«Se o texto de M. G. Llansol vem do futuro – e parece que assim é, a acreditar no que a sua escrevente por mais de uma vez diz –, o bom senso diz-nos que então ele terá de ser um desconhecido para nós, para qualquer um de nós, no
presente em que vivemos e o lemos. E de facto assim é – ou parece ser.
Por mais que se leia, este texto foge-nos. E, ao mesmo tempo, estamos permanentemente a dar connosco nele, nas suas cenas mais ou menos fulgorizadas, nas suas situações quotidianas, nas evidências do mundo que não vemos e que ele nos põe diante dos olhos, na humanidade mais humana das suas figuras. É este o aparente paradoxo de que estamos a falar: este texto é o mais acabado exemplo do
para-doxon, isto é, daquilo que passa ao lado, ou está fora da
doxa, da opinião comum, do expectável, da mera superfície das coisas. Curiosamente, também poderíamos dizer que este texto vem de um futuro que sempre esteve e estará aí, mas que a maioria, com os sentidos embotados, pouco despertos ou adormecidos pelo ruído do mundo não vê, não sente, não intui. Porque a rotina e o hábito são mais fortes e geram uma inércia natural, que os aparelhos ideológicos que nos regem as vidas ainda intensificam mais. Para vermos o que este texto traz em si de futuro, que é afinal o que há de mais humano, precisamos de nos despir – de hábitos de leitura e de vida, de peconceitos, de uma visão antropocêntrica (limitada) do mundo, de uma inconsciente (mas não natural) sujeição a hierarquias.
Este texto vem do futuro porque, como ele próprio diz, 'nada ainda modificou o mundo', a História está em aberto (e as mais das vezes em regressão) e por isso precisamos de ser capazes de 'conceber um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há raízes...'
Estes são, para quem vem lendo Llansol, quase lugares-comuns (mas os lugares-comuns são também os lugares que insistentemente nos vêm lembrar algumas verdades) que temos de interrogar, como tantas vezes fazíamos antes, com a Maria Gabriela, ao perguntarmos: que quer o texto dizer quando diz...? Por exemplo: o que é isso de um mundo humano, ou mais humano? Por que foram 'estas paragens' (as nossas) amputadoras ou amputadas de raízes? E que raízes, vindas de que húmus do tempo? Dizer que 'nada ainda modificou o mundo' significa que continuamos à espera do futuro? Parece que sim.»
«Para concluir: o texto que vem do futuro é ainda, no caso de Llansol, o que o seu espólio – que estamos a editar – tem para nos revelar. De facto, há nos
Livros de Horas que vão nascendo desse legado um duplo movimento: eles são constituídos por textos de um passado (os que nos foram deixados e nunca antes viram a luz dos olhos dos leitores), mas que estavam destinados a ser obra futura (póstuma) de quem os escreveu. Também neste sentido o texto mais actual de M. G. Llansol era matéria de futuro. Nos cadernos manuscritos do espólio, nas suas dezenas de milhar de páginas escritas ao fio dos dias e do corpo, está
o livro por vir de Maria Gabriela Llansol.»
«É desse livro ainda desconhecido que provém a maior parte das passagens que vamos ouvir [no vídeo em baixo], em que a autora reflecte, muitas vezes pelo caminho das imagens, sobre a natureza, a singularidade e as supresas deste seu Texto infinito e desconhecido que ainda preencherá por muito tempo o futuro dos seus leitores. E a esses fragmentos inéditos juntou-se um texto de auto-reflexão (já publicado em 2011 no livro
Sobreimpressões. Llansol e as Dobras da História), em que a Maria Gabriela nomeia esse lugar futuro, chamando-lhe '
o umbigo de Parasceve'. Aí se cruzam, nessa fórmula que expressa a visão de Llansol no início do novo milénio – estamos em 2002 –, os dois fios que fui seguindo para tratar este tema: o da
origem e o da
promessa ('parasceve' significa, no judaísmo, a véspera da festa, a promessa da aleluia e da ressurreição). Entendemos agora melhor que o
futuro que o texto procura e oferece mais não é, provavelmente, do que qualquer coisa como
a infância do mundo.»