrita.
(Maria Gabriela Llansol (folha-convite para a apresentação de Lisboaleipzig, em Julho de 1994)
Em 18 de Julho de 1994 – há precisamente vinte anos –
Eduardo Prado Coelho apresentava na Casa Fernando Pessoa a primeira edição de Lisboaleipzig (nas Edições Rolim), nesse
dia apenas o primeiro volume, ao qual se juntaria um segundo ainda antes do
final desse ano.
É para mim muito
comovente estar hoje aqui, com este livro inteiro na minha mão, assistindo ao
encontro de três partes de uma mesma vontade: reunidos os dois volumes da
edição anterior com as xilogravuras de Ilda David’. É um encontro do diverso,
mas esperado, pelo menos por nós e pela Maria Gabriela Llansol que tanto
desejou esta edição como ela agora se apresenta. Estamos perante um objecto
belo, no sentido em que o belo é definido neste livro: «salvo de qualquer embelezamento, para
lá de toda a estética, e firmemente empenhado no corpo e no afecto».
Agradeço a todos os que
possibilitaram a realização deste livro, e dedico
esta apresentação à memória de Eduardo Prado Coelho.
1.
Falar
deste livro de Maria Gabriela Llansol é como falar de toda a sua Obra, de um
livro único onde podemos ler o registo – em múltiplos planos sobreimpressos,
mas translúcidos – do percurso de quase todas as figuras que habitam os seus
livros (aqui trazidos pelas vozes de um poeta – Pessoa, transfigurado em Aossê
–, de um músico, Bach, e de um homem de pensamento, o filósofo Spinoza); mas é
também o registo da problemática presente em toda a obra de Llansol – a procura
das fontes da alegria – e ainda (o que pode ser mais inesperado) o registo, sob
o modo de «ensaio-diário», de textos onde, como afirma, procurou esclarecer-se
sobre o sentido da sua escrita.
Llansol
traz para os seus textos duas constatações.
A de
que a realidade é um contínuo, não um encadeamento de causas e efeitos; porque
o que existe, existe em correspondências, «em evolução e oscilação permanentes»
[entrevista a António Guerreiro, em 1991]. É deste modo que apresenta a
realidade nos seus textos, e por isso eles pressupõem um «pacto de inconforto»
com o leitor, que aceita ou recusa ler através dessa descontinuidade.
E
constata também, como nos diz, que «faz sofrer viver sem certezas, mas que
aqueles que devem viver sem elas têm a possibilidade de criar “outros
possíveis” que serão outros mundos, se a linguagem os fizer e o corpo os puder
tornar viáveis; e não haverá mundo se no seu centro irradiante estiver ausente
a figura da alegria, que cada um de nós possa vislumbrar (...) porque a espécie morre de sede à míngua de outros
campos do possível». [publicado no jornal O
Diário, em 1982].
É
esta a matéria dos livros de Llansol, a procura que a orientou durante toda uma
vida de escrita, e que está tão claramente presente neste Lisboaleipzig.
2.
No
contexto da obra de Llansol, Lisboaleipzig
surge depois da publicação das duas primeiras trilogias (onde o objectivo é pôr
em evidência a conquista de um bem como a liberdade de consciência, sobretudo
através da figura do rebelde), e na sequência de livros como Um Beijo Dado Mais Tarde, de1990, ou o
diário Um Falcão no Punho, de 1985.
Publicado
só em 1994, em dois volumes, o projecto
Lisboaleipzig inicia-se muito antes, tem várias ramificações noutros
livros, irradia por todo o espólio de Llansol, primeiramente ao longo de cerca
de quinze anos (entre 1978 e 1994), sendo posteriormente retomado em vários
momentos. Podemos dizer que se trata de uma dispersão contínua e consciente,
oscilante e produtiva, de forma a atingir um máximo de amplificação,
experiência que terá o seu expoente no último livro, Os Cantores de Leitura, através do encontro de praticamente todas
as figuras dispersas pela totalidade da obra, que se encontram para «cantar a
leitura» ou elevar a escrita à dimensão da música e do canto. Creio poder dizer
que o projecto Lisboaleipzig só se conclui com Os Cantores de Leitura, em 2007.
