O AMBO:
«VIDA E MORTE DE AUGUSTO E GABRIELA...
... desejo de, quando esta minha forma humana nos deixar, a mim ao Augusto, perspectivar nossa época nos confins de um livro.»
(M. G. Llansol, Livro de Horas I)
Meia vida em fotografias: os caminhos de Augusto e Gabriela
na parede da Letra E no dia 6 de Abril
No sábado 6 de Abril evocámos Augusto Joaquim, o seu trabalho e a sua relação singular com Maria Gabriela Llansol, a «Gabi» das primeiras cartas de amor de 1965. Do que foi dito deixamos aqui um resumo alargado.
Esta sessão da
'Letra E' não tem paralelo com as anteriores – a não ser talvez com a primeira,
a inaugural, em que mostrámos e se falou da juvenilia
de M. G. Llansol, da sua Obra ainda desconhecida, anterior à publicação do
primeiro livro. Hoje ocupamo-nos da segunda metade dessa vida, indissociável
da de Augusto Joaquim a partir de 1964. A matéria vai ser, por isso, mais biográfica
do que habitualmente – mas não só: espero que se possa chegar a compreender um
pouco melhor a bio-signo-grafia do Há
destes dois «gémeos astrais» (Finita),
em permanente tensão e convergência.
Uma segunda
intenção desta sessão é dar a conhecer esse outro lado, um tanto oculto, de
Llansol e da sua escrita, sem o qual, por várias razões, esta não teria sido o
que foi: essa face oculta tem por nome Augusto Joaquim (-->AJ). Há, de
facto, um «défice de Augusto Joaquim» quando se fala de Llansol (-->MGL) e
da sua escrita. Mas a verdade é que ele teve parte activa e influência decisiva
nesta Obra e no seu devir-texto, desde logo por ter arrastado a sua autora para
um exílio que foi determinante para a sua mudança de paradigma literário e
existencial. Mas não só por isso, como veremos. Os cadernos e outros documentos
de ambos os espólios mostram hoje à evidência que sempre existiu uma forte
interacção, e que a presença e a intervenção de AJ foram determinantes para o
nascimento e o progresso da Obra de MGL a partir da ida para Lovaina. O diário Finita dá já bastante conta desta
disponibilidade de AJ, primeiro leitor dos seus textos e, no início,
frequentemente escrevente a quatro mãos com a «Gabi». Mas a interacção não se
limita à leitura dos textos que Gabriela vai escrevendo (um ritual – mas com
consequências efectivas – evocado pelo próprio Augusto no início do posfácio a Causa Amante); as conversas entre ambos
são determinantes para o andamento e a orientação de certos livros, a ponto de
Llansol se queixar do perigo que constitui para a sua própria autonomia a
inteligência reverberante do Augusto, reconhecendo também os estímulos que lhe
vêm dessa troca verdadeira: «Sempre Augusto foi para mim o terreno da explicação
e da consistência» (Caderno 1.13, p. 20, 9.2.82). Augusto é o parceiro que
inventa e lhe fornece conceitos (Entresser,
Isso, Esse, Sebastião, o Dom) e títulos (O Litoral do Mundo), e lhe dá a ler obras fundamentais (da área
científica ou pedagógica, mas também o I
Ching, como se verá no Livro de Horas 3,
em data de 5-4-79).
-->
Convém
então começar por falar do percurso, dos interesses, do universo de acção e
pensamento de Augusto Joaquim; e também, e sobretudo, dos seus modos de
relacionamento com a Maria Gabriela, da interpretação do seu Texto, e da
relação única entre ambos – relação de verdadeiro Ambo, um conceito a que já regressaremos –, a nível humano,
literário e intelectual.
-->
-->
I - Quem é Augusto Joaquim?
O único currículo
de que dispomos no espólio de Augusto Joaquim é sintomático do corte operado
por ele próprio em relação à sua vida anterior à deserção e à relação com a
Maria Gabriela. É um CV que omite toda a sua formação escolar, e de Seminário,
até à ida para o serviço militar em 1964. Currículo curioso, com uma larga zona
de silêncio, antes da ida para Lovaina, e ainda com outra marca evidente nesta
figura que escreveu muito, mas publicou pouquíssimo: por esse currículo (e pelo que hoje conhecemos do que deixou) se vê
que a maior parte do que escreveu está inédito, em papel, em disquetes e CDs. E
há ainda um terceiro aspecto relevante: o seu espectro de interesses e
actividades (que não contempla, neste CV, o lado artístico: colagens, desenhos,
bandas desenhadas-discursivas...) é muito amplo, e parece ir dar, desde cedo, a
uma área cuja metodologia será aplicada a diversos sectores, e muitas vezes a
textos de MGL: a termodinâmica do sentido
(podem ver-se alguns exemplos deste trabalho múltiplo no video que aqui
mostramos, e que dá a conhecer uma pequena parte do espólio de AJ).
