Ontem, 28 de Janeiro, nasceu para a vida o novo espaço público do Espaço Llansol. Com uma exposição de materiais do espólio que documenta a infância e o nascimento para a escrita de Maria Gabriela Llansol. A abertura foi feita pelo Presidente da Câmara Municipal de Sintra, e apresentámos o texto-base da nossa actuação, a
«Carta de princípios da Letra E»
Neste momento histórico
em que o pensamento e a criação livres se vêem cada vez mais encurralados por
agentes de poderes planetários sem rosto e por uma informação redundante e
paradoxalmente desinformativa, porque totalmente acrítica, aquilo que a
indústria da cultura e a paranóia do consumo consideram «produtos» da
literatura e da arte degenerou, com algumas excepções, em matéria mercantil ou
mero alimento de um gosto duvidoso ditado pela vontade inexpressa, mas dominadora,
de novas massas anódinas e manipuladas, no plano do visível, pela própria
inconsciência de si, nelas inculcada por mecanismos que todos conhecemos há
muito.
Assim sendo, aceitamos «herdar as margens» onde Maria Gabriela
Llansol sempre viveu e escreveu, e actuar no espaço impoluto, mais livre e mais
justo que ela visionou como a «Restante Vida». E procurando assim levar à
prática, como dever inalienável daqueles que ainda acreditam que existe no ser
humano um fundo sensível e um horizonte ético capazes de produzir beleza e
ideias, formas de actuação que recuperem e reafirmem aquilo que o passado e o
presente têm para oferecer de mais genuinamente humano, libertador e formador
das consciências.
Por estas razões, e no momento em que, apesar de todos os constrangimentos,
o Espaço Llansol se expande e projecta novas formas de diálogo e intervenção,
sentimos que é importante reavivar uma vertente geralmente menos merecedora da
atenção daqueles que se vêm debruçando sobre a sua Obra, mas intrinsecamente
constitutiva da ética e da estética de Maria Gabriela Llansol: a vertente
propriamente política e crítica dessa Obra, no sentido mais
amplo e nobre destes termos. Desde o primeiro texto que publicou — o conto
«Empregada», no Diário de Notícias de
12 de Setembro de 1957 – que Llansol se afirma pelo porte íntegro e por uma
orientação de pensamento que a encaminham para a denúncia dos males da História
e das limitações do «social» tal como o conhecemos hoje, levando-a a assumir,
até ao fim, um lugar conscientemente «acentrado».
Num momento em que claramente «está de volta o medo» e «tudo segue
uma rota de exclusão da pujança», como Maria Gabriela Llansol diagnosticava já
em 1994, é preciso que o falcão do voo livre não adormeça no punho de onde saiu
a sua escrita, e penetre também no de muitos outros que a lêem. Porque
reaparece hoje, amplificada diante dos nossos olhos, uma Europa perdida de si
mesma, como aquela que nos deu a ver Augusto Joaquim, logo na hora de
nascimento desse livro-fonte da afirmação da «liberdade de consciência» e do
«dom poético» que foi O Livro das
Comunidades (1977): «Barbárie a Leste, lucro a Oeste, pobreza a Sul, neve a
Norte». E, apesar disso, Llansol afirmará até ao fim (ainda em Os Cantores de Leitura, último livro, de
2007), a necessidade de saber «o que é o corpo, / o que é a luz, / o que é a força, / o que é o afecto, / o que é o
pensamento, / o que é a figura». É todo um programa que podemos seguir. É, por
isso, a hora de, sem ilusões ingénuas nem pretensões utópicas, assumir «o
presente como destino» e continuar a escrever o texto de Llansol «na plena
posse das nossas faculdades de leitura» – leitura desse texto e daqueles outros
que, ao longo dos anos, o foram completando e iluminando no espaço de outras
artes e do pensamento, e leitura do mundo, articulando-os em actividades de
vária ordem que o novo espaço do Espaço Llansol tenciona acolher e dinamizar.