Se a
liberdade de consciência foi a preocupação primeira da obra de Llansol, depois
das trilogias começou a tornar-se evidente a necessidade de experienciar um
novo valor que consolidasse e fizesse evoluir a liberdade de consciência,
inscrevendo-a numa prática de características ético-estéticas a que chamou «dom poético», e que
também define como a capacidade de «efectivar o possível».
Assim
surge uma nova orientação na Obra, que se inicia com o projecto Lisboaleipzig,
pondo ênfase no «dom poético», e cujos antecedentes radicam na afirmação de uma
língua sem impostura.
As
razões são conhecidas: se é certo que o ser humano transporta consigo uma marca
evolutiva, esta não deve, contudo, ser vista como superioridade ou como um dado
adquirido. É tarefa do homem contribuir para que se desenvolva uma outra
percepção de elos e de relações entre todo «o vivo», e para que se estabeleça
um contrato de mútua não-anulação com todo o vivo da espécie terrestre. Esse valor
de inscrição da liberdade de consciência, o «dom poético», capaz de quebrar
hierarquias entre todos os seres, assenta, assim, na convicção de que o mundo é
profundamente estético e sensitivo, e de que é necessário fugir aos dogmas da
crença e da razão, e tentar perceber o que há nas coisas como forma de
linguagem que se oferece aos sentidos e ao pensamento. E se todo o pensamento é
uma afecção do corpo (segundo Spinoza), é preciso desenvolver um novo corpo de
afectos que possibilite a criação de novos modos de pensar, de novos «ciclo[s]
de pensamento e de formas de viver». Procurar desenvolver um pensamento afectuante que entenda o
fulgor que há nas coisas, o seu modo de comunicar connosco através de campos
imagéticos (não imaginários), significa fazer a experiência do diverso num
lugar imaginante, «o denominado estético» ou «entresser», lugar fora do tempo e
de coordenadas de espaço, um locus/logos
de acolhimento das constelações de forças visíveis e invisíveis, um lugar de
encontro de vestígios deixados por outros que nos antecederam, vestígios que
irradiam como aparições fugazes mas intensas, através de imagens fraccionadas
que se nos oferecem para composição. O «dom poético» é essa capacidade de
dialogar com o mundo, de ver e compor imagens, de as «cerzir às palavras». Uma
interrogação face ao mundo que, no caso de Llansol, não se faz sob o modo
teológico ou filosófico, mas estético, como afirma e mostra neste livro, e
sintetiza numa página programática, espécie de pórtico-manifesto que inicia a
segunda parte do livro. E também nestas linhas iniciais:
o
encontro inesperado do diverso
é
assistir ao belo a comunicar com o silêncio;
a
fraccionar a imagem nas suas diversas formas;
ajudá-las
a levantar o véu para que se mostrem mutuamente
na
beleza própria
Sejamos,
por isso, conscientes da necessidade de reaprender a ler o mundo, sobretudo não
escavando mais fundo, mas olhando mais longe na paisagem; pela necessidade de
deixar vestígios operantes e futuros, imagens que outros possam vir a recolher
e transformar.
3.
Este
livro mostra a oficina de escrita de Maria Gabriela Llansol, que parece
espalhar em cima de uma mesa, e sob os nossos olhos, vários tipos de textos:
páginas de diário (de 1978 a 1994) – de todos os lugares da Bélgica onde viveu,
até Colares onde se fixou depois do regresso a Portugal; páginas de
agradecimento de prémios literários (de 1990 a 1994) – textos de intervenção
pública que sistematizam as directrizes fundamentais da sua escrita, como que
oferecendo ao leitor comprometido com o «pacto de inconforto» da sua escrita um
instrumentário que lhe permita desbravar, mas não a anulando, toda a
caoticidade observada na leitura da primeira parte do volume; fragmentos de
livros anteriores que desenham as mesmas problemáticas através de outras
figuras; fragmentos de livros futuros, onde iremos encontrar estas mesmas
figuras; uma possível carta aos habitantes de Herbais, na Bélgica, que lá
ficaram; um post-scriptum aos
leitores de lá e de cá, onde (em duas linhas) dá conta do que fez enquanto
andou pelo mundo; uma página-manifesto onde fala da procura de «um final
feliz», e também o relato de uma ceia de Natal em Leipzig, na casa do músico
Bach, onde, anulando fronteiras de espaço e tempo, se espera a chegada de um
hóspede, o poeta Pessoa, aliás Aossê de seu nome, que, desiludido com a sua
terra natal, vai ter com o músico para que este lhe componha uma Ode Sinfónica a um Deus Errante – um
canto que exacerbe o seu povo, que o tire da sua «apagada e vil tristeza». Com
a família Bach e o poeta estão também
Infausta (o heterónimo feminino de Aossê), ou a escrevente que os
espreita da janela, e os traz depois até ao Cabo Espichel para um encontro com
o filósofo Spinoza, e onde um falcão sobrevoa a paisagem...