Não sabemos
exactamente quando AJ e MGL se conheceram, mas pela correspondência (amorosa)
deixada, terá sido antes de Agosto de 1964, provavelmente na Igreja de Santa
Isabel, em Campo de Ourique (onde moravam, quer a Maria Gabriela, quer os pais
do Augusto). Nas cartas trocadas antes do casamento em 28 de Setembro de 1965,
e ainda até à deserção de AJ em Dezembro desse ano, é já possível constatar que
existe, da parte do Augusto, mas não da «Gabi», um progressivo questionamento
de si próprio e do substrato católico de onde ambos vêm. Essas cartas revelam
por vezes uma maturidade intelectual e humana extraordinária para um homem de
vinte anos, acabado de sair do Seminário dos Olivais, em Lisboa! Em Llansol, a
ruptura, se disso se pode falar, dar-se-á a partir da descoberta própria de um
outro sentido para a espiritualidade fora da instituição, com os místicos
flamengos, renanos e ibéricos, que transparece na primeira trilogia, «Geografia
de Rebeldes».
Augusto Joaquim
estudará, em Lovaina, Sociologia e Ciências Políticas, tendo apresentado uma
original tese sobre o Salazarismo em 1970. O meio de Lovaina, onde irão
encontrar muitos exilados políticos, apresentava-se como um mundo novo, quando
comparado com o Portugal de Salazar, que haviam deixado voluntariamente.
Llansol esclarece bem essa passagem decisiva, numa entrevista-carta a uma
jornalista de nome Maria Helena (com várias versões, e que provavelmente nunca
chegou a sair), com data de Junho de 1980, e que poderá ser lida no Livro de Horas 3, a sair este ano.
Neste ambiente
nasce também a escola da Rua de Namur e, depois, a cooperativa e escola Ferme
Jacob/La Maison, projectos a que se associam, para além de colaboradores e
amigos belgas e outros, Anabela Lopes (amiga de juventude de AJ) e José Luís
(seu irmão). Destes anos setenta é também o projecto da revista Perspectiva, de inspiração «marxista
quente», de esquerda radical e alternativa, editada em Jodoigne de forma meio
artesanal por AJ e outros companheiros de ideologia (e onde a Maria Gabriela
também escreve dois ou três textos sob pseudónimo). Segue-se um progressivo
isolamento, que acentua as crises financeiras e depressivas de Llansol no
«cativeiro de Herbais», depois do fim da Ferme Jacob e do lançamento de uma
empresa de agricultura biológica por AJ, que corre mal (como iria acontecer com
outro empreendimento semelhante depois do regresso a Portugal, em Colares). Os
cadernos de um e outro registam estas mudanças sucessivas de vida e as
oscilações da relação: os conflitos criativos, a crítica («implacável») de AJ e
ao mesmo tempo a sua crença incondicional no projecto de escrita em curso (os
textos do caderno «O Ambo», que fizémos para este dia, dão conta disto).
Depois de 1985, já
em Portugal, Augusto Joaquim lançará uma série de outras iniciativas para
divulgar a Obra de MGL e falar dela: com a editora Rolim e a Galeria
Monumental, em lançamentos de livros ou com a ideia de criar uma Fundação, já
em Colares, como testemunha uma carta de Llansol inserida num dos cadernos do
Augusto, em que ela vê nessa Fundação «uma comunidade real, mas móvel e
crescente» — como viria a acontecer, ainda em vida de Augusto Joaquim, primeiro
com o Grupo de Estudos (GELL), que nasce também por sua iniciativa em 2000, e
depois com a criação do Espaço Llansol em 2006, já sem ele.
II - Augusto Joaquim: para além da biografia
Mas vejamos o caso
AJ para além da biografia – e tentemos traçar um retrato intelectual e criativo
desta figura sempre empenhada, lúcida e generosa, para lá das ocorrências
biográficas, à margem de projectos de vida estáveis que, aparentemente, nunca
lhe interessaram muito: em «A hora sexta de Herbais», um texto quase de fim de
vida, isso torna-se evidente: «Quase sem dar por 'isso', fui acabando com todos
os peditórios que tinha em curso. Era ele a carreira, o prestígio, a política,
o mundo finito, a família, a fé, o mundo melhor.»
