3.3.24

A «RESTANTE VIDA» DO AMOR

Com a beguina Hadewijch de Antuérpia

Concluimos ontem o ciclo «A Restante Vida» com os comentários (de João Barrento), a habitual exposição (de materiais do espólio e da Biblioteca), o video (com leituras de textos de Llansol sobre Hadewijch, e imagens e peças musicais afins), e finalmente a leitura de Poemas de Hadewijch de Antuérpia (pelas jovens actrizes Eva Dória e Anita Ribeiro). 


Deixamos aqui o essencial dos comentários de João Barrento, que podem ser completados com a introdução ao Caderno que acompanhou a sessão:

  

Hadewijch: O Amor sem porquê

ou:

- O «Amor completo» – e sempre irrealizado, objecto de busca (vd. Luís M. e a sua «Carta às Damas do Amor Completo», em Na Casa de Julho e Agosto);

- Uma dialéctica do Amor (espiritual vs. nupcial, ele e o seu contrário = a vida, o tempo, o mundo...)

 

Estamos no terceiro momento do Ciclo «A Restante Vida do Amor», e regresso à noção de Restante Vida (que não é só de Llansol): já vem dos Gregos, e – ocorreu-me a propósito desta sessão – está presente em Kafka na expressão «das sonstige Leben» (literalmente: «a restante vida»), no capítulo V do romance O Castelo.

Kafka é também (como todas as suas personagens) um dos que «herdaram as margens», uma referência em Llansol, e neste ponto com evidentes coincidências quanto à leitura de um mundo humano «sem raízes», no reverso de qualquer Restante Vida.

Em Kafka, tal mundo é dado pelas instituições do Conde, as leis e o poder do Castelo, e o lugar da personagem K. nesse contexto: «A relação directa com as instituições não era assim tão difícil, porque o papel das instituições, por mais organizadas que fossem, era o de defender coisas distantes e invisíveis, em nome de uns senhores distantes e invisíveis [o castelo inacessível], enquanto K. lutava por algo de vivo e próximo».

[Hoje tudo se extremou, o distante e invisível acentuou-se, e o vivo e próximo quase desapareceu! E já não se luta por uma restante vida – a consciência dessa outra realidade mais real foi absorvida por um novo poder sem face, o digital-artificial].

Um pouco mais adiante lemos: «K. foi remetido para uma esfera de vida fora das instituições, totalmente inapreensível e cinzenta...» Daí a sua busca de uma «restante vida» (ein sonstiges Leben) à margem dos poderes, fora do Castelo. E o narrador pergunta:

«E o que era neste caso essa restante vida? Em nenhum outro lugar K. tinha visto um tal entrelaçamento entre Poder e Vida... Por vezes parecia até que poder e vida tinham trocado de lugares»!

[Sem o saber, Kafka chega aqui até aos nossos dias e ao tema da «biopolítica», proposto por Michel Foucault, em Vigiar e Punir, e tratado também por filósofos como Giorgio Agamben ou Roberto Esposito. Essa biopolítica é a dos poderes que controlam e decidem sobre as vidas/os corpos de cada um, não deixando qualquer espaço para a restante vida. E enganando, fazendo crer que defendem e estimulam a vida… É a política actual da abstracção dos corpos reduzidos a números, a falsa liberdade (cínica) das democracias formais. Mas algo como a biopolítica – e a sua crítica nas sociedades burguesas nascentes – aparece já antes, desde Marx e Nietzsche (vd. Considerações Intempestivas), até Althusser e outros (nos anos 60), com noções como os «aparelhos ideológicos» (do Estado, da escola, da Igreja...) que gerem as vidas individuais. Aliás, já entre os Gregos antigos existia uma distinção fundamental, expressa nos termos (ambos para designar a «vida») zoé (a vida nua de homens e animais, o simples facto de viver) e bios (a «vida qualificada», e quantificada, dos indivíduos ou grupos que a política decide e controla) (vd. Agamben A Comunidade que Vem e Homo Sacer).