É
difícil imaginar um livro feito de tudo isto. Sobretudo é difícil perceber como
Llansol consegue a coerência que circula entre todos estes textos e a sua
unidade final. Mas é também no livro que encontramos justificação para o seu
procedimento.
4.
Após
um exílio de vinte anos na Bélgica, Maria Gabriela Llansol volta a Portugal e
encerra um ciclo que culminou com o viver solitário de Herbais. Nas mudanças
pelos diferentes lugares, a que chama «passagens-metamorfose», Llansol encontra
a explicação para o modo como todo o seu texto se constrói e organiza. Deixa
claro que as figuras dos seus livros viajam com ela fisicamente, deixando-se
envolver nas paisagens futuras para onde são levadas, provocando com esse
envolvimento desvios e transformações nos projectos a que estão ligadas, e que,
enquanto escritora (ou escrevente, como preferia dizer), o seu papel é deixar
fluir, a esse ritmo, o ritmo da escrita e da construção das figuras. É o que
acontece com o livro Lisboaleipzig, e
é essa uma das razões que explicam a introdução, na primeira parte, dos muitos
fragmentos de diários que povoam as páginas ao longo dos anos de preparação do
livro, com o objectivo de não anular o registo desse imenso caminho percorrido
até ao apuramento das figuras, dos seus contornos, das decisões (por vezes
prolongadas no tempo) acerca «de quando queriam encontrar-se, enfim, os membros
– visíveis e invisíveis – dessa comunidade», o que só virá a acontecer em
Colares.
A
figura de Pessoa/Aossê é paradigmática da estrutura fragmentária e dispersa de
toda a primeira parte de Lisboaleipzig, que se constrói no
trajecto Jodoigne-Herbais-Colares, com fragmentos de todos esses lugares, e com
uma organização interna que nada tem a ver com a habitual estrutura diarística
– os fragmentos de diário não surgem agrupados cronologicamente. Podemos
concluir que o carácter fragmentário e o modo disperso como surge a figura de
Aossê está de acordo com a «sobrevida» que Llansol lhe confere a partir do
poeta Pessoa – a «autêntica figura explosiva da galáxia Ocidente».
Por
outro lado, Aossê, Bach e, de certo modo, Spinoza, aparecem principalmente
associados ao lugar de Herbais, que foi, entre todos os lugares, o punctum das passagens-metamorfose de
Llansol: o maior isolamento na maior intensidade e, paradoxalmente, um quase
arquétipo do que significa ser passagem e ser metamórfico. A força do
isolamento de Herbais adequa-se bem à pujança de Bach, e o facto de ser um
lugar de passagem aproxima-o da multiplicidade dispersa de Pessoa/Aossê, também
este figura de passagem e metamorfose.
Assim,
toda a primeira parte de O encontro
inesperado do diverso mostra, na sua arquitectura e já no seu título, a
clara intenção de não limar arestas, de não retirar aos textos dos diários, ou
dos livros, o seu carácter fragmentário e ocasional, disperso e intercambiável.
Pessoa/Aossê adequa-se perfeitamente a este núcleo onde se condensa a maior
dispersão na maior intensidade. Retirar à construção da figura de Aossê o que
de mais conseguido Pessoa deixou como Livro
do Desassossego, seria retirar-lhe a possibilidade de devir, que tanto
motivou Llansol, que faz o seu trabalho de escrita sem anular a possibilidade
de poder reconstituir a figura do poeta continuadamente. Deixar a figura
crescer durante tanto tempo, e num projecto tão alargado, torna mais possível a
sua não cristalização.
Neste livro associado à imagem de um falcão e à ideia de
um ser futuro, mas também à escrita, Aossê entrou no punho daquela que escreve
já num fragmento anotado nos primeiros anos na Bélgica:
Nevava em Lovaina, de encontro aos
Cafés que eu abrangia como comunidades
de peregrinos, e suspeitei que um falcão voava para o meu trabalho, com uma aura de nobreza, e vindo de um país
do sul.