Dotado de uma
inteligência viva, não abstracta, mas, como escreve Llansol, «carregada de uma
força libidinal intensa» (Caderno 1.06, p. 197, 6.2.1979), de um poder de
decisão que o levava a saber «escolher o real» mais ajustado à sua obsessão da singularidade (um traço que
orientaria, tanto uma vida à margem do poder, na busca da pujança própria, como
todo um método de trabalho e análise que aplicava aos mais diversos objectos,
como veremos) e de um sentido pragmático que contrastava visivelmente com a
tendência mais contemplativa do seu «ambo», a Gabi, Augusto Joaquim cria um
universo que é um prisma, um caleidoscópio
de corpo-ideia-acção-visão, um mundo muito próprio (hoje acessível num
espólio muito mais reduzido que o de Llansol, mas de uma grande intensidade e
variedade, apesar de parcial - muita coisa terá sido destruída por ele em 2003
- e em grande parte inédito e desconhecido).
[7 cadernos manuscritos
e vv. dossiers A4 (com narrativas: a busca da androginia?; poemas: a busca de si na relação com o
outro, a Mulher e o outro da polis; textos de reflexão, sobre o exílio, o
trabalho, Gabi, e o seu lugar na vida-escrita dela); ensaios (de sociologia, literatura, pedagogia) em disquetes, papel,
2 revistas, em livros, em esquemas e mapas a lápis – e folhas Excel – sobre
livros de MGL e outros; 2 dossiers
com sonhos; muitos desenhos e colagens (em papel e
digitais), séries e «bandas discursivas», trabalhos feitos para e com os alunos
das escolas (papel e diapositivos)...]
Em tudo o que pude
ler (e ver) nas últimas semanas no espólio ainda não classificado de Augusto
Joaquim detecto uma espécie de crença
céptica (i. e. sempre disponível para a mudança) na racionalidade radical da imanência e da singularidade, que o
leva a posições de um niilismo, não filosófico, mas científico e pragmático (de
fundamento anarquista e, nos escritos literários e nos desenhos e colagens,
revelador de uma obsessão erotómana que se pode constatar no video que fecha este post),
posições essas que situam o seu pensamento e a sua acção prática para lá de uma
lógica primária que tantas vezes nos impede de perceber que, em última análise,
o real – ou o texto de MGL – não é «explicável» (o Augusto tentou sempre fazer
passar esta ideia nos nossos encontros do GELL!).
Da minha passagem ainda um pouco
meteórica por este espólio retive alguns aspectos que me parecem significativos
para ir traçando o perfil de um
Augusto Joaquim múltiplo, pensante e
criativo; e também para perceber melhor o seu método, que já referi como sendo guiado pela obsessão do singular. Nos primeiros cadernos (e também num grosso
maço de folhas A4 totalmente preenchidas com uma escrita segura, sem rasuras, e
por muitos desenhos e esboços que acompanham os textos) encontramos uma grande narrativa que designo, para mim, como A (re)invenção da Mulher (mas a que AJ chama O
Círculo da Compaixão, ou da
Compaciência). Nessa narrativa transbordante, erótico-vibratogénea,
verbi-visual, em que intervém um grande número de figuras de mulher com nomes
como Athenaïa, Apollon-Idonaïa, Silvia, Electra, Léa, Sidneï e Sherazade,
desenrola-se toda uma mitografia em
que se encena a relação entre os sexos, num espectro de espiritualidade
corpórea ou de fisicidade espiritual que contempla a hetero- e a
homossexualidade, tanto como o homoerotismo, e cujo horizonte último me parece
ser o da nostalgia de um estado de androginia
primordial, de fusão dos sexos com vista a uma realização plena do humano
(os desenhos, as colagens e os poemas dão também conta deste universo: o
registo é múltiplo, obsessivo, visionário, onírico, surreal, utópico...). Nada
que ande muito longe de alguns filões do texto de Llansol. Nestes meados dos
anos setenta, já em Jodoigne, ambos se alimentam de leituras comuns que poderão
ter inspirado esta busca de um humano mais humano, do corpo e da sua pujança,
do espírito e do seu lugar determinante, para lá do social, do político, do
«gregário» em geral. Entre outras (Bataille, filosofias orientais, ioga,
tântricas e outras, a psicanálise não freudiana, etc.) destaca-se, pelas
ligações directas e explícitas que oferece com esta matéria, a obra de Carl
Gustav Jung e da sua «psicologia das
profundezas». Destaco Jung, porque a própria Llansol o refere várias vezes nos
cadernos desta fase (entretanto entrados nos Livros de Horas 1 e 2). A relação entre Augusto e Gabi, e, no caso
dele, com o arquétipo da mulher, parece passar muito por esta leitura de Jung
(concretamente de Psicologia e Alquimia e
O Homem e os seus Símbolos, todos
referidos nos cadernos, e particularmente da autobiografia Ma Vie, em cuja página de rosto MGL anota: «Último livro que o
Augusto leu, 11 de Nov. de 2003»).
