A PERMANÊNCIA NO MISTÉRIO
Llansol e Adua Guerra Santos
«Diálogo com Llansol»
Tivemos ontem mais uma sessão da «Letra E» do Espaço Llansol no MU.SA de Sintra, com a exposição de desenhos de Adua Guerra Santos largamente inspirados na sua leitura de Maria Gabriela Llansol. Pudemos ver uma conjunto significativo de grafites e de obras a cores, com títulos reveladores, como os das séries «Metanoite», «Talvez se chamasse Mistéria», «Divina proporção» e outras, e conversámos com o artista e a investigadora Rita Benis sobre a problemática do mistério, presente no texto de Llansol e nas obras de Adua.
Deixamos aqui, para quem não foi a Sintra, os textos que suscitaram o diálogo, que teve também intervenções de Maria Etelvina Santos e João Barrento: as notas do artista a propósito desta exposição e passagens do texto introdutório ao caderno que fizémos para a ocasião, em que se situa esta problemática com especial referência à Obra de M. G. Llansol. E, naturalmente, algumas das obras expostas.
*
Adua Guerra Santos
A permanência no mistério
Reconhecer o mistério, identificar as manifestações do mistério, é também uma forma daquilo a que se chama «cair-em-si» (a nossa origem é o mistério primeiro). Maria Filomena Molder refere como possibilidades de alguém cair-em-si três exemplos:
- Experiência amorosa (ex.: confronto com a rejeição);
- Relação com a morte (ex.: morte de alguém próximo);
- Arte (ex.: estranhamento em relação a uma obra).
Algo que nos questiona existencialmente é sempre uma forma de cair-em-si (verdadeiro rosto do mundo, lugares onde se foi, lugares de onde se vem, a alma de cada ser). Uma das sensações mais fortes no cair-em-si éo estranhamento e a sensaçãode que está tudo por fazer, sempre esteve tudo por fazer (em relação a nós próprios e em relação ao mundo), um enorme sentimento de incompreensão («Chuva… tenho tristeza! Mas porquê? / Vento… tenho saudades! Mas de quê?» - Florbela Espanca). Nesses instantes há a passagem de um estado de inocência para a necessidade de um estado de experiência. Há um depois e um:
e agora?
E as alternativas são:
- Ignorar, esquecer, não dar importância é sempre uma possibilidade (a mais confortável, não é preciso fazer nada), há o pressentimento de que se entra num caminho sem fim e isso assusta… mas desconfio que a dúvida do que aquilo é, do que se é, permanecerá sempre na vida (estaremos sempre na busca de entender aquilo que não queremos conhecer).
ou
- «Deixar-se cair» e aceitar o Mistério, pressupor, como diz João Barrento, «a possibilidade de intuir a luz nas trevas, na superfície aparentemente impenetrável do mundo. No momento em que essa intuição acontece dá-se também a entrada num segundo nível: a elevação da realidade apercebida a uma potência superior, a descoberta do mistério que há nas coisas. […] O mistério… está nas próprias coisas, no mundo que se oferece à decifração intuitiva.»
O que mais me fascina em M. G. Llansol é essa elevação da realidade apercebida e a revelação na escrita da sua permanência no Mistério:
«Estou na parte do templo destinada aos que vivem envoltos em mistério».
«Metanoite»
*
João Barrento
Llansol: Os caminhos do mistério
«Mistério» significa, na
sua raiz, algo que é da ordem do secreto – e do sagrado. Contrariamente ao
enigma, com o qual se não deve confundir, o mistério tende para a iluminação,
mas não para a (re)solução. No mistério, luz e trevas convivem sempre, em graus
diversos, em perfeita correspondência com o mundo visível, «o desconhecido que
nos acompanha» (vd. O Senhor de Herbais),
e que a escrita ou a arte tentam permanentemente iluminar. […]
O mistério é aí o da tensão
criativa, de uma dialéctica dos opostos que não é a das oposições binárias
simplistas, mas a da pluralidade da aparente unidade do mundo na sua
superfície. […] Sabemos muito, mas ainda
não sabemos disso, do modo de ser essencial
das coisas, do mundo e de nós próprios.
