23.12.09

OS TRÊS VAZIOS DE LLANSOL

Acaba de sair em livro mais uma tese de mestrado sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol, nas Edições Vendaval. Três Vazios - Leitura de «Geografia de Rebeldes» de M. G. Llansol, de Maria Carolina Fenati, brasileira de Belo Horizonte e colaboradora do Espaço Llansol, foi um trabalho preparado no âmbito do Programa Erasmus Mundus, orientado pela Profª Silvina Rodrigues Lopes e defendido na Universidade italiana de Bergamo.


O livro agora publicado desenvolve uma análise aprofundada de alguns dos vectores essenciais do texto llansoliano, a partir da noção ambivalente do Vazio – provocado, continuado e vislumbrado – proposta no enigmático e seminal texto de abertura de O Livro das Comunidades, e orienta-se no sentido de destacar nos textos de Llansol «o que nos pode afectar, atingir e desviar das rotas postas do mundo, da rigidez do instituído, dos caminhos avessos à fecundidade do desejo» – lê-se na contracapa.

21.12.09

AOS PÉS DO »GRANDE MAIOR»

A placa (foto de Vina Santos)

Foi hoje descerrada em Sintra, junto do «Grande Maior», na Volta do Duche, a placa que assinala a presença desta árvore como figura em Parasceve. Para além de membros e amigos do Espaço Llansol, estavam presentes vários vereadores e representantes de órgãos do município. Usaram da palavra, evocando Llansol, a sua Obra e a sua intervenção em defesa do património vivo de Sintra, o Presidente da Câmara, Prof. Fernando Seara, Adriana Jones (da Associação para a Defesa do Património de Sintra) e o Presidente da Direcção do Espaço Llansol.
Três mulheres do Espaço Llansol – Hélia Correia, Maria Etelvina Santos e Helena Vieira – leram um texto dos cadernos inéditos, que aqui reproduzimos parcialmente.


Meditação através do verde
[O Grande Maior, Marguerite Yourcenar
e a mulher que passa pelo verde]


Volta do Duche (foto de Augusto Joaquim)

Quando eu passo, as árvores ficam sempre – é uma constatação que eu faço, caminhando da Sintra comercial para a Sintra confusa e banal onde se eleva o Palácio. Sintra fraca e promíscua, penso muitas vezes. «Se não fossem as árvores», não haveria arquitectura em Sintra, penso muitas vezes. Caminho, pois, na Volta do Duche, acompanhada pelo lado aéreo do olhar que vou lançando sobre as árvores, e por estar a querer fazer um texto sobre Marguerite Yourcenar – de quem deixei, em casa, um livro aberto.
É um daqueles dias em que receber companhia equivale a um certo desejo de conversar e de crescer. A tarde é verídica, vou a Sintra pôr uma carta enviada em correio azul, em passo de pensamento, que é muitas vezes o meu passo lento de passeio.
Na mesma direcção que eu, mas real, não mulher de pensamento, Yourcenar ou outra, uma mulher de tez clara caminha a meu lado – rústica, sólida, daqueles seres criados no campo com quem faço uma troca imediata. Diz-me:
- Como Sintra é bela, por ter às vezes também árvores!
Passávamos agora por Grande Maior, a minha árvore favorita, pela impressão que me traz a sua grandeza, na sua sombra de simplicidade.
[...]

O Grande Maior (foto de Vina Santos)

É um facto que eu, quando penso em Marguerite Yourcenar, penso sempre numa árvore que escreve, com uma escrita que circula entre a raiz e o cimo, tecendo uma rede sinuosa em que a seiva, mesmo ascendente, está sempre ligada ao peso grave de tanto se imiscuir na terra.
Poderia ser uma árvore, uma ave que levanta voo coberta pelo seu peso,
e que cai de novo sobre a raiz,
transformando o voo cortado em seu verde?
Sombra verde, em tentativa rápida realizada. Apoio seguro. Tronco por onde eu passo levantando os olhos _______ e seguindo para a frente.
Poderia ser Yourcenar uma figura, tal como eu a concebo? Uma espécie de lugar de troca, como as árvores o são – uma espécie de realização duradoura, presa, e material do espírito? E no tom de olhar com que as concebo e as vejo?...
[...]
Nesta meditação, a olhar através das plantas verdes, ocorre-me que outro dia, pela Volta do Duche, seguia para a Vila Velha através de plátanos, castanheiros, e de uma árvore soberba – a que eu chamo Grande Maior. Quando passo por ela digo sempre (pura verdade!):
- Bom dia, Grande Maior!
Assim me apetecia saudar Marguerite Yourcenar, sabendo que Grande Maior, sobretudo no tronco, tem as suas limitações de transparência, de movimento e de diáfano.
Mas a tal mulher, que não era ela, pôs-se a meu lado enquanto eu seguia e, a níveis e a entoações diferentes, falou-me da mesma paixão – a sua passagem através do verde, que não era a minha. Mas falávamos com muita verdade mútua, e encantamento pela expressão dos verdes, nos animais, nos homens, nas plantas verdejantes e nas coisas.