Outras formas de escrita no espólio de AJ, em
especial os poemas e os ensaios, revelam evidentes afinidades com estes
interesses e derivas. Os poemas,
que são muitos, desde os primeiros cadernos (e já do período da tropa, nas
cartas e no diário a quatro mãos com Gabi em 1965), centram-se nos grandes
temas do Augusto: o auto- e o hetero-conhecimento (auto-análise e análise da relação
com os outros e com a Outra, num
espaço de mutação permanente), o
erotismo e a busca de uma espiritualidade na imanência, a reflexão
ideológico-política (por ex. num longo ciclo poético sobre Portugal, Salazar e
o Estado Novo, no caderno 3, de 1979, o ano da escrita da tese em Lovaina).
Finalmente, os
ensaios (e estudos preparatórios
de ensaios) sobre livros de MGL, alguns dos quais deram posfácios, e outros
foram reunidos pelo próprio AJ num volume, inédito, com o título Dom Arbusto; prefácios a traduções,
ensaios sociológicos («Teoria das gentes», «A forma-rapaz»...).
Neste campo do ensaísmo, AJ desenvolve desde cedo
um método próprio e original (e,
naturalmente, discutível – já gerou muita controvérsia no GELL, entre 2001 e
2003), a que eu chamaria, provisoriamente, o método da obsessão do singular. O método explora essencialmente a fisicalidade do texto (o nível
significante – de que não se pode extrair um
sentido, mas apenas possíveis de
significação) e o dinamismo nos
usos da linguagem. Como AJ explicava em 19 de Outubro de 2002, não lhe
interessava a «trans-substanciação» (o extrapolar do texto sentidos
transcendentes), mas sim a mutação
(os dispositivos imprevisíveis, não expectáveis, de gerar significação no texto
de Llansol): ou seja, não o sentido, que não há, mas a substância do gesto
linguístico, não o fixo, mas o infixo, não a dualidade (um pretenso corpo e uma
pretensa alma do texto), mas a unidade do que é singular (corpo que é alma e
alma que é corpo, como em Spinoza). E questionava categorias abstractas como «o
literário» ou «a literatura», para perguntar pelos modos de funcionamento
particular deste texto, da linguagem
nele posta em acção, e pelos caminhos que facilitam ou dificultam o acesso a
ele. É uma forma de microanálise que, segundo ele, permite ir para lá do
significante ou do grafema, mas partindo sempre dele. E entrava pelas curvas e
mapas de ocorrências, vibração, valências, que lhe permitiam chegar a uma
galáxia textual onde o sentido se vai fazendo e desfazendo, e a que chama a «termodinâmica do sentido». O nosso
problema, dizia o Augusto, é a fixação na semântica:
precisamos de compreender, e caímos
nos conceitos! Ele, por seu lado,
lança mão de um instrumentário que vai buscar à Física (à termodinâmica, com as
suas noções básicas de entropia –
energia, desordem, imprevisibilidade – neguentropia
– baixo nível de entropia, que permite a vida do texto com um relativo grau de
originalidade, sem o fazer cair no caos – e redundância
– a repetição que asfixia essa originalidade, ou também gera novos modelos não
convencionais, como no minimalismo repetitivo) para chegar a um horizonte de
interpretação que lhe vem de Spinoza, e que afirma a unidade indissociável do
fora e do dentro, do corpo e da alma, da vida e da morte numa totalidade
orgânica (AJ falava do «texto orgânico» de MGL, por oposição ao «texto
potenciométrico» realista: cf., no meu livro Na Dobra do Mundo, o quadro das pp. 49-50). Explora, assim, sinais
concretos e materiais do texto, precisamente para não se fixar em conceitos
abstractos e gerais. Interessa-lhe entender como
funciona o texto para poder ser o que é, e não outra coisa. É a obsessão da
singularidade – com todas as suas aporias, sobretudo as do descritivo e da
quantificação, como alguns de nós objectavam.