E uma nota ainda, que pode aproximar Kafka da nossa figura de hoje, a beguina Hadewijch. Walter Benjamin define a Obra de Kafka como «uma elipse com dois vectores» – o da experiência «mística» (da Kabbala judaica e da própria escrita como «oração«) e o da sua experiência no mundo (a cidade de Praga, a lei, os poderes)]. 

Também em Hadewijch, e Llansol, há dois vectores sempre presentes quando se trata do Amor como forma essencial de uma Restante Vida, como veremos a seguir. E tudo isto está também presente no recente filme de Bruno Dumont (2009), intitulado simplesmente Hadewijch, que trata esta matéria a partir de uma figura feminina contemporânea que recupera esse nome, e que se move entre o o convento e as contradições do amor no espaço do «mundo».


 

A figura de Hadewijch surge precisamente em A Restante Vida, já como figura muito singular, diferentemente dos livros seguintes, onde as beguinas surgem como comunidade, com muitos nomes e artes. Mas Na Casa de Julho e Agosto abre já com uma «Carta de Luís M. às Damas do Amor Completo» que também nos poderia servir de guia nesta viagem pelo tema, central nos primeiros livros, até Causa Amante, se reconhecermos nessas mulheres, e particularmente em Hadewijch de Antuérpia, uma «forma amativa de conhecimento».

O tempo de Hadewijch é também o do  «reino da Dama» na literatura cortês/ trovadoresca, que não deixa de ter ecos na poesia do Amor (Minne) de Hadewijch ou Beatrice de Nazareth – que vão beber (para além do Cântico Maior) alguma influência nos trovadores, mas reduzem o Amado a um só (Ele!) – que pode ser vários, assumir diversas configurações! Nasce aqui, nesta poesia do Amor a um tempo espiritual e do corpo, o chamado misticismo nupcial de João da Cruz, (no Cântico Espiritual e na Chama de Amor Viva), como expressão de uma ligação imediata e directa da Alma com o Amado, um evangelho interior de um Amor eterno... (há também paralelos com Dante, na Vita Nuova, ou, no que à vertente mais conceptual ou «essencial» diz respeiro, com Mestre Eckhart).

São formas novas de religiosidade e vivência extática que atravessam as obras de algumas beguinas, em paticular de Hadewijch de Antuérpia, que não deixou rasto biográfico, apenas poemas, visões e cartas (vd. textos no final do caderno que acompanha esta sessão). É, em Llansol, a beguina mais livre e disponível para metamorfoses, símbolo e figura de um misticismo do corpo, do amor ímpar e da liberdade das imagens, a sua forma própria de restante vida no seio da Comunidade híbrida com a qual convive discretamente. 

Maria Gabriela Llansol ligará as duas correntes: o verbo e a alma, o corpo e a ideia (do Amor), na busca de um «abismo da unidade» que (segundo o místico belga Jan van Ruysbroeck) faz desaparecer «pessoas, modos e nomes»; é uma via intuicionista que liga a experiência directa de um Deus presente na Substância/no mundo, sem mediação (como em Eckhart ou Spinoza) com a vontade de apreensão de uma unidade do Ser, «sem porquê» (como ainda em Eckhart e mais tarde em Silesius, o de "A rosa é sem porquê», no século XVII). E poderíamos evocar ainda outros autores que imaginam um «misticismo sem mística», como os austríacos Hofmannsthal ou Musil (com o seu «misticismo do dia claro», em O Homem sem Qualidades«um mistério pelo qual entramos num outro mundo, o mistério de viver de modo diferente no nosso próprio mundo» (é mais uma possível definição da «restante vida» llansoliana!).

A beguina Hadewijch é em Llansol paradigma de uma concepção aberta de misticismo erótico (ou erotismo místico), uma figura dotada de uma grande capacidade de metamorfose e de mediação (a que propicia as tréguas no «livro da batalha»), que morre e renasce, reencarna em Ana de Peñalosa, no Pobre, no cão Pedra, é a avó azul e a mãe, é Escarlate (em Contos do Mal Errante) e será Psalmodia (em Da Sebe ao Ser)... E regressará ainda bem mais tarde, já na viragem do século, no complexo narrativo recentemente publicado O Texto Catarina, ou o Divã de Hadewijch (Edições Sr. Teste, 2020).