Do Caderno 1.48, 1997

«Grande Maior» – a minha árvore preferida da Volta do Duche, está oscilando sobre esta imagem que – já só por si – treme. A árvore ainda existe? O plátano ainda existe, pois.
Vejo-a imobilizar-se no écran do computador e quero saber o que é o fasto e o nefasto, e ouço a voz dos automóveis que me diz: «que só há caminho».
É a primeira vez que uma coisa assim inerte e útil me fala. Ou haverá imagens translúcidas de beleza no que eu julgava inerte?
Se assim for, dou o sentido por não sentido – como faço sempre. Tenho pouca ciência para aprofundar a eclosão da beleza.
[...]

(Do Caderno 1.48 do espólio, 1997)

17.12.09

LLANSOL E O «GRANDE MAIOR»

No próximo dia 21 de Dezembro, às 10h30, a Câmara Municipal de Sintra, pela mão do seu Presidente, descerrará uma placa evocativa da ligação de Maria Gabriela Llansol a Sintra, junto da árvore que dá pelo nome de «Grande Maior» no livro Parasceve. Puzzles e ironias (Relógio d'Água, 2001).
Fica aqui o convite
(Clique na imagem para aumentar)

e algumas passagens do livro em que esta portentosa árvore – um grande plátano – tem lugar de destaque:


II - O Vaso Quebrado e o Grande Maior
ergo os olhos para a cúpula da árvore. Próximo, há uma fonte, a fonte do Plátano, e o que me atraiu foi a humidade do lugar, e a anfractuosidade da pedra para apoiar as costas. Mas, já sentada, apoiei a nuca sobre a rocha e principiei a ver que, por cima da minha cabeça, seguindo os raios de luz que desejavam partir, havia ruas extensas e elípticas, orifícios ou vazios entre as folhas, que correspondiam a praças verdes, que acolhiam um lugar habitado, elevado à potência da copa de uma árvore. O meu corpo sentado perdeu-se, e fiquei visível e invisível. Dois cães não tiveram medo da minha imobilidade, e o meu encontro com eles foi breve, pois estavam de passagem. Tinha o sentimento de que, com um simples olhar, eu própria deslocara o meu corpo. E o corpo estava onde estava o meu olhar, às portas de uma cidade-árvore que eu intitulara o Grande Maior. Nesse lugar, eu não devia preocupar-me com a credibilidade do meu testemunho, pois seria dito, de uma vez para sempre, que era uma cidade invisível e que só eu via. A árvore, essa, poderia ser vista por toda a gente. (p. 11) […] Descrever um lugar indescritível é torná-lo inamovível para o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da árvore, como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento permite. O jardim não é criado pelo pensamento, o jardim permite pensar, tem a sua própria forma de pensar o pensamento. O Grande Maior tem as mesmas propriedades. Apenas não pensa do mesmo modo. Na verdade, aprofundar a intensidade de viver e deixá-la à natureza, é morrer menos. Falo do meu ponto de vista de visitante, porque ali não havia morte… (p. 12) […]
– É doloroso dar vida ao espírito bravio, e não lembrar... – Acho que ter um tronco e equilibrá-lo é preferível a ter memória. – Também é verdade que, com algum treino, o dentro e o fora se tornam reversíveis, quase sem dor. – Nascer e renascer. Dar botões e ramos. Deixar cair as folhas e torná-las matéria nossa... – É a tua travessura de árvore. A tua pujança não recorda. Mas eu não sou árvore. – Por que hei-de fazer como tu? – Haverá uma outra maneira efectiva de procurar? Se viver fosse recordar, uma semente sonhante seria o seu perfeito equivalente. Olha, seríamos cristais... (p. 131) […]
Explicitar medo pode escrever-se dentro, a partir de fora, como faz o realismo. A estaca apoia a árvore. A árvore cresce, a estaca apodrece. É mais prático escrever dentro, de dentro. É o ponto de vista da seiva. Nem sempre é possível, é a arte de jardinar. A mulher ouvia a voz, era a sua estaca. O grão corria pela voz, a seiva. Alguém-infância cantava. No jardim onde está, neste momento, ela ouve um ruah nos ares. (p. 151) […] … Na minha procura de ritmo, cheguei à seguinte conclusão: «a causa que é totalmente diferente de outra causa mas produz um efeito semelhante e muito próximo, deve ter tido, embora muito longe, um encontro fulgurante com essa causa». Não cheguei lá sozinho, fui muito ajudado pelo Grande Maior. O que é o Grande Maior? Um ser que certamente acharias muito estranho. O Alguém-vegetal que, num momento extremo, salvou uma criança humana de perder o seu ruah. Ruah? A parte mais íntima e activa do som. De um som que podes chamar ar ou vento. Somos suas causas longínquas, sem que ela seja, no entanto, nosso efeito… (p. 177)

Cartazes do Espaço Llansol e da Associação para a Defesa do Património de Sintra, colocados no Grande Maior no Dia Mundial da Árvore em 21 de Março de 2008

3.12.09

LLANSOL: A LUZ DE LER # 5

A vocação do exílio



Num conjunto de sete pequenas folhas avulsas, inseridas num dos primeiros cadernos manuscritos (e agora também no Livro de Horas I - Uma Data em Cada Mão), Llansol reflecte, numa rápida visita a Lisboa, em 1976, sobre alguns dos seus temas de sempre: o exílio, a difícil relação com Portugal, a língua sem metáforas que se deposita, em sobreimpressão, sobre a paisagem belga, ou sobre o nosso grande mundo aquático, para os trasformar.