Mas AJ vê as coisas de outro modo, e exemplifica a
sua via de leitura, por ex., com a transmutação que fez do Livro das Comunidades em peça para o palco: gera (como leitor
activo que é) um movimento, uma tensão expectante, entre discurso e imagem, ou
entre discursividade e gesto, um conjunto de gestos e sinais pelos quais a peça
se vai construindo em quadros minuciosos – como os das suas folhas Excel –, em vórtices
de acção significante. Tal como nas suas experiências narrativas e poéticas, o método
de AJ é o da rejeição de todas as formas de poder
(do instituído, da literatura, da moral vigente, das convenções...) em favor de
uma panóplia de outros poderes/pujanças
singulares. O primeiro, que conhece mas rejeita, desconstrói-se pela fala/pelo discurso; os segundos, que
abrem ao mundo novo, são da ordem do fazer, e revelam-se nos gestos e sinais das figuras singulares
das beguinas, e do próprio Luís M., que aí é o «pontifex» (aquele que faz a
ponte).
No processo de formação a que se submete e submete
as figuras de mulher, que não gera uma situação de dependência, mas de
interacção mútua, ele irá formar com cada uma delas o que Llansol designará de ambo: a figura do semelhante na
diferença, ou melhor, da singularidade
mutante fecundada pelo outro.
III – O que é um
Ambo?
Llansol escreve por mais de uma
vez que ela e AJ formam um ambo, mas
também que ninguém sabe exactamente o que isso é (Inquérito às Quatro Confidências, p. 13). Uma vez, num avulso do
caderno 1.15 (provavelmente de 1984, ainda em Herbais), Llansol, contra aquilo
que é mais habitual nela, quantifica o seu perfil – pragmático, mental e
afectivo – e compara-o com o do Augusto.
De acordo com a (enigmática) escala
utilizada (se for de 100, o «Eu» ultrapassa a escala em 70 pontos, e «Aug.»
apenas em 10!), ela própria seria essencialmente «mental» e «afectiva»,
enquanto AJ seria mais claramente «pragmático». São, como escreve Llansol num
caderno de 1983, as contradições produtivas «entre a inteligência que ataca e a
superfície feminina que se aprofunda» (Caderno 1.14, p. 226); ou «a dialéctica
Augusto/Gabi, [que] já não me angustia (...) Prefiro o sistema da balança ao da pulverização» (Caderno 1.07, p. 221), i. e., a troca mútua à
anulação.
Avulso 07, caderno 1.15
Pondo de lado as imprecisões
matemáticas (o que não estranha nada em MGL), este tipo de configuração poderia
de facto prefigurar um ambo: pelo seu
desequilíbrio equilibrado, pelas «contradições que constituem o caminho
gradativo da nossa reunião» (Um Falcão no
Punho, p. 65). Esta relação foi, de facto, feita de intensidades,
obsessões, desequilíbrios e encontros extraordinários. Também de conflitos,
medos, silêncios (as mais das vezes com resultados criativos surpreendentes).
Tudo parece ter começado naquele Verão de 1964, e em poucos meses a relação intensifica-se,
cresce e oscila até ao casamento e à fuga para a Bélgica, em cartas e
contra-cartas quase diárias, entre Lisboa e os Regimentos de Artilharia (de
Vendas Novas e de Viana do Castelo) onde presta serviço o futuro desertor da
Guerra Colonial; e começa aí um percurso e uma aventura invulgar, que duraria
perto de quarenta anos. A meio caminho, em 5 de Abril de 1987, Llansol anota
num dossier dactiloscrito: «O meu
nome recebe também o Augusto, com seus filamentos de apoios, inteligência e lucidez»
(DOA14, p. 8) – os três termos dão a dimensão real, e completa, do papel de AJ
na vida de Gabriela. E no final, já depois da partida definitiva do «Nómada» em
11 de Novembro de 2003 (vd. Amigo e Amiga
e o «Poema do Nómada do Entresser», no caderno que fizemos para o dia de hoje),
ela evoca-o no «Curso de Silêncio de 2004», livro do luto e da caminhada para a
transparência da antevisão do «lugar para onde irei»; e presta-lhe a última
homenagem no livro de Tual, «o grande textuador desconhecido» e portador da Vara
da Sabedoria, o tirso que preside aos rituais da leitura cantada do Texto. Os Cantores de Leitura serão o
derradeiro lugar da «coreografia amorosa do Ambo» já ensaiada em 2002 na
Clareira de Parasceve (vd. a última fotografia da nossa série). Até no nome – Tual – a figura do Ambo neste livro
entra em diálogo com a de Teol nas
narrativas dos cadernos de AJ.
