19.3.12

A FESTA DE BABETTE NA «LETRA E»


A próxima sessão da Letra E, no sábado, dia 24, às 17 horas, abre a série dos “Filmes de Llansol”, e mostra um deles, que a escritora viu em Lovaina em 1988 e a que se refere como “inesquecível”. Sobre esse filme — A Festa de Babette do dinamarquês Gabriel Axel – escreve Llansol três belas páginas num dos seus livros, contando-o a Témia, “a rapariga que temia a impostura da língua”. Mas não é o seu enredo o que mais importa, é antes o seu “momento de desvendamento a que se chama sublime”, diz Llansol. E acrescenta: “Só esse momento interessa à escrita”. 

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Convidamos todos a ver (ou rever) connosco este filme a que Llansol chamou “a última ceia”, e que dá a ver progressivamente “os cinco bens da terra – o conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver”. E depois da apresentação por Cristiana Vasconcelos Rodrigues, da projecção e da leitura das páginas que Maria Gabriela Llansol sobre ele escreveu, poderemos todos trocar impressões sobre o que vimos.

11.3.12

OLHARES SOBRE O MUNDO NA »LETRA E»

A sala da Letra E foi pequena ontem para acolher todos os que vieram para ouvir falar e ler, a partir de quatro livros recentes, sobre o tema, muito llansoliano, do Mundo e da Restante Vida.


Para além dos quatro livros em discussão, com os autores presentes (António Vieira, Ensaio sobre o Termo da História; Sousa Dias, Grandeza de Marx. Para uma política do impossível; Tomás Maia, Persistência da Obra. Arte e política; e João Barrento, O Mundo Está Cheio de Deuses. Crise e crítica do contemporâneo), estavam expostos mais de vinte outros, editados em Portugal nos últimos anos e que, de modos muito diversos, pensam a situação actual do mundo.

 
 

 Tal como Maria Gabriela Llansol o fazia em permanência, escrevendo diariamente, e nesse gesto pensando também muitas vezes a relação da escrita, e do pensamento que lhe estava subjacente, com o mundo à sua volta. Os fragmentos de textos seus que acompanharam, à guisa de mote, a tarde de ontem apontam para essa preocupação.


E os seus textos lidos pelo actor Diogo Dória mostram-no à evidência.



TODOS OS RESTOS, A RESTANTE VIDA


Este texto diz que, não havendo memória de ser humano, mais vale guardar em memória o resto, todos os restos, a restante vida.
(A Restante Vida, Posfácio de A. Borges)

I     O Mundo e a Restante Vida
E, no entanto, parece haver dois mundos – o Mundo e a Restante Vida. Irredutíveis entre si, inimigos um do outro, temendo-se. […]
Não sabemos ainda hoje em que condições o homem comum pode aceder ao usufruto e à prática do dom poético. Mas (…) aprendemos a reconhecer como inerente à condição humana a prática da consciência livre (…)
Foi uma história – e está sendo ainda – de confrontos entre irredutíveis, entre o Mundo e a Restante Vida. Sejam quais forem as razões e os princípios em que cada um se escuda, ambos os mundos perderam de vista a necessidade vital para cada homem de poder alimentar-se de alegria, e poder viver com sentido.
Porque neste confronto, e no cômputo final do mundo, a frustração foi quase sempre a parte que lhe coube em sorte. Ora resignando-se, aceitando ver a sua vida amputada de vibração, de intensidade e amplitude; ora revoltando-se, dando consigo a ter de enfrentar um excesso inutilizável de sentido.
(«Diálogo com Lull», Lisboaleipzig 1, pp. 99; 109-110)

*
II    Rota de exclusão
[...] Tudo segue uma rota de exclusão da pujança. Instalou-se um processo imparável de exclusão; está de volta o medo, embora difuso e diverso, de uma exclusão ainda maior. Eu tenho medo que me excluam do texto, o meu vizinho sei que teme ficar desempregado, a rapariga que me ajudava nas limpezas temia todos os dias perder o marido, que andava com outra. Eu achava que o texto era o único necessário, mas ia dizendo que era tudo a mesma coisa, que eram nomes diferentes para o falcão que sentíamos faltar no punho. [...]
Só agora viram os escritores que o corpo, a leste e a oeste, no Norte e no Sul, é impotente, não consegue, não consegue, está mal, sente-se mal, deprimido, sem alegria e desfalcado por não conseguir fazer o mundo. Só agora viram (mas onde estiveram, então, até agora?) que é o mundo que faz estes homens – sem-corpo-de-poder? Como se, perto e a longa distância, o bem querer, o desejar, um calor de amor, um pouco de sentido, alguns segundos de escuta atenta produzissem invariavelmente a catástrofe do contrário. Não é uma questão de boas intenções nem de boas vontades. Basta olhar os factos sem os cobrir com um véu de esperança, basta ler as histórias que os nossos textos contam. O homem comum está continuamente a ser excluído e espoliado da pujança. O único facto que volta a ser novo é que chegou a nossa vez. Ou pensava-se que tínhamos um estatuto de impunidade? Ou imaginávamos que a razia ia poupar os observadores? Que o corpo do narrador iria ser poupado? Mas porque é que o poder iria ter mais consideração por nós do que pelo comum dos corpos mortais? [...]
A transparência e o absoluto não são lugares para o homem. Era preciso dar-lhe o toque para que se lançasse na grande viagem a que todos aspiravam. O grande êxodo da liberdade de consciência. Eu sempre soube que a razão não serve para ver. Esse, o equívoco da nossa aliança que transformou a liberdade de consciência em conquista, que fez de cada ponto de apoio no território uma fronteira a delimitar espaços de exploração; cada diferença que encontrava, uma exclusão. E o mundo tornou-se como a razão o escreveu: veloz, exponencial, crítico, memória acumulada de despossessão. [...] Em dois séculos, deu ao homem o maior abanão de que há memória. Fê-lo sair da crença. Mas, com as extraordinárias resistências que se acumularam nesse confronto, nem a razão sabe agora o caminho para diante, nem a crença poderá jamais abrir o caminho de retorno... [...]
... a liberdade de consciência é uma fonte inesgotável de angústia e de vontade de rapina. Porque as crenças, quase todas elas, participaram na rapina, à conquista de mais almas, num ódio profundo à liberdade de consciência que, tê-la, é a única maneira de escolher. A crença não vai desistir de usar o medo e o gregarismo, nem a razão vai deixar de jogar a cartada do seu peso político-industrial. E eu própria pergunto a mim mesma – para que serve a liberdade de consciência sem o dom poético? [...]
... um dia a crença partirá. A razão partirá também. E eu desaparecerei do vosso corpo. Só o homem ficará finalmente sozinho sobre a Terra. Nenhum de nós imagina o esplendor que isso é.

(Do texto enviado ao Parlamento Internacional de Escritores, reunido em Lisboa em Setembro de 1994, com o título «Está de volta o medo». JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 625, 28 de Setembro de 1994)

*
III    E no entanto, eu escrevo…

Jodoigne, 21 de Abril de 1975.
Oiço Gregoriano e escrevo, em A Restante Vida, a batalha. Eu sei que aqueles de que gosto vão perder, já perderam. E, no entanto, ainda não sei o que é perder, o que perderam, no momento em que a batalha se escreve. Há um resto que foi deixado e que, sob a forma do mútuo, se enuncia. Apesar de eu não saber bem o que nessa palavra se avizinha.
O que é perder?
Quem perde, que deixa escrito no campo de batalha?
Absorta na pergunta, olhava, desatenta, a chama da vela, a meu lado.
Já tantas vezes vi bruxulear a chama de uma vela. Mas, naquele instante, vi-a diferentemente. Não fui sensível à cor, mas ao abrir e fechar da chama. Ao seu modo de respirar hesitante e persistente. Como estava escuro, a chama, aumentando e diminuindo de intensidade, criava maior ou menor espaço iluminado. E, nesta coincidência rara de flutuações, senti a igualdade entre chama, som e vibração. O mesmo ritmo, a mesma oscilação, a mesma criação de espaço, a mesma variedade de «tempo», a mesmíssima combustão.
Vi que as manifestações sonoras são combustões luminosas.
Os sons acabam porque se queimam e, ao queimarem-se, tornam a matéria evanescente.
Os sons transformam-se em fumo; este, há-de ser nuvem.
Nuvem e melodia são as duas faces da matéria. Nada se esvai; tudo passa de monte em monte, de mão em mão, ouvindo-se. Como se o reverso da história me chegasse numa dobra, e eu o visse a entreabrir-se ligeiramente, e já as minhas mãos recebessem só nuvens.
E, no entanto, eu escrevo…
As vidas que, durante a batalha, se vão perder, enquanto chamas vivas, iluminaram quem, o quê? A mim?
E que pujança estética sem nome tiveram (ou estão tendo?), esses homens e mulheres?
Que linha do tempo foi ali quebrada?, mas não partida, e lhes envolve o ser?
Que nuvem continua transitando? Por que será que no horizonte da história se ouvem gemidos, o gotejar contínuo de acções inacabadas?
(Finita. Diário 2. 2ª ed. Assírio & Alvim, 2005, pp. 21-22; 46-47)

*

IV   Portugal decadente

Quem cuspiu foi a mão que segurava a caneta, pois ela é verdadeiramente
imprescindível  _____ para escrever
mas, sobretudo, dar a ler com a recta intenção da manhã que se levanta.
O resto ___ senhores e senhoras, pássaros, fugi ___
isto é
Portugal decadente, ou Europa que se portugalizou.

Mas eu amo o sinal deste espaço que é a sua língua e os seus vivos habitantes
inocentes.
Não vos declaro a guerra, pois sois inexistentes.
Mas para esta paisagem, onde o ar das borboletas ainda é possível no princípio
das palavras que vão jorrar a limpo
__________ não passareis
sem corpo são, visível,
responsável  e sonoro.
(Caderno 1.46, 14.12.96, pp. 19-22)

7.3.12

DEZ OLHARES SOBRE O ESPAÇO LLANSOL


Micro-reminiscências do universo de Maria Gabriela Llansol, numa sequência da fotógrafa alemã Erika Koch para a edição francesa de Finita (Pagine d'Arte, em mais uma tradução de Cristina Isabel de Melo). Acabada de chegar e aqui partilhada com todos.



























3.3.12

IN MEMORIAM
MARIA GABRIELA LLANSOL 
(24 de Novembro 1931-3 de Março 2008)

Para Maria Gabriela Llansol, que partiu hoje:



1.3.12

FINITA EM FRANCÊS

Acaba de sair em francês, na excelente tradução de Cristina Isabel de Melo, o segundo diário de Maria Gabriela Llansol, Finita, a partir de agora disponível nas livrarias de França, ou através do site da editora Pagine d'Arte. A edição vem acompanhada de fotografias de Erika Koch e de um prefácio de João Barrento, que escreve a propósito
   

 Como a voz de escrita que se ouve em cada dia deste diário (e que não é um eu que exibe o seu dia-a-dia, mas um espírito em diálogo íntimo), cada fotografia é mais um registo, diferido, de um espaço e de uma vida que, sendo estritamente privados, são os mais universais. Essa universalidade vem-lhes da sua radicalidade e da sua simplicidade, e é inseparável do risco que se corre na «saída para o movimento» que implica «adoptar o deserto» no meio da agitação absurda do mundo gregário, a caminho do «encontro do só com o só», ou na autêntica «experiência da língua» (das linguagens, também das visuais ou conceptuais), numa travessia arriscada contra as máscaras do Ser. Escrever este diário, tal como apontar a objectiva para aquilo que se esconde na distância do tempo, mas se dá a ver nos interstícios de algumas das suas páginas, significa, para quem escreve, para quem lê e para quem fotografa – é o texto que o diz –, «arriscar o destino nas dobras que apuram o silêncio: os ambientes e geografias que criamos são o nosso íntimo exposto».