Não pousou no meu pulso, entrou no meu pulso.
Os seus olhos redondos, duas vezes maiores, entre mim e a neve, são-me entregues.
(16
de Janeiro de 1985 – Colares).
Ainda
uma nota, que me parece importante, para a figura de Infausta: é através desta
figura que se estabelece a coesão da estrutura fragmentária das duas partes de Lisboaleipzig. Penso que a perplexidade
causada no leitor, principalmente pela composição da primeira parte e da sua
relação com a segunda, não poderá ser entendida senão através da figura e do
papel de Infausta, que orienta e revela a oficina textual, articula a génese das
figuras com as entradas diarísticas e os textos metateóricos, fornecendo a
chave dessa imensa e complexa composição intertextual.
Sendo
«a alegria de Aossê», «o seu heterónimo feminino», «a chave da porta», o seu
corpo surge como um «domínio revelador» da experiência de Bach e Aossê.
5.
Uma
palavra final (sem a qual não poderia concluir a apresentação deste novo Lisboaleipzig) para as xilogravuras de
Ilda David’ e para a matriz de leitura que elas nos oferecem, ecoando a matriz
da imagem-figura no texto.
Parto
desta citação de Llansol:
Não vejo em palavras: ouço imagens que se
confrontam a admirações de pensamento e
que não serão nada se não nascerem com o corpo que
lhes convém.
As
xilogravuras de Ilda David´ inserem-se neste percurso de descoberta, de escuta
às imagens. Mostram, num modo oficinal, o seu traço, a marca de quem as
realiza, o claro/escuro de quem atravessa com este texto a metanoite do acto
criativo, também ele um encontro inesperado do diverso e um ensaio permanente.
As suas gravuras convocam os lugares e as figuras deste texto como Maria
Gabriela Llansol convoca um mundo originário, fora do tempo, ou sempre
futurante, e o traz para um lugar propício ao aparecimento de imagens, que ora
se constituem em paisagens ora em figuras, vestígios a recuperar, vislumbres
deixados ao cuidado de quem olha. «Reparar no real faz eclodir o real que, no
invisível, lhe corresponde», diz-se no livro O Senhor de Herbais, para explicar como «as flores em amentilhos,
das plantas com ramos longos, finos e flexíveis, correspondem na invisibilidade
ao livro das comunidades». É disso que aqui se trata. Daquilo que Llansol
nomeia como a «dobra». Também neste livro, neste livro inteiro, as imagens
surgem em e como dobra – as de Ilda David’ e as do texto. As imagens múltiplas,
diversas e, por vezes, contrastantes, destas xilogravuras correspondem, no
plano textual, à composição de um livro como Lisboaleipzig. À técnica da sobreimpressão, que Maria Gabriela
Llansol afirma, neste mesmo livro, ser a que melhor define o seu modo de
escrita, a de uma paisagem e uma língua sobreimpressas, corresponde este entalhamento nas gravuras, preciso no
detalhe, matérico, criador de intensidades dramáticas, onde se avivam tensões
que originam diferentes ritmos.
Ao
leitor pede-se que apure os sentidos, que exercite a capacidade de ver no
visível o invisível que lhe corresponde. Olhar a superfície da madeira –
elemento condutor e matriz da imagem – pressupõe ver na dobra a imagem que lhe
corresponde, deixando-a emergir, tal como no texto a imagem deixa emergir a sua
condição nascente de figura.
O
silêncio primordial que, por vezes, envolve Lisboaleipzig, parece alongar-se no
espaço negativo da gravura. Em contraste, noutros momentos a música, o canto, o
riso de crianças povoa-o com figuras sonoras. E o jogo de alternâncias torna-se
visível nas gravuras de Ilda David’ – entre a matriz pura, não trabalhada do
negro silente, e o branco dos espaços com sulcos, que escavam a matriz e a
enchem de sonoridade. Essa alternância na superfície gravada corresponde ao
elemento significante no plano textual – no dizer de Llansol, «as nervuras do
tempo», a capacidade de «ver as poeiras» ou «o ressalto de uma frase». Este
ressalto é um «silente», ou «a diferença que significa e que nem sempre está
onde o público a espera». É, por certo, o pequeno objecto de madeira que nos
entregam na passagem de testemunho, vestígio que guardamos na mão quando
partimos «à procura das fontes da alegria e da sua figura irradiante».