O Ambo é uma figura parente da do «amor ímpar», da tensão criativa
que gera a terceira coisa, o um que são dois, opostos conciliáveis,
dinamicamente complementares. Seria possível, a partir dos textos de MGL e de
AJ escritos sobre o outro e sobre a relação com ele, escritos para o outro e muitas vezes com o outro, elaborar uma tipologia de traços do Ambo a partir das
duas partes que o constituem. O encontro, sem fusão nem anulação, entre um e
outro, gera o Ambo, figura imprecisa, mas de vários nomes e rostos.
Muito mais interessante, porém, é
ir seguindo, nos textos dos dois, a real natureza desta existência una na
singularidade, que é a essência do Ambo. A Maria Gabriela dá, mais do que o
Augusto, imagens e quase-definições do Ambo, uma noção que não aplica apenas às
relações humanas, mas estende a outros domínios (por ex. em «O Espaço
Edénico»): o conhecimento e a beleza, a liberdade de consciência e o dom
poético, o cão e a dona em relação ímpar e «fora da perpendicular do ceptro», o
texto que pergunta e o texto que responde. No caso específico da sua relação
com AJ, MGL desdobra num grande leque as facetas prismáticas do Ambo. Lembro
apenas alguns exemplos, antes de terminar:
- «A intensidade das contradições
usuais entre mim e A. diminuiu, e o que prevalece é o grande entendimento
criativo que nos une. Para onde quer que formos, nascerá um novo clima...» (Caderno
1.11, p. 134); é «a simples maneira matinal de viver, na sala das diferenças
que nos unem» (id., p. 228);
- «O A. está sempre a lançar
sementes em mim... Não filhos» (Livro de Horas
2, p. 135);
- «fomos coincidentes, e fomos
viajantes para praias próprias» (Livro de
Horas 1, p. 125);
- «O Augusto escreveu: 'quando a
luz se vê iluminada' (há entre mim e ele como que uma página branca iluminada /
o alguém de um nome)»;
- «Mais do que amantes e marido e
mulher, somos parentes. O mesmo tronco, mas uma bem diferenciada amplitude de
trocas e movimentos.» (Livro de Horas 2,
p. 160).
A deambulação poderia continuar,
mas há duas passagens de Inquérito às
Quatro Confidências que fazem a súmula perfeita, e inacabada, da questão do
Ambo (fico por aqui, e o resto vem nos fragmentos do «Caderno do Ambo» que
fizemos). Este livro evoca a fase em que AJ tinha de lidar com o pessimismo de
Vergílio Ferreira em longas discussões sobre o fim do romance ou o sentido da
existência, e MGL explodia de impaciência, ou se recusava a acreditar na
partida daquele que via como «companheiro filosófico», «o mais jovem» – mas
certamente não seu ambo. E escrevia: «Vou despedir-me, principiar a despedir-me
sem que nada se quebre ou parta.» (IQC, 114). A relação aqui é de empatia, mas
não de tensão criativa.
Já em relação a AJ o discurso é
outro: «O ruído da minha máquina e o do computador do Augusto, mais suave, são
como passos a caminhar, e assim
possuímos a terra, de uma margem a outra margem.» (pp. 83-84)
Mas logo no início deste livro
encontramos já a definição do Ambo – inconclusiva, porque se trata de matéria
mutante, e clara, porque há um saber intuitivo de mútua pertença que fala aqui:
«As imagens descem em tropel do horizonte e, sem
cuidar, tentam quebrar o anel onde arde a chama...) _______ um fio de
pensamento solitário que me sugere que eu e o Augusto somos iguais diante da
Natureza solitária. Não sei bem o que somos um para o outro. Somos um ambo mas o que tal
significa realmente prevalece ainda envolto em bruma. Acendo a vela da
ternura para ele. Tome, meu ambo,
a vela da ternura Com ela vai a lealdade que nunca
se apaga _____ e a liberdade do meu espaço sobe à montanha _____ estes
telhados próximos _____, onde há pássaros, mais precisamente, muitas
andorinhas.
Sobre elas cai continuamente esta neblina densa e
eu, dentro da regra aceite do silêncio, não me sinto só, nem triste.» (IQC,
13)
João Barrento
O espólio de Augusto Joaquim: uma viagem à vol d'oiseau