Em última análise, o mistério das coisas não existe fora
delas, consiste simplesmente em elas serem, estarem aí assim, furtando-se
indefinidamente ao nosso entendimento. Por isso o mistério, contrariamente ao
enigma, que é sempre um problema em busca de solução, é eternamente diferido
enquanto objecto de nostalgia. Objecto que pode ter muitos nomes, com contornos
mais ou menos discerníveis no horizonte dessa nostalgia.
Em Maria Gabriela
Llansol, o mistério pode, assim, ter por nome -Eus, restante vida, paisagem,
mútuo ou ambo, cena fulgor, metanoite ou comunidade... Também pode ser o mistério ou a nostalgia do azul, imagem de uma completude ou perfeição daquilo
que é o que é, e não exige explicação: «O azul é o sinal da esfera terrestre»,
«figura de contemplação» (cf. O Azul Imperfeito - Livro de Horas V, p. 360). O que acontece é que estaremos
sempre nesta busca infinita e inglória de nomear o mistério, que é o
inominável: porque vivemos entre a coisa
(que «realmente» desconhecemos), a sua imagem (que é o seu fantasma) e o nome
(que lhe passa ao lado). Mas palavra e imagem é tudo o que temos, e com isso
teremos de chegar aonde pudermos.
Este,
porém, é o ponto de partida de um «cratilismo» da linguagem, das linguagens,
que pretende que a coisa é indizível. Mas há o outro, o de um orfismo que nos
vem lembrar que as coisas estão aí para serem nomeadas. O mistério pressupõe
então, como para Goethe ou Llansol, a possibilidade de intuir a luz nas trevas,
na superfície aparentemente impenetrável do mundo. […]
A cena fulgor llansoliana é a manifestação desta dialéctica,
muitas vezes não apenas bi-polar, mas com muitas gradações intermédias. E as
grafites de Adua procuram também transmitir algo assim. Por isso, a relação
artística produtiva com o mistério (que não é aqui já o das religiões, mas o do
Ser) não é obscurecedora, mas traduz um aclarar progressivo e relativo das
trevas (como Adua diz do seu trabalho). Relativo, porque um resto insondável
permanece, tem de permanecer, já que a forma, plástica ou de linguagem, pode
quando muito sugerir o informe, mas nunca revelá-lo ou identificar-se
plenamente com ele.
«Talvez se chamasse Mistéria…»
Se nos
aproximarmos um pouco mais da prática de escrita e da visão do mundo de M. G.
Llansol, perceberemos facilmente que para ela o mistério não está no inefável,
em que não parece acreditar, nem numa qualquer espiritualidade mais ou menos
esotérica (o olhar de Llansol é antes exotérico, interessa-lhe o visível). Mas
também não se trata aqui de despir as coisas de qualquer mistério, à la Caeiro. O mistério para Llansol, a existir, está nas próprias coisas,
no mundo que se oferece à decifração intuitiva, e não fora deles – quando
muito, em mim, se por mim se entender um corpo, e não já uma interioridade romântica. Em toda a sua Obra é a ordem da
imanência que se impõe… […]
Visto deste modo, o mistério manifesta-se no texto de Llansol
sob múltiplas formas, figuras e «categorias». Enumero algumas:
– Há o mistério da
Figura, eternamente em metamorfose,
sem morte;
– Há o mistério do
encontro, no eterno retorno do mútuo e no seu paradoxo de ser confrontação e encontro, de gerar
sempre outra coisa nova;
– Há o mistério do
mundo, que é «o
desconhecido que nos acompanha»;
– Há o mistério da
metanoite, que é a noite
obscura – mas não escura – da busca, do risco e da mutação;
– Há o mistério da
cena fulgor, com um brilho
súbito cuja origem se perdeu;
– Há o mistério do
humano, de que não se
conhece a essência, oscilando sempre entre os desastres do «gregarismo» e as
insuficiências do rebelde e do eremita, figuras de um mistério promissor que não
vingou (cf. «Diálogo com Llull»)...
E há sobretudo o
mistério que nasce da liberdade livre da composição de uma escrita sem
concessões, em que nada é impossível: é o mistério do incomum e do insólito,
das volutas da imagem e das associações im-prováveis, da densidade do escrito e
da leveza alada dos brancos e das suspensões dos traços. E tudo isto tem um
lugar de origem, inacessível, esse sim, misterioso, só visível pelos seus
reflexos na linguagem: o corpo que escreve. E ninguém sabe o que pode um corp' a 'screver.