*
A apresentação do livro e as intervenções que se seguiram foram sendo entrecortadas por excertos de textos lidos por Helena Alves, Vasco David e João Barrento, oferecendo às pessoas que enchiam a sala uma primeira entrada no universo da obra. Num segundo momento, e depois de algumas considerações de João Barrento sobre o «baixo contínuo» subjacente a Lisboaleipzig (e a toda a Obra de Llansol desde o Prólogo d' O Livro das Comunidades), conferindo-lhe um «sentido projectivo», mas não necessariamente utópico, que o transformam no «grande Tratado do Contrato» encenado na cena final do Cabo Espichel, o compositor João Madureira ocupou-se do triângulo
Bach, Llansol e Ilda David'
Venho, a propósito do lançamento de Lisboaleipzig com ilustrações de Ilda
David', a convite da Assírio & Alvim, a quem agradeço, falar de um triângulo que me
é particularmente caro: Llansol, Ilda David' e Bach.
Um triângulo de autores que me são particularmente queridos, pela forma como constroem Todos que são Unos, embora sejam feitos de fragmentos irredutíveis, feitos de visões que à partida diríamos inconciliáveis. Obras apenas consideráveis entidades unas se aceitarmos a sua condição de seres em constante e perpétuo devir.
Se o texto de Llansol é particularmente conhecido pela forma como guia o leitor através de caminhos labirínticos e aparentemente sem nexo, e a pintura de Ilda David' surge como um caminho pessoalíssimo de união do que muito prosaicamente poderíamos chamar de universos figurativo e não figurativo, a música de Bach, que Llansol tanto amava, é para mim um testemunho muitíssimo feliz de complementariedade entre unidade e diversidade.
Pensamos, habitualmente, na música de Bach, e particularmente nas suas fugas, como algo cuja figura principal é a reiteração de um tema e cujo fundo é constituído pela eclosão de outras vozes que acompanham esse tema ou sujeito.
Penso que esta realidade deve ser encarada de uma forma completamente diferente. Aquilo que podemos (devemos?) ouvir numa fuga de Bach é o perpétuo devir de vozes como figura principal face à reiteração de um tema, agora ouvido apenas como fundo.
Esta percepção do constante devir na produção musical de Bach acentuou-se substancialmente quando compus Eco, ou Bach em Pessoa, uma interpretação composta da Arte da Fuga de J. S. Bach cruzada com a leitura de poemas de Fernando Pessoa.
Com efeito, aí, para além daquilo que eu observava em cada uma das fugas de Bach — e que era o facto de o tema e a sua reiteração apenas estarem presentes como pretexto para uma elaboração melódica constante —, vi como esse mesmo desejo de invenção melódica conduzia ao desmembramento das características do tema, de fuga para fuga.
Não eram, portanto, apenas as pequenas figuras que se desenvolviam continuamente. Era o próprio tema que se alterava.
Bach e as alternâncias da fuga: normal, retrógrado, invertido e retrógrado-invertido
Recordo que nessa altura, constatando esse universo de mudança, não hesitei em juntar duas personagens da nossa cultura europeia aparentemente desavindas, cujo encontro, aliás, já havia sido experimentado por Llansol em Lisboaleipzig: Bach, o mestre da homogeneidade, e Pessoa, o autor irredutivelemente plural. Propus, aí, que ouvíssemos Bach como normalmente lemos a poesia de Pessoa, e percebessemos a sua enorme diversidade, ao mesmo tempo que desafiava o ouvinte a olhar a obra de Pessoa de uma forma muito mais interligada do que estamos normalmente habituados a fazer.
Por isso se adensou em mim a convicção de que no diverso reside uma surpreendente proximidade. E se verifico esse elogio do diverso em Bach, constato-o igualmente em Llansol e Ilda David'. Uma proximidade que nos habituámos, infelizmente, a ignorar — e as consequências desta infelicidade atingem a nossa própria identidade política e existencial.
Devo dizer que esta complementaridade entre unidade e diversidade da obra de Bach não se deve confundir com a criação de jogos de pergunta e resposta, que constitui a gramática musical de compositores como Mozart.
A este propósito, foi com espanto que vi Llansol opor Bach a Mozart numa entrevista que dá, logo após a publicação de Lisboaleipzig, nos anos 90, dentro de uma sua exposição maior sobre o que pensa da Europa e da sua história. Não deixa de ser uma intuição certeira, a que ela faz com a oposição entre estes dois compositores!