De facto, o aparecimento de Hadewijch na escrita de M. G. Llansol, logo em 1975, situa-a desde logo nessa dupla perspectiva do misticismo (com ligações a Eckhart) e do erotismo (vd. a cena da «sedução de Hadewijch», em 26 de Abril de 1975, no primeiro caderno do espólio, retomada em A Restante Vida, onde a sua primeira palavra é) «Eu vos amo!», o seu primeiro acto «fazer amor» (pp. 27-28). Mas ela é também figura do Espírito (com maiúscula, tal como o Amor nos poemas da Hadewijch histórica).

 

Maria Gabriela parece ler à letra (demasiado à letra?) o misticismo do corpo nos poemas da beguina Hadewijch, e cruza-os com uma outra tradição medieval importante, a dos Fiéis do Amor, os primeiros de uma linhagem mística e filosófica que já encontramos n' O Livro das Comunidades, e de que também Augusto Joaquim um dia se ocupou, ao fazer a dramatização d' O Livro das Comunidades, dando-lhe o título Aos Fiéis do Amor



Também aí as duas beguinas que intervêm são possuídas de grande «densidade amorosa», num plano «totalmente terreal e imanente»: acontece nessa peça a construção do «Modo Completo do Corpo». Em A Restante Vida vemos Hadewijch, sempre ausente ou fugidia, em constante metamorfose e figura de uma só arte, a do Amor, a de uma «poética do corpo» (como lhe chama Michel de Certeau, em La Fable Mystique). Mas os poemas que deixou, e algumas das suas Visões, deixam já perceber a ideia llansoliana do «Amor Completo». Esse «amor completo» é o programa de beguinas como Hadewijch de Antuérpia, fora dos «actos maiores» de todos os poderes do mundo, apontando possíveis caminhos do futuro. Porque, lemos num outro caderno, em 2003, «as beguinas... existiram a seu tempo, pretérito, porque estas damas do amor completo futurantes [i.e., de uma qualquer «restante vida»] haviam de existir...» (Caderno 1.66, p. 90).



Não vou comentar os Poemas de Hadewijch de Antuérpia que iremos ouvir ler, mas gostava de referir ainda ainda uma série de fragmentos de Maria Gabriela Llansol sobre este tema da «Restante Vida do Amor», presentes na folha de sala distribuída, em que os paralelos com Hadewijch são evidentes, na ideia de um amor múltiplo (e sempre incompleto), com várias formas possíveis, e evolutivo, ao longo de uma vida.

A fórmula que poderíamos aplicar a esta visão aberta do Amor é, uma vez mais, a do «sem porquê». Para regressar a alguns tópicos comuns a Hadewijch e Llansol quanto a uma Restante Vida do Amor, poderíamos pôr em confronto frases de uma e outra em que se torna evidente que o Amor, afinal, nunca é «completo» (a sua essência é a da incompletude, que incita à busca); que ele é a grande promessa, mas, como tudo neste mundo, não permanece idêntico a si mesmo, mas se transforma permanentemente; que, prometendo algo como a eternidade, essa eternidade é contraditória; que nele a imagem ideal do paraíso pode facilmente transformar-se num «Nada» (mas também nesse «Nada pleno» estão presentes outras formas de Amor); e ainda que a vida (o modus vivendi, o estar-aí de cada um) pode corresponder a um modus amoris (o «estar no amor», sem mais); porque o Amor, afinal, sendo «inagarrável e inenarrável», é «um inconhecido que se conhece» (diz Llansol), porque este deus humano que Deus desconhece, é «ora gracioso, ora terrível, / agora próximo e ainda há pouco distante...» (lemos num dos Poemas de Hadewijch)...

É o contrário da lição «oficial», ortodoxa, em que o Amor (espiritual) é estável e imutável. Aqui, ele é «qualquer coisa que não tem forma, nem razão, nem figura», como lemos ainda num dos poemas de Hadewijch (que serão lidos no final da sessão).



O video desta sessão pode ver-se clicando no seguinte link:

 https://vimeo.com/918493481?share=copy