LLANSOL ENTRE NÓS
O dia de ontem foi intenso. Começou de manhã com a reportagem do Público sobre a casa e o espólio
e terminou tarde, com a sessão evocativa de Llansol na Biblioteca Municipal de Sintra, que o Presidente da Câmara abriu e João Barrento introduziu com as seguintes palavras:
Maria Gabriela Llansol faria hoje 77 anos. Ou cem, ou mil. Também podíamos dizer que nasceu hoje, aqui, neste preciso momento. No corredor lá fora, como ela sugere num dos seus livros, sobre um foco de luz. Alguns nascem por decisão, não por destino, e contrariam assim toda a lógica do tempo e da vida. Nasce-se verdadeiramente quando se enceta um caminho, quando se entra «numa dada signografia do há [do nosso modo de estar-aí] em que a nossa biografia se confunde com a geografia dos mundos», para se lançar num percurso de metamorfose contínua, o único que garante «o eterno retorno do mútuo» e a anulação da morte. Llansol seguiu este caminho, decidiu um dia (significativamente, já depois de ter publicado dois livros) nascer para a escrita, e isso significa, nas suas palavras, dizer o mundo, os múltiplos mundos do mundo, «sem esperança, nem impostura» – sem «ilusão garantida», explica, e sem cedências aos discursos gregários, sejam eles os do clã, da polis ou da chamada «literatura». Isso a fez nascer para a escrita nas margens da língua que levou consigo para o exílio, mas com um idioma próprio, fora da literatura, no espaço inconfundível da sua escrita fulgurante. E é isso que nos permite dizer hoje que ela está, estará, entre nós. Sem metáfora. Antes naquele sentido em que o seu «mestre do júbilo», o filósofo Spinoza, pôde dizer que «sentimos e experimentamos que somos eternos», porque «uma coisa que tende a perseverar no seu ser, se nenhuma causa exterior a destruir, continuará a existir sempre» (Ética III, viii). Mas também naquele outro sentido, puramente llansoliano, que desde O Livro das Comunidades nos vem dizendo que «a morte se apaga na escrita», e «é como um enleamento de alegria num lugar sombrio e húmido» de onde progressivamente volta a emergir a luz. Por isso, ao desejo e à interrogação da Maria Gabriela, quando escreve em Amigo e Amiga «quero saber mais do mundo para onde irei», nós podemos responder hoje: esse mundo é aqui. É aqui, é agora, é ontem, é sempre. Como naquele fragmento de Mestre Eckhart, incluído sem aspas n' O Livro das Comunidades, que explica de que modo se leva a cabo a criação em nós pela permanente eternização do instante:
«se eu me concentrar num fragmento do tempo não é hoje, nem amanhã mas se eu me concentrar num fragmento do tempo, agora, esse fragmento revelará todo o tempo.»
É assim que melhor se podem ler os livros de Maria Gabriela Llansol, é assim que podemos sentir a sua presença entre nós. Nós, os do Espaço Llansol, que tivémos o privilégio de conhecer mais de perto a Maria Gabriela e receber o seu legado, sentimo-lo hoje no nosso dia a dia, naquela casa da antiga Estalagem da Raposa. Mas isso só acontece porque outros se juntaram a nós e nos permitiram, e permitirão de futuro, manter viva essa presença, para que o Texto continue a sua viagem – um percurso que conhecemos hoje melhor, e que vamos descobrindo pelos atalhos e veredas por onde ele foi ganhando forma –, uma viagem iniciada há setenta anos, com aquele caderninho onde a menina de oito anos (que aos seis já lia, ou ouvia ler, Fernando Pessoa), escreveu: «... nesta cama me deitei, para dormir e descansar. Se vier o inimigo...»
O inimigo veio, no dia 3 de Março deste ano, mas não arrasou a cidadela. Pelo contrário, as muralhas continuam de pé, e a aventura arqueológica em que nos lançámos tem à sua frente cidades inteiras por revelar. É isso que tentamos ir fazendo, que estamos já a fazer, com a ajuda de vários amigos do «Espaço Llansol» – expressão que, no sentido que a Maria Gabriela lhe deu, não é apenas um espaço físico, mas o Lugar de todos os mundos presentes na sua Obra, «lugar onde não há resignação nem morte, lugar de vida sob o signo dos afectos, no seu triplo registo: o Belo, o Pensamento e o Vivo», como se lê na nossa «Carta de Princípios».
É neste espírito que quero agradecer, antes de dar a palavra à Maria Etelvina e aos nossos amigos que lerão excertos dos cadernos inéditos, àqueles que mais directamente, e no imediato, nos permitem levar a cabo esta tarefa: as editoras Assírio & Alvim (Manuel Rosa) e Mariposa Azual (Helena Vieira), que publicarão, respectivamente, a Obra inédita e os livros sobre a Autora que vierem a surgir (numa colecção nova que hoje se apresenta); e sobretudo à Câmara Municipal de Sintra, na pessoa do seu Presidente e do seu Vereador da Cultura, que nos possibilitaram a preservação do espólio no seu espaço natural e o convívio quase diário com a presença da Maria Gabriela, na casa que o seu corpo de escrita e o seu espírito livre ainda habitam de forma viva e contagiante, indicando-nos a nós, hoje, o caminho do «conhecimento múltiplo» que deixou nesta anotação de um dos cadernos manuscritos:«_____ a voz que eu ouço não me fala. Inscreve-se no caminho que vou descobrindo. [...] A substância do abrigo da casa sonhada é o conhecimento.
[E] o conhecimento abrange a generosidade e a alegria de viver. O conhecimento é múltiplo.» (Caderno 66, 5 de Dezembro de 2003).É esta forma de conhecimento que nós procuramos prosseguir e perseguir na Casa que nos coube transformar em Lugar – Lugar que se inscreve sobre um outro, inimitável e insubstituível: o da vida e da escrita de Maria Gabriela Llansol nos últimos catorze anos.