Gostaria, finalmente, de terminar com a audição de uma das fugas de Bach de que mais gosto: a fuga em Dó Maior do primeiro caderno do cravo bem temperado. Escolho uma interpretação no instrumento para o qual ele originalmente compôs, o cravo, que, pelo seu próprio timbre, consegue dar luz a esta sensação de um todo estilhaçado.
Um triângulo de autores que me são particularmente queridos, pela forma como constroem Todos que são Unos, embora sejam feitos de fragmentos irredutíveis, feitos de visões que à partida diríamos inconciliáveis. Obras apenas consideráveis entidades unas se aceitarmos a sua condição de seres em constante e perpétuo devir.
Se o texto de Llansol é particularmente conhecido pela forma como guia o leitor através de caminhos labirínticos e aparentemente sem nexo, e a pintura de Ilda David' surge como um caminho pessoalíssimo de união do que muito prosaicamente poderíamos chamar de universos figurativo e não figurativo, a música de Bach, que Llansol tanto amava, é para mim um testemunho muitíssimo feliz de complementariedade entre unidade e diversidade.
Pensamos, habitualmente, na música de Bach, e particularmente nas suas fugas, como algo cuja figura principal é a reiteração de um tema e cujo fundo é constituído pela eclosão de outras vozes que acompanham esse tema ou sujeito.
Penso que esta realidade deve ser encarada de uma forma completamente diferente. Aquilo que podemos (devemos?) ouvir numa fuga de Bach é o perpétuo devir de vozes como figura principal face à reiteração de um tema, agora ouvido apenas como fundo.
Esta percepção do constante devir na produção musical de Bach acentuou-se substancialmente quando compus Eco, ou Bach em Pessoa, uma interpretação composta da Arte da Fuga de J. S. Bach cruzada com a leitura de poemas de Fernando Pessoa.
Com efeito, aí, para além daquilo que eu observava em cada uma das fugas de Bach — e que era o facto de o tema e a sua reiteração apenas estarem presentes como pretexto para uma elaboração melódica constante —, vi como esse mesmo desejo de invenção melódica conduzia ao desmembramento das características do tema, de fuga para fuga.
Não eram, portanto, apenas as pequenas figuras que se desenvolviam continuamente. Era o próprio tema que se alterava.
Bach e as alternâncias da fuga: normal, retrógrado, invertido e retrógrado-invertido
Recordo que nessa altura, constatando esse universo de mudança, não hesitei em juntar duas personagens da nossa cultura europeia aparentemente desavindas, cujo encontro, aliás, já havia sido experimentado por Llansol em Lisboaleipzig: Bach, o mestre da homogeneidade, e Pessoa, o autor irredutivelemente plural. Propus, aí, que ouvíssemos Bach como normalmente lemos a poesia de Pessoa, e percebessemos a sua enorme diversidade, ao mesmo tempo que desafiava o ouvinte a olhar a obra de Pessoa de uma forma muito mais interligada do que estamos normalmente habituados a fazer.
Por isso se adensou em mim a convicção de que no diverso reside uma surpreendente proximidade. E se verifico esse elogio do diverso em Bach, constato-o igualmente em Llansol e Ilda David'. Uma proximidade que nos habituámos, infelizmente, a ignorar — e as consequências desta infelicidade atingem a nossa própria identidade política e existencial.
Devo dizer que esta complementaridade entre unidade e diversidade da obra de Bach não se deve confundir com a criação de jogos de pergunta e resposta, que constitui a gramática musical de compositores como Mozart.
A este propósito, foi com espanto que vi Llansol opor Bach a Mozart numa entrevista que dá, logo após a publicação de Lisboaleipzig, nos anos 90, dentro de uma sua exposição maior sobre o que pensa da Europa e da sua história. Não deixa de ser uma intuição certeira, a que ela faz com a oposição entre estes dois compositores!
Gostaria, finalmente, de terminar com a audição de uma das fugas de Bach de que mais gosto: a fuga em Dó Maior do primeiro caderno do cravo bem temperado. Escolho uma interpretação no instrumento para o qual ele originalmente compôs, o cravo, que, pelo seu próprio timbre, consegue dar luz a esta sensação de um todo estilhaçado.
Ouça-se aqui a fuga de Bach: