«UM LIVRO ACONTECE-ME...»
PATRÍCIA PORTELA NO ESPAÇO LLANSOL
No ciclo «Llansol: A Luz de Ler» tivemos o privilégio de receber no sábado no Espaço Llansol a escritora Patrícia Portela – que a si mesma se vê, de preferência e à semelhança de Llansol, como «escrevente» (no tempo progressivo e activo do verbo e do gesto de escrever), alguém a quem os livros (que neste caso já são muitos) «acontecem» e vão «fermentando» até desabrocharem, mas sem nunca serem flores para a eternidade.
Patrícia Portela é uma criadora de múltiplas vocações – o desenho, a performance, a cenografia, o teatro, a escrita infantil e tantas outras, mais ou menos narrativas ou inclassificáveis. Vive em Antuérpia – o lugar das beguinas nómadas, Eleanora e Margarida, e da «casa do livro» que é a tipografia de Plantin-Moretus em Na Casa de Julho e Agosto –, mas tem vivido e trabalhado em permanente itinerância, os seus textos são também «lugares que viajam» e se movem entre géneros, formas, registos, num espaço de «liberdade livre», infixo e sem fim, como o dos livros de Llansol.
Das suas ligações a esses livros nos falou Patrícia Portela, desde o dia em que, com catorze anos, um tio-leitor e subvertor de cânones lhe pôs na mão um primeiro livro da nossa escrevente. A semente haveria de dar frutos, desviando-a de outras dependências mais acomodadas, num percurso artístico e de escrita em que a criação de mundos paralelos, a capacidade de «tornar a ausência presente», a construção de um «projecto do humano» próprio ou a transformação em escrita de uma «ordem figural do quotidiano» são desde há muito oferecidas por Patrícia Portela aos seus leitores e espectadores.
É o que acontece com o seu último livro, Dias Úteis, do qual nos leu o primeiro capítulo («Segunda-feira»), que funciona – com o «Prefácio fora de Jogo» e a «Didascália» que o antecedem – como um (muito llansoliano) conjunto de «instruções de leitura» para esta e toda a outra sua escrita, lembrando ao leitor que só vale a pena ler se for para «fazer a diferença», que as palavras são para trabalhar como coisa plástica, transversalmente aos sentidos estabelecidos, e que um livro é sempre uma construção desconcertante nascida de uma imaginação não fantasiosa, mas realmente imaginante e criadora – e que assim, diz também Llansol evocando um dos seus «mestres», Ibn 'Arabî, verdadeiramente «faz conhecer».
Como pendant à leitura de Patrícia Portela, ouvimos também algumas páginas de uma agenda de Maria Gabriela Llansol (de 1989) pelas quais se tornaram ainda mais evidentes alguns paralelos entre as duas autoras: a importância dos «livros dos dias» que ambas escrevem, dias que são «preciosos, não são para apagar-se»; os ritmos e os registos de escrita, com ou sem «verbetes filosóficos» inspiradores, e a sua capacidade de ampliar, fazer vibrar e dar a ver, para além da superfície, os pequenos ou grandes incidentes dos dias, para chegar a interpretações da vida e leituras do mundo e da condição humana com muitos pontos de contacto entre duas agentes da desestabilização do pensamento acomodado, de hábitos cristalizados, de «evidências» nada óbvias.
Deixamos aqui – com a sugestão de leitura paralela com os Dias Úteis, ou O Banquete, de Patrícia Portela (Editorial Caminho, 2017 e 2012) – as seis páginas da Agenda 25 de Maria Gabriela Llansol lidas nesta sessão de «A Luz de Ler»:
8.15 [oito e um
quarto]: O Augusto levanta-se e eu angustio-me, porque a manhã ainda não abriu.
11 : Mantenho a
chama, dando de comer aos animais.
12 : Se alguém
ainda não me telefonou, penso na serenidade.
14 : A tarde
eleva-se, eu olho o exterior que neste momento não faz parte de mim própria.
16 : Estive deitada.
Trabalhei um pouco na casa, com uma rapidez que me confrange o estômago.
19 : Quem me
acompanha, chega.
20 : A noite tem um
dos seus maiores jardins aqui.
A minha afinidade com as agendas é grande. Esta é
um belo livro dos dias. Os dias são preciosos, não são para apagar-se. Se cada dia fosse
um livro, o dia deveria ter uma energia durável. Há dias reflecti sobre o
tempo, com uma certa raridade de imagens.
O tempo é belo, estamos sempre
envolvidos por ele, e um dos maiores dons que me foi dado é a participação
mental na elasticidade física do tempo.
A unidade dos dias
foi uma centelha. Jade chega e geme, porque as suas percepções rareiam.
Sento-me a escrever com a sensação de não ter mudado de texto.
Há aqui uma
sonoridade que não me surpreende.
Atravesso o pinhal
com o Augusto para irmos à Senda. Os problemas económicos inquietam-me destrutivamente.
Regozijo-me sempre
quando a noite principia.
Marco esta hora.
Leio Eckhart quando
quero estimular o meu próprio pensamento.
Adormeço, o que é
raro de manhã, e sonho com a serpente ser.
Transmito o sonho
ao Augusto, e alegramo-nos os dois. Passeio rápido através do pinhal, seguindo
o Augusto. Anoto o sonho no meu caderno de apontamentos.
Alegro-me com a
ideia de que possuo uma agenda, um lugar para guardar a energia dos dias e
brincar a escrever no momento filosófico que atravesso. [...]
Horas de doença que
se prolonga há uns três dias. Todos os actos que tenho de fazer se prolongam
como se nunca mais acabassem.
O ponto fulcral não
foi a doença súbita do Jade, doença de velhice que o desorientou, o separou dos
quatro sentidos da casa.
Eu tive da L., das
pessoas da casa, das conversações filosóficas, muitas provas de amizade, ou
seja, de afecto, que é uma palavra que implica um elo. Sinto-me desmunida,
levada pelas vagas da cosmogonia que, por vezes, são altas ondas chocantes
(chocam-me a mim, não chocam, por exemplo, o A.).
LL optou pela vida
e poupa as forças para o esforço enorme que agora lhe traz a vida quotidiana.
Está a liquidar o passado, a sua carga é muito grande. No meio de todas estas
referências nefastas, materiais, eu procuro discernir o espaço da visão.
Aproxima-se uma ida à Bélgica.
Um escritor como eu não tem trabalho. Passa a vida
a fiar os seus nadas; uma luz entrou por debaixo da porta e agora,
crescendo, concentra toda a minha atenção. Tenho medo do crescimento da luz,
que a luz cresça e me leve, e me faça mal. Bonjour – o cão consolador da
ausência de Jade – desapareceu. Faço mal em acordar, os sentidos, as sensações
adormecidas: todo o meu espaço se torna um plangente tempo de ausência. Começou
na ausência de Jade – e cresceu_______ É um tempo bom de muito sofrimento.
A disciplina a que
me submeto é extremamente repressiva. O meu companheiro caiu no silêncio, que
marca o seu trabalho interior e exterior. Tenho sede de consolação______ e no entanto são-me dados abundantemente os
bens da terra. [...]