*
Este pode ser, será, o programa do
novo espaço do Espaço Llansol que dá pelo nome de «Letra E», inscrita na porta em frente daquela em que até agora
trabalhámos, e continuaremos a trabalhar, no espólio da autora. A «Letra E» será um espaço ainda mais público e aberto a
intervenções que desejamos múltiplas e sem fronteiras, um prolongamento do
legado que vive em frente, na letra F, e nos estimula e guia. Dele derivamos os
princípios programáticos que procuraremos levar à prática, como mais um modesto
contributo para o diálogo e o pulsar vivo do pensamento e do olhar, a partir da
Obra de Maria Gabriela Llansol, que poderia ler assim esta Letra E:
de esperança, o
horizonte do júbilo possível e necessário no «jardim devastado» do mundo.
de entendimento (no
sentido que M. G. Llansol lhe atribui, ela que sempre considerou necessário, na
sequência de Spinoza, um novo Tratado da
Reforma do Entendimento).
de entresser, essa
zona de existir entre o real e o possível, entre o Mundo e a Restante Vida,
entre o humano, o não-humano e o trans-humano.
de Espaço Edénico, o lugar não mítico do
«triplo registo» em que os corpos se movem e a escrita actua: o lugar do belo,
do pensamento e do Vivo. Lugar «criado no meio da coisa, como um duplo feito de
novo e de desordem».
de ensaio e experiência, princípios que nos guiarão
na busca permanente dos fios que ligam o texto de Llansol ao nosso tempo, para
podermos ir verificando se «aquilo que o texto tece advirá ao homem como
destino».
de escrita (o
reverso do que continua a chamar-se «literatura»), natural e necessariamente
ligada ao universo de alguém que foi, não escritora, mas escrevente, animal de
escrita à margem de tanta «escrita de cinza» que agora sufoca quem por ela se
deixa asfixiar, e correndo através do mundo e dos tempos, assumindo a sua
condição animal, fazendo vibrar um grande arco sob o qual se inscreve um duplo
propósito interventivo: o de «espalhar a justiça e a desordem» (hoje, com o
texto conhecido e sobretudo desconhecido de Llansol).
Poderemos assim, talvez, dar
continuidade, na Letra E, a uma ética aberta que atribua a cada ser o
seu lugar no mundo, e a uma estética
que siga o rasto do fulgor deixado pelo texto de Maria Gabriela Llansol.
Reinventando, como ele, caminhos e visões alternativos à geometria seca e
mortífera da realidade que nos querem impor.
A letra E (o epsilon grego) está associada, no enigma da sua antiga inscrição no
oráculo de Delfos, à sageza comum. É o que sugere, entre outros sentidos
possíveis, um diálogo de Plutarco. Também para Maria Gabriela Llansol a sageza
comum era um ingrediente significativo da sua relação com o mundo através da
escrita. E condição de toda a leitura que, amplificando-o, abrisse o texto para
lançar a luz do provável sobre o mistério desse mundo. Sem certezas, mas com
algumas convicções.
Foi neste espírito que esboçámos,
para todos os que connosco queiram colaborar e participar, as
Linhas gerais do Programa da «Letra E»
Na Letra E,
tudo o que fizermos será sempre feito em articulação com a Obra de M. G.
Llansol, partindo dela ou para ela remetendo – na letra ou apenas no espírito.
Na Letra E
guiar-nos-á a intenção de abrir a um público mais vasto os amplos sentidos
da sua Obra, em particular do espólio que pacientemente vimos tratando e
disponibilizando, e a pujança de um pensamento radical e de um mundo imagético
e de raiz sensível, fonte privilegiada da escrita de Llansol.
Na Letra E
iremos expor e comentar, em regime rotativo, obras de pintura, desenho,
colagem, fotografia, escultura (do acervo do Espaço Llansol, e outras); e
também manuscritos, cadernos, fotografias do arquivo, livros especiais,
documentos, objectos, etc..
Na Letra E
acontecerão ao longo do ano, em sessões abertas a todos os interessados,
leituras e seminários, debates abertos e lançamentos de livros, sessões de
cinema comentadas, teatro, música, performance.
Na Letra E
contamos ter, como intervenientes, escritores, artistas plásticos, actores,
músicos, cineastas, críticos, pensadores, tradutores de Llansol, crianças.
Na Letra E
teremos sempre a preocupação de prosseguir o caminho que
encetámos ainda com a Maria Gabriela e o Augusto, e de fazer desta nossa e
vossa casa, nas palavras de Llansol, um lugar que seja, «não um museu, mas um
pensamento, um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder audaciar-se, exprimir-se em obra que
fique em toda a parte» (Caderno 1.43, 1995).
Sintra, vista da